sábado, 28 de dezembro de 2013

A Sertaneja

Refiz o caminho e já não pude perceber as pessoas. A coluna reclama as horas mal sentadas pelo meu andar lento, julga o cabelo por cortar num sobrepeso ainda meu e de minhas ideias na cabeça que tanto bate e sente como um peito sem calma. Incomoda o silêncio de não ter por certo à quais olhos entregar assentido o meu cumprimento de quem muito viveu em Cachoeiro. Quando dessas ruas eu era parte do cenário foi sempre fim de tarde. Caso apertasse o passo, adiantasse o expediente ou dissesse precisar pegar o ônibus que passa antes e nunca vi, teria a certeza de encontrar a calma da moça da lotérica por seu ombro decorado em bolsas coloridas; o desenrolar da porta dos mecânicos já tão senhores que o ranger das engrenagens confunde em seus braços e testas de graxa velha e óleo seco. Pensava em meu pai. Agora em silêncio refiz o caminho mais sozinho do que nunca, perdido pelas ruas que tão bem desconheço as pessoas, os nomes nas placas que talvez sejam filhos dos pais que por outrora atravessei e dobrei e tive por certo aos pés de minha calma.

Vou estranho como o sóbrio nos carnavais de Antonina. Na primeira esquina o operário sorri da folga inesperada, sentado na grama e muito mais Zé que todos os reis que lhe passam parados no trânsito, coroados em conforto e metal e fumaça. Ostenta os dedos dos pés livres das botas e entregues aos carinhos dos dedos das mãos, e não sei dizer como desgostei de meus chinelos, invejei sua certeza de saber que não são seis horas e que por essa tarde toda o mundo é seu. Passo e entendo querer ser Rubem Braga. Tenho nas lembranças a forma de viver as coisas que não vi por andar escrevendo, inocentes mãos à máquina lenta de meu peito sem tinta.

Da minha cabeça pesada faço alerta aos pés, e pelos mal quistos chinelos vou até que chegue ao cabeleireiro da Marechal. Era perto de meu trabalho, e agora entendo viver à mercê daquilo que vi e não soube por andar escrevendo com os olhos no chão. Era de Rondônia, e na primeira vez que sentei à sua cadeira perguntou mesmo se eu queria raspar numa inocência que me fez filho aos olhos de mãe. Pela máquina três me contava que a vida aqui é cara, o ponto é bom e que tudo deu dez reais. Hoje a porta vai fechada. Desço a rua sabendo que não volta, e talvez as coisas por lá tenham dado mesmo certo. No bar da esquina, lotado do programa esportivo da televisão, o dono não se levanta e diz que encontro outro na quadra de baixo. Ando três até que chegue ao salão simples que não pede agendamento de hora com a manicure em seus cheiros diferentes pelos braços de tantos cremes. Suas unhas vão por fazer. A cabelereira, gorda e sentada à porta sob o ipê já sem cor, levanta de surpresa e diz que tudo é doze, que tudo bem e me mostra a segunda cadeira das únicas duas que inundam o cômodo pequeno e digno. Lembro de meu amigo de Rondônia e dói. Pelo espelho respondo às avessas pra que seu reflexo entenda direito o que é meu esquerdo, e por fim sinto não dizer nada. Tem o carinho da navalha ao meu redemoinho que, segundo ela, é bem no pé do cabelo. Acho entender assim os passos daquilo que penso, e saio com os perfumes da manicure impregnados por meus dedos de cigarros.

Sinto ter traído a simpatia do colega de Rondônia. Falou que as coisas lá são calmas, que a falta da família por aqui só chega à noite e nos dias que as pessoas acordam satisfeitas com o cabelo pela hora de cortar e suas cadeiras não abrigam ninguém. É assim mesmo, a clientela é fixa e o movimento não depende nem de chuva e nem da lua: seus horários à mercê da pressa dos cabelos que o humor estima quando bem entende. Peço desculpas e trocaria dois ou três dias de minha vida pra que já fossem seis horas.

Tomo o caminho pra casa pelas ruas que agora vão em obras. A farmácia continua, o ponto de ônibus tem a mesma sombra de sempre que parece derrubar da árvore uma ou outra menina apressada em passos de quinta feira. Amanhã logo chega, tenho vontade de falar, e elas me atravessam e o pedreiro não sorri enquanto ajeita o boné cinza em seu corpo cinza. Escancaram as portas e derrubam paredes do que antes era uma casa pra sempre fechada, daquelas casas pra sempre fechadas que toda rua digna tem escondida. Creio que os pedreiros sabem de sua culpa, e os semblantes sérios me dizem que o patrão mandou, que cada marretada nesses tijolos simpáticos derruba tanto, tanto que você nem sabe. Por aqui havia outra casa que me lembrava chalés em países de neve. As cortinas sempre fechadas, cadeado no portão e raras vezes, à varanda, uma senhora e seu rosto de olhar trancado, envolta de gatos como que acorrentados pela sombra que dali espantava o sol. Passo e vejo os dedos de um senhor esforçados pelos cadeados do portão, e a varanda hoje é vazia da senhora e de seus olhos e seus gatos. Não há mais sombra, e sinto afeto por ele com os dedos ainda enroscados em ferros.

O ônibus não demora. O motorista tem o rosto úmido, e parece ser da mesma temperatura do metal que guia e lhe é. A cobradora vai impassível, sentada no banco alto que nos diminui tanto, de tantos jeitos que Deus parece mesmo existir. Desço e não sei das horas pelas ruas daqui que vão desertas do fim de ano. Nossas vidas feitas aqui, nossos peitos esburacados enganados das fantasias daqui, e nos fins de ano daqui se esquecem. Sinto entender o silêncio até mesmo das calçadas, e entro em meu condomínio de prédios que tanto parecem feitos de vidro. Passo pela quadra de futebol, e a mãe assiste os dois filhos chutarem a bola pequena. O mais novo se concentra em cada chute que parece mostrar o caráter desde cedo impassível, enquanto o outro devolve e finge o esforço na paciência e proteção existente apenas nos irmãos enquanto crianças. Penso no meu e sinto falta da sua voz dizendo que eu não podia, que a mãe pediu pra ficar aqui, que depois ele me deixa dormir na cama de cima. Nunca deixou, e seja talvez esse um dos maiores orgulhos que tenho dele.

Sento às churrasqueiras daqui, sempre desocupadas de festas, repletas de papéis e dos cigarros mal apagados que me esqueço de jogar fora. O calor aqui hoje vai alto. Disse na televisão que uma capital do nordeste teve a máxima menor que a nossa. As pessoas que ainda não ignoraram a cidade andam aéreas, e talvez tenham até colocado as malas nos carros e trancado as portas de casa, mas o calor lhes colocou num transe que só passa quando cair enfim essa chuva eternamente suspensa. É ela que abafa, que me pesa a cabeça agora vazia de cabelos e ainda tão pesada do que tanto sei não saber. Sentado aqui é difícil não ser envolto na melancolia das tardes de meio de semana: os passarinhos que parecem cada vez mais perto de mim, curiosos de minha coluna curvada sob papéis que nada lhes são; as crianças e suas bicicletas e bolas num ritmo que foi meu, que não deixei que fosse embora, que busco no silêncio do que lembro e não acho cor e não acho mais sentido. Tudo sempre tão longe, e hoje, o tudo aqui é vazio. Sinto vontade de ligar a algum conhecido na praia e perguntar se viu algum melancólico andando com os pés na espuma do mar, mas desisto por não pensar em ninguém que consiga procurar como eu haveria de fazer. Sei que ela foi andar pelos lados de lá, silenciar os daqui pelos lados de lá.

Não me sobrou nada e fico satisfeito. Caem os primeiros pingos desse céu cimentado em nuvens. Largo o Rubem Braga já amarelado sob a mesa, o maço pela metade que deixa o isqueiro à salvo de extravios. Hoje ninguém mexe em nada. Descalço os chinelos e lhes sinto afeto ao sair do telhado de madeira pra entregar o rosto ao céu de chuva: é de um carinho morno e pausado. Sento à grama, e sorrindo dou aos pés os dedos de minha mão. Desaba do céu o peso de minha cabeça. 

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

O Largo de Jacó

Nesses dias de calor invento o caminho mais longo. Tenho de meus passos inconstantes um andar parado, negando de esquerdo o direito que insiste não sair do lugar. Já no ônibus o olhar encalorado dos sentados, dos em pé que calculam o horário de amanhã no desejo da janela aberta, da brisa sólida e abafada que conforta cabeças escoradas em vidros de tantos sonhos sem fim. Levanta primeiro a alma como quando Satie ilumina ouvidos por esse bairro de ruas de céu de árvores; procura a expressão mais cândida, o corpo inerte suspenso pelo olhar perdido de braços e sacolas equilibristas desse trânsito nada estático. E eu não me mexo, não borro sequer a vista de qualquer piscar sem que saiba por que levanto, sem que saibam por que ocupam a janela anunciada de minha alma pouco antes. A campainha me fere os ouvidos enquanto revela meu destino aos olhos de espelho do motorista que se reflete pra tanta gente. Nesses ônibus pequenos e sem cobrador as coisas parecem mais fáceis, os sorrisos começam em qualquer lugar. Salto perto do largo daqui. Não sei bem a diferença entre largos e praças. Não sei quem é Jacó e muito menos seus bancos em madeira, muito menos o cheiro de sua grama rala da areia das crianças. Prometo sempre mais tempo à próxima vez, e suas sombras me sorriem das promessas que não cumpro. Às vezes, e não sei bem precisar em quais, as ruas daqui tem o cheiro dos pés de carambola da Cachoeiro de minha mãe.

O tempo logo fecha, e chega a chuva na birra dessa cidade que não consegue ser sol. Como são lindas as donas de casa que se apressam ensaiadas pra trancar janelas, maldizer o tempo, estranhar o rapaz que anda lento nesse furor que a chuva derruba antes de seus pingos. Acabo avesso, e é só o alto de seus cabelos amarrados que me percebe assim. Dessas ruas desertas fazem calçadas, e os ipês pintam tudo que os braços de suas árvores alcançam, que o vento ajuda em borrar por cima dos carros sempre parados, das garagens sempre sentadas de senhores e suas banquetas de madeira antiga. O cheiro impregna o rosto, mela a língua. Escorre a criança que atravessa a calçada em caretas e me deixa a língua de flores num sorriso roxo e amarelo e azul. Não dá tempo pra que me vire e a veja de alguma forma que não já em flor, já de volta aos galhos dessas árvores que escondem o céu escondido agora de nuvens. Penso de quais sopros chegam esses que me passam silenciosos em seus floreios. Logo na esquina o pai jovem chuta a bola ao filho de olhos sérios, e de qual árvore são eu não sei, não pergunto. Talvez a mãe já tenha recolhido a roupa do varal, dito aos dois pra secarem bem os pés antes de entrarem pelo tempo que hoje fechou e eu ainda não fiz o café. Fins de tarde que parecem sempre sábado, sempre as cinco horas que esses relâmpagos abafados anunciam quase a todo instante. Eu digo que sei, digo que logo chego e assovio ao bar que já tem as portas ansiosas dos alarmes de Augusto, das chaves que me enferrujam os dedos desse alaranjado de flores. Aqui os copos quebram mesmo às nossas mãos seguras, mesmo aos olhos de concreto azul cimentados em Luiz.

Cruzo o portão e penso em Deus e nos fins de tarde que nunca passam. Arrumo as mesas à simetria de suas cadeiras, abro portas e janelas e a luz insiste em sua desconfiança que torna tudo sombra aqui de dentro. Penso em Deus e no meu silêncio. Luiz me chega primeiro na fumaça densa de seu cigarro que lhe esconde o rosto pelas frestas de seus olhos. Confere tudo por conferir, apalpa os bolsos e olha a camisa riscada de nossas canetas que tanto somem. Penso que confia em mim, que já pensa em nada pra esperar chegar a vontade de seus outros cigarros que só vão até a metade estrangulada desses dedos em cacos de copos. Pelos filtros brancos e sufocados o encontro já pela calçada, aos cantos escondidos do bar que nos limpam a cabeça de pedidos na fumaça cansada de nossas pausas. Guri, me diz, deixa só as mesas pra fora que o tempo fechou, diz, enquanto sorrio escorado à porta que a luz insisti em não cruzar. Há muito que me chama de guri, há muito que me chamam pelo nome.

Aos que chegam, nosso cumprimento às vezes sincero de saber como foram seus dias. E respondem tanto sem dizer nada, e tudo pra de em quando falarem do futebol, atrasar o silêncio da despedida numa intenção que não entendo. Penso em Deus e volto à porta com meu cigarro por de trás da orelha. Augusto aperta a caneta contra o granito do balcão, e não raro assusta as próprias pernas quando se levanta decidido, caminha até a última geladeira e volta ao mesmo lugar com a caneta agora descansada e o silêncio num alvoroço que só dele vejo. Deixo alguns sorrisos prontos pelos olhares que se esbarram por acaso ao meu, e procuro o motivo pelo qual bebem sozinhos os que chegam mais cedo por ter quem esperar, que aguardam o amigo de volta do banheiro carregado daquelas conversas reprisadas. Percebo que não é inconsciente, e sinto a confiança nesses que deixam escapar a razão de suas doses, de seus copos pela metade pra que não esquentem tão logo. Chega Blumenau, chega Mineiro e Clair e suas cervejas de rótulos azuis de tantos e de Adoniran Barbosa. Em dias assim Augusto não nos olha. Dá a atenção de seu cabelo sincero às contas do fim de semana que passou, às entregas dos pedidos sempre tão bem atrasados em seus funcionários de caminhões que trancam a rua, apressados em seus carrinhos de caixas e garrafas que tilintam alto em meu peito de olhos de Luiz, do silêncio desses dias mansos de Augusto.

E tão logo acalmo, dos motores das geladeiras rasga um sussurro intermitente que me leva ao balcão. A lista de compras já gravada em meu andar, o dinheiro contado num exagero que passa a sensação de que esqueci alguma coisa. Nem sequer me despeço da moça do mercado, nem interfiro na briga dos irmãos da padaria: logo volto por que já não me lembro mais, diz aquele de mim já destacado do resto. Como eles aos meus olhos, me esvazio. Subo a rua sem saber o que é calçada, e das sacolas cheias compenso o que vou deixando pelas ruas calmas de mercearias e saudades.

Encontro Paulinho antes mesmo de chegar à quadra, seus olhos que se jogam incertos nessa vontade que a gente tão pouco entende. Aperta pela mão quaisquer que sejam, ronda o bar em sorrisos sinceros numa intenção que também nos sorri pelo desespero do não saber. Meu piazinho, e minha mão apertada na dele como se quisesse que eu entendesse, como se em seus olhos incertos gritasse qualquer coisa que não nos é. Chega manso, pergunta que dia é hoje e tenta me convencer de que não falta muito pro natal. Acredito ser ele o único que saiba tudo por aqui como sábado. Carrega seus jornais velhos de hoje cedo, suas caixas que vende por onde desconheço. Contou-me que não gosta de cachorros, que a moça que limpa a casa de sua mãe não enxaguou o banheiro e que ele caiu e sangrou. Diz e conta e. Cala. Principalmente nos dias em que as coisas lhe passam despercebidas e me ignora, ignora os poucos que lhe esperam com a mão estendida. Escolhe a cadeira numa intenção que daqui da porta não me parece clara, e silencia o tempo em uma ou duas latas de refrigerante antes de sair cansado do que tanto nos explica, do que tanto nos diz em seu jeito que me leva os olhos.

Sei das horas por aqueles que saem, pelo frio que me fecha os botões da camisa às onzes horas aqui dentro sempre tão frias. Os relâmpagos já não me dizem mais, e num instante as luzes de fora já vão acesas, as pessoas apertam cadeiras e vontades sob um céu de estrelas que não lhes ganha a atenção. Às vezes a lua parece flor por entre as árvores daqui da frente. Vejo prédios baixos e as casas de janelas tão lá no alto, e ignoro até mais de um pedido sonhando o céu daquelas janelas vazias de senhoras viúvas, de senhores e seus bancos puxados com esforço de suas garagens nemorosas. As cortinas sempre por balançar, mesmo que pelas janelas fechadas não passem crianças em vento. Nessas já as sonho recolhidas com seus pais jovens às suas árvores que desconheço.

A mesa do canto é a única de calma nas noites cheias de gente e de seus silêncios ruidosos. Um, quem sabe dois lugares permanentemente vagos. Dos que ali sentam julgo saber do vazio de suas vontades, e volto de dentro com cinzeiro, copo e a primeira cerveja da primeira geladeira que me atravessa a ansiedade. Não digo nada. O rapaz ameaça erguer os olhos, mas o isqueiro já sai do meu cigarro à sua mão trêmula pelo relógio que não leva. Talvez o tempo lhe escoa avisado apenas pelos relâmpagos que do portão pra dentro nada anunciam. Nossas fumaças se dançam, se conversam, e saio sem que perceba.

Nossa cozinha fecha mais cedo. Não consigo saber quando sinto falta da campainha que nos chama aos pedidos. De qualquer forma, é nessas horas vou aos fundos, tranco a porta e arrumo o depósito de caixas e geladeiras e coisas que Augusto não pode se desfazer: garrafas já não mais retornáveis, um cofre, tacos de sinuca e ventiladores e cadeiras aos pedaços. Estes amontoados me fazem pensar no silêncio e em Augusto. De meus tênis furados driblo as garrafas mal varridas, as tampas de cerveja que insistem em bater nas bordas de nossos lixos vazios ao final da noite. Empilho as caixas no carrinho, e no corredor até as geladeiras não ouço garrafas num murmúrio sequer: uma aceitação de seus destinos, a obrigação de alimentar o silêncio daqueles que por hoje já fecham suas contas e estranham o vazio que se manifesta perto do carro, à porta de casa depois de cada bebedeira.

Quando já não há mais, vou pra fora e tenho o primeiro cigarro inteiro da noite. Procuro a lua por entre as árvores e sinto como se já fosse colhida. Penso em Deus e nas coisas por brotar aqui de dentro. Os últimos logo saem. Nesses dias em que parece sábado sinceramente não me incomodo de esperar. A música toca agora mais lá longe, as pessoas conversam agora com mais silêncio. Augusto adianta as coisas e fecha o caixa que lhe martelou a caneta ao granito por tantos olhares. Luiz serve sua meia dose e escora os ombros no balcão pelo espaço que sobra da sua cerveja já aberta, do seu copo já meio cheio. Desenrolo as portas e o som de suas engrenagens despenca tudo. Penso nos relâmpagos e no vazio que de agora em diante não me fala mais do tempo. As chaves na caixa vermelha, e procuro a garrafa já quente por entre as mais geladas que há pouco coloquei em seus silêncios conformados. Dos copos que sobram inteiros, sobra um que amansa os dedos retalhados de cacos e ferrugem. Augusto há muito me priva o prazer da volta de bicicleta pelas ruas que apenas de madrugada se parecem com as daqui. Diz da segurança, diz de coisas que pareço não entender por só sentir falta da calmaria que preciso, e espero.

No fundo do bar as cadeiras já empilhadas, mesas limpas das cinzas e daquilo que choram as garrafas. Desabo o corpo onde as pernas pedem, meu copo e sempre pela metade, cigarro por me sonhar enquanto o isqueiro me foge aos dedos. Penso em tudo sem lembrar de muita coisa. O gosto dessas cervejas me estanca a alma, e no dia já por raiar que atravessa o toldo furado de pinheiros, sou o motor da geladeira, o molhado dos copos que ainda escorre na cozinha deserta. Augusto me agradece em seus sussurros transparentes.

Eles e eu à banqueta no balcão, de qual levanto só hora ou outra pra tirar alguma mesa, limpar algum cinzeiro até que todos saiam e deixem meus bolsos livres de canetas, de abridores e gorjetas que somem de um pra aparecer por algum lugar que nunca sei. Agora só nosso silêncio e as geladeiras. Penso em Satie e não sei de onde vem o arrepio, não sei quantos copos encho até a hora que me peço pra ir embora. Augusto não me chama nem o táxi que de algum jeito já me espera, a porta do passageiro aberta e o nome aos lábios do motorista. Luiz me pergunta do fusca. Sorrio que logo chega, calo pra que eu dê as costas ao caminho de casa, agradeça ao taxista e diga que hoje não, que chamei por engano, que vou dar a volta na rua e ir pros lados da rodoviária até me perder nas travessas iguais, achar por fim o começo da Visconde de Guarapuava.

Saio pra logo mais. Tranca e portão encostado até que bato a porta laranja do táxi que confunde a ferrugem de minhas mãos. Penso na seta à esquerda que me envereda em sonhos à Visconde, a terceira marcha presa na sincronia divina dos semáforos de lá. Dou o endereço, meu silêncio e não tenho mais nada. O taxista olha de lado meus olhos que acompanham os postes tristes e amarelos. Penso que assim serão as lembranças à hora do juízo, que iluminam o caminho sincronizado em terceira marcha que tive durante o que pude. Penso em Deus, no meu céu de avenida. Quem sabe quem minha alma escolhe amanhã ao meu lugar do ônibus, se me cumpro a vontade dos bancos sozinhos do largo de Jacó.

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Poltrona

Passei hoje a terceira eternidade dentro de apenas três dias de pra sempre. Não me lembro de perceber jeito ou maneira para diferenciar a semelhança dos momentos, de ter deixado atalhos espalhados pela casa. Sinto meu corpo ausente de mim, e a possibilidade de ser apenas enquanto sentado na poltrona do canto. Desde há muito conheço-me somente nos ângulos que tenho daqui, e assim transverso-me. Pelas manhãs e tardes espero me voltar de quartos e corredores pra saber como está, como vou. Só tenho meu silêncio. Só sei de mim o que imagino nessas abstrações de eternidade, e quando volto não me digo nada. Talvez justifique o vazio, ignorado ao canto, largado sob os próprios pés, próprios e meus que por tanto vão e nunca me chegam.

Há três dias não durmo. Tenho estado suspenso, mergulhado em uma dimensão de silêncio. Relógios e seus ponteiros moleques. Passo cada noite nesse ritmo eterno, onde minha vida de temporalidades não se encaixa com nada: acabo inútil e solto e pra sempre. Não há possibilidade de me deixar pra outra hora, agarrado a mim já preso sempre a tudo. Arrumo o tapete com os pés: corrente, trinco, e nessas horas o que fica da porta pra lá é tão a mesma coisa que não faz sentido apertar ferrolhos, torcer chaves. Minha casa acaba extensão de qualquer corredor. Em fuga desço as escadas e contorno o prédio. Suas luzes apagadas seguem meus passos, decifro lampejos de salas e quartos como espio de criança que finge dormir. As coisas ganham esse caráter infantil e duro, possíveis somente nesses enquantos. Pelas calçadas disformes chego e estaco em frente de minha janela, farol do jardim que hoje é noite sem sereno, muro sem gatos relegados apenas às lixeiras daqueles que dormem. Olho pra cima e a sala acesa beira uma sensação de agrado. Parece mesmo que as coisas ali dentro são boas, que a música toca baixo e dois ou três vão buscando alguma justificativa pra continuar logo mais pelo amanhecer. Sinto que posso, e até diria que corro se mudasse alguma relação no tempo daqui que é infinito e de pedra. Tão logo me trago de volta. A maçaneta tranca às costas, apago a luz pra claridade desse sossego sem paz e sem nada. Meu prédio volta a dormir sem mim.

Ainda falta pra hora do banho, da roupa certa, dos dentes cada vez mais amarelos. Mesmo não vendo cores daqui, sinto esse amarelo como indicador do tempo: às roupas, aos dedos, ao jeito das saudades. As coisas só ficam claras de um repente só, independentes das vontades minhas e de mim. Desperto. Saio de baixo da água sem aquele trago de desespero. Me pego mesmo pela mão e o café já foi tomado, a poltrona do canto parece e não me lembra. Chega um sorriso de carinho e o elevador de duas crianças sonolentas e pai responsável já desce cheio de mim. Talvez as crianças me entendam. Pergunto ao garoto mais velho como são seus sonhos, mas a porta já desce fechada e fica só o cheiro de quem recém acorda. Por um momento estou entre o térreo e a garagem, imerso em concreto. Lembro bem, mas não consigo entender quanto falta pra que me esqueça de mim, pra que durma desse espelho às minhas costas que me reflete de sua poltrona tão minha.

"quem sabe a luz de um cigarro que desaba do vigésimo andar"
Vitor Ramil - Não é Céu

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

transparências

assim como sou parte de minhas convicções, veleidades concretadas à relação com nada que não acasos sem sincronia, faço hoje, de meu pai, um exímio fumante que haveria de ter sido. ideia essa me passa em dedos e lábios desde há certo tempo, desmistificada em uma caixa de fósforos que, assim como as outras, parece surgir somente em dias de vento, em dias em que o fogo volta às mãos divinas e nos encaramos reféns de nossa existência de preces e fé. como somos imagens, ou como acredito que assim sejamos imagens, fiz a de meu pai num misto do que de fato é em barba, pele e cheiro. naquilo que me faz falta, entendo um vazio nas grandezas que de fato vejo e sinto, a ele invisíveis nos raros luxos em que se reflete em pensamentos. uma vida por completar e que, no entanto, há outros tantos já é plena, numa perfeição transparente aos olhos, cruel à percepção torpe que nos temos: esse sem fim da nossa procura. não me coloco à parte dessa incompreensão, e por isso, numa piedade humana que excede laços ou afinidades, faço de minha imagem a imagem que meu pai não pode enxergar, o reflexo que completa num paradoxo o que já é perfeito, que assim já é pai. uma relação de sacrifícios, onde o mestre abdica a vida aos passos do aprendiz, que deixa de se ser à compreensão da grandeza que sua fonte desconhece. sou eu filho, que por assim ser sorrio como meu pai, que não sabe até que ponto meu irmão lhe é reflexo ou não, que não sei até que ponto os homens de minha vida são pai e filho entre si.

por muito me vi minha mãe, e não somente no sorriso, não somente no coração capixaba repetia seus gestos, perpetuava o caráter sereno e impassível daquele povo ensolarado. desde há outro certo tempo tomei consciência do que trás o companheirismo, dessa troca de formas que o convívio opera no silêncio do tempo. tenho, então, uma mãe que é meu pai à proporção que imprime seu caráter sereno e impassível aos sorrisos que por nada lhe escapam. é impossível imaginar a quantidade de risadas que guarda dentro de si, em seu coração empedrado de alegrias já cinzas. achar a fonte do que são é ver fim no jogo de espelhos do elevador, retratos que se multiplicam conforme o esforço dos olhos. pela falta de insistência que tenho de um dos dois, assumo minha imagem como a de minha mãe que é a de seu companheiro, meu pai. ser um é ser o outro que já não acha começo, e o companheirismo dos dois nunca me pareceu tão único e intenso.

a graça fica por conta do reconhecimento que julgo também impossível. como a quem quer que seja, foge às minhas mãos alguma sombra que desenhe o que de fato sou. talvez por isso eu pareça ao meu pai algo completo numa busca desnecessária, e assim faz dos gestos da sua vida entregue o que falta à minha compreensão. fica meu pai sendo pra mim o que não posso enxergar, ao passo que sou reflexo das transparências de meu mestre: um sendo impossível ao outro, retratos do que de fato não existe e que, ainda assim, tanto nos é. fica a cumplicidade do olhar e das coisas que também sabemos não nos dizer.

ao meu irmão, cada uma das imensidões de seus dedos que não vê, que reduzo geometricamente e aplico aos meus sapatos, ao meu barco sempre por lançar. sinto como os pés na areia, água que molha o joelho que o vento já secou. acabo sendo também maré, e fico estático frente ao meu irmão que oscila, sempre sentado na sua correnteza de silêncio e eficácia, em seu barco inalcançável de proporções perfeitas. como se a calmaria não nos tivesse sido opção, e o silêncio de fora acaba escondendo a infinidade de explosões que cada bolha sussurra ao grão de areia em lança, que mata e absorve e devolve o mar pra sua imensidão nunca suficiente. sinto sua falta quando bocejo de boca fechada e meus ouvidos mergulham seu mar de saudade. creio que baste os cobertores silenciarem pra que nossa respiração grite o oceano que agora esvai, apodrecendo os pés das camas, enferrujando nossas janelas que nunca tiveram cotovelos de companhia. velejamos camas iguais aos sonhos dele que desconheço, e acabo sendo dúvida em suas certezas silenciosas.

de quando meu irmão fumava, acredito que, apesar de há época ele ser mais novo do que sou agora, também tinha a intenção secreta e inconsciente de ser o que meu pai era e não sabia. nada mais faço do que repetir os passos que afastam meus dois espelhos, tão distantes entre si que me fazem distante em essência. não apenas como relação temporária, como nada que não seja distante simplesmente na forma que deles torno minha.

tomo a caixa de fósforos à mão achando graça da forma que arrumo os palitos, segregando queimados e por queimar, pontas voltadas cada uma pra seu lado definido na caixa de quatro pontas e duas castas. se me pedissem um motivo, diria que faço o que ele faria caso fumasse. contaria da importância dos palitos válidos e desvalidos ser a mesma, responsáveis e cúmplices pelo cotovelo que meu pai apoiaria no balcão do bar, cigarro entre os dedos mágicos de graxa, pulso ancorado ao rosto entre queixo e orelha, esta que é direita, esta que é sempre direita e testemunha da infinidade de tragadas que não daria, que acabou nunca dando.

há alguns dias não fumo, interstício que faço pelos mesmos motivos sempre invisíveis ao dono do reflexo. acabo me desconhecendo numa espécie de ingenuidade concreta. meus passos sempre aos outros, existências que findam e se revelam aquele que fui. talvez agora seja filho, assim como meu irmão através de seus cigarros já quis ser pai. derretida a fumaça, esvai-se a consciência presente: o certo como certeza efêmera, clarão pleno que ilumina pra dimensionar o vazio sempre mais infinito. como se fosse apenas no instante que ainda sou pra deixar de ser, e largo os cigarros há alguns dias como alguém que não se conhece, que nunca fumou, que não pode ver em que imita o pai, em que tenta ser o irmão. fica o fim como responsável de mostrar a quem ouve o que foi que houve, o que às vezes nunca houve há alguns dias demais.

considero esse o começo, como se já não tivesse nunca fumado, como se já não tivesse nunca sido meu pai. a roupa da outra noite parecesse não ser minha, esse cheiro emprestado de alguém por fim passado. acabo presente apenas no enquanto que não me sei, e fica tudo suspenso como são suspensas as coisas quase aqui.  

The Kings Of Convenience - Homesick

sexta-feira, 26 de julho de 2013

rodapé

e por ter como espelho os próprios pensamentos, fazia do silêncio seu reflexo invisível. andar de olhos baixos como quem procura seu relance em janela, certeza provisória de um enquanto onde tudo está bem até o próximo vidro espelhado em azul, em nós. calado confirmava algum tanto por ainda existir, confrontava a imagem que lhe era com o desenho que julgava à ele ser feita. por só saber reparar, aprendeu a presença do que não existe. tudo pela possibilidade do fantástico. era durante as semanas em que conversava e se fazia ser visto que deixava de existir, passando transparente aos retratos avessos que qualquer superfície não podia, pelo momento de sua extensão, inverter na fidelidade contrária do refletido. talvez por isso tenha sido o único numa vida intercalada entre a presença física e a impossibilidade de ser: era, ou literalmente não o podia.

nos momentos em que se ausentava de si, vivia quaisquer que fossem os outros numa fé cega de fim próximo. moldava-se à imagem de quem devotava, numa esperança inconsciente de se ver outro no vidro do carro que passa, que nos leva embora de quem somos, de quem, no caso dele, tornava próprio. de se ver outro por simplesmente se ver. não sei. seus pensamentos invisíveis tomavam posse em sinais sempre diferentes. a verdade é que esquecia das delicadezas que lhe davam de volta ao que era, e na falta do que comparar, acreditava na impossibilidade de evitar os caminhos destinados à transparência de se ser. uma boa memória seria como fórmulas de mãe, de resultados infalíveis aos banhos quentes seguidos de sereno, à falta de sabor que a pressa deixa ou pela comida ou pela boca. nunca soube. nem ele, nem eu.

por ser quem é às vezes torná-lo outro, comportava todas as opiniões, todas as maneiras de segurar a manga da camiseta comprida quando sobrepunha algum suéter, alguma camisa. era a infinidade de tudo que devotava por não saber ter reflexo, por precisar ser quando não se era no propósito simples da existência. como ser vitrine do outro. tinha a predisposição do alfaiate quando encontrava com alguém, e conseguia se fazer presente enquanto dedicava toda a atenção em olhos de fita métrica, mensurando largura de ombros, fissuras deixadas pelo riso. a ideia leve do sorriso sempre se desfazia quando notava as marcas fundas que a alegria talhava ao rosto. por fim, tinha as medidas na cabeça pra incorporar atitudes alheias como um traje feito sob medida, mãos de artista, dom hoje deixado pra trás pela facilidade em se enquadrar tudo em moldes prontos. ser o molde pronto de outras pessoas era tudo que podia, já que nem o fantástico conseguiu vestir sua transparência. ou que não tinha. também não sei.

"por assim ser" lhe ser definição impossível, fica por assim que não só aos espelhos se faz invisível, mas a todos que o percebem apenas quando é outra pessoa. à mim próprio não é dado o direito de dizer que o conheço, já que só o sou quando é ausente desses pensamentos que lhe tiram de mim, que lhe tiram dele próprio e que não me deixam vestígios, iguais apenas na capacidade de serem esquecidos assim que acordo. é como se eu fosse outro por não poder ser refletido em mim, e nesse instante de consciência fico imerso em seu próprio silêncio meu de imagem invertida. acabo por me ser apenas quando não posso mais por assim, quando os pensamentos ainda não tomam conta. por de repente parecer despertar em baixo d’água, caminha de olhos baixos refletindo a incapacidade de ser ele próprio, onde só posso ser quem sou quando ausentes de nós.

"mas às vezes ainda espero você chegar"
carlos posada - província

quarta-feira, 19 de junho de 2013

retrato

dona Sara caminha combinando sobretudo e guarda chuva em um azul escuro. foge-me a tonalidade. sua filha passa por mim pouco antes, e tem dificuldade em abrir sua sombrinha cor de rosa. mochila nas costas, desprotegida de pingos desordenados. param ao meu lado na porta do bloco. comentam que precisam de uma nova sombrinha. poucas palavras. nem se despedem. poucas palavras são sinônimos de afinidade. todos os dias, pouco antes do meio dia, a filha de dona Sara caminha trôpega do nosso bloco até à condução da escola. todos os dias, desde os dias que consigo me lembrar. tem os olhos perdidos assim como os de João que é Francisco. vive em seu mundo particular, dividido em poucas afinidades com a solidão de dona Sara. filha dobra à esquerda, mãe à direita. fico embaixo da marquise, de pé, encostado à porta, me abrigando dos pingos que saem estilhaçados, desordenados que caem no chão, na mala desabrigada da filha de dona Sara.

subo as escadas e volto pra casa. vinte e oito degraus. o número de sorte de meu pai é vinte e sete. tudo pra ele é sempre perto, quase lá. penso se, assim como é difícil andar na chuva, há alguma dificuldade no voo dos pássaros. caminham de asas ainda assim, e voar ainda parece fácil, mesmo sob as gotas que logo nos tomarão o corpo, encharcando calçados pra encharcar meias.

abro a porta de casa e não tenho nenhuma conclusão. vai a dona Sara à direita e sua filha à esquerda. caminham pra logo voltar, começar tudo amanhã, pouco antes do meio dia. a chuva não muda muito as coisas. percebo pelos pássaros, de galho em galho sacudindo as penas, que em dias de sol não devem ser tão sacudidas assim. fico pensando qual é o número de sorte da dona Sara. são quarenta nove degraus até seu último andar. todos os dias combinando roupas, na desatenção da afinidade não notando os passos trôpegos de sua filha. cada uma a outra. trocam sempre poucas palavras comigo. estar parado vendo-as sair pouco antes do meio dia é detalhe na continuidade de seus dias, e por afinidade e meus poucos olhares, sinto-me elas. cada eu elas, e cada elas uma a outra, pontos da mesma linha.

quarta-feira, 12 de junho de 2013

sete luas

acho que nunca fui de ter preferências. assumo em minhas mãos e traços as marcas de meus vícios, de minhas manias. porém, controlo-as sem maiores exigências de tempo ou espaço. creio ter herdado esse jeito de meu pai. ao contrário dele, que satisfez seus desejos à mercê de uma vida que não lhe teve como prioridade, percebo meus passos cômodos desorientados de qualquer que seja a responsabilidade, e talvez por conta disso, ache em um sem fim de gostos e fumaças a saciedade de uma sede incerta. é comum encontrar em armários e gavetas algumas reminiscências minhas em formas diversas. cachimbos, cuias, canetas, isqueiros, peças de quebra cabeça: um sem fim de objetos que um dia foram destinados à ser parte franca do que sou. passaram. faço força por entre as estradas de dias ensolarados, que tão bem conseguem ilustrar os caminhos de nossas memórias, e me perco sem querer num fim de curvas que levam a qualquer que seja minha saudade, exceto às intenções que um dia atribuí nessa minha miscelânea fracassada. saio do banho e reparo um rosto marcado de expressões tão bem ensaiadas, tão bem esquecidas. à medida que o espelho se desvencilha do vapor, redescubro alguma tatuagem sem ter ao certo o significado das cores e das borboletas. “você sempre vai poder contar uma história diferente”. acho que quem disse foi o tatuador. as coisas só tem o sentido que o tempo deixa por onde passa. paciência.

reparo que, há algumas semanas, tenho impregnado minhas tardes de café. tudo meio acre. tanto o cheiro da casa como o gosto dos dentes. faço minhas coisas tendo substituído minutos por xícaras, e mantenho assim meus compromissos muito bem filtrados. o puro acaba nunca bastando. fervemos a água e tiramos dela todo resquício de transparência. precisamos que seja um pouco mais forte, um pouco mais quente. pensei que dessa vez daria certo, que me tornaria um tomador inveterado de café. estava usando sempre a mesma caneca, já acertava a quantidade de pó e o pouco de leite pra enganar o gosto, ganhar um aspecto encorpado mesmo que não saiba ao certo o que isso significasse. só por algumas semanas. devo ter cansado. hoje a caneca de meu pai não conseguiu bastar. peguei a de meu irmão. raras são as coisas dele que não me deixam completo. de ambos. homens de minha vida. bebo um gole e acho graça pensar que sempre me chamam pelo nome dele ao telefone. justificam a sentença em uma semelhança de voz. fico orgulhoso. sorrio e seguro sua caneca. sou meu irmão. posso atender o telefone e confirmar que quem fala é ele, e que claro, no horário combinado, tudo bem, pode deixar. o telefone não toca.

agora a noite tive vontade de fumar um cigarro. acabou. acendi a luz da cozinha e procurei de mãos no bolso. achei chá. fazia tempo que não tomava chá. pego a caixa, e com o fósforo quase incandescente ainda impregnando desenhos e cheiros, vejo a proporção de um sachê pra 200 ml de água fervendo. confirmo se a chaleira tem pelo menos o triplo da água que preciso. nunca sei quanto dela evapora, e a ideia de deixar a xícara meio vazia por falta de água me assusta. a casa toda está apagada, e depois de muitos anos, hoje faltou luz praticamente o dia todo. consigo diferenciar os móveis da sala com certa facilidade, mesmo que não seja noite de lua, e que as cortinas estejam bem fechadas. olhos acostumados. hoje ouvi meus pais conversando enquanto faziam a janta. sempre fazem isso, e eu nunca os tinha ouvido conversando ou muito menos fazendo a janta. meu pai e minha mãe à sombra de uma vela, ao som de alguma cebola ou alho grudando e cheirando a casa de infância. meu irmão dorme e não sabe quanta falta faz. percebo minha coluna reta e o olhar fixo em um parágrafo que não acontece, ainda que tente. fica no papel. acho que emprego toda minha capacidade de abstração em moldar minha figura com a de meu irmão, tanto na coluna, quanto em seus olhos fixos que nunca souberam abstrair. sinto falta dele.
   
seria mais fácil se tivéssemos aquelas chaleiras que assoviam. a nossa treme, e às vezes muito antes de começar a evaporar a quantidade de água que pode fazer falta na minha garrafa de café. digo, em minha xícara de chá. fico em dúvida, e é comum pegar uma faca e espiar pela tampa duas ou três vezes se já posso apagar o fogo. preciso pegar uma faca por que o puxador da tampa sumiu. de qualquer forma, espero e deixo as esperanças do café pra trás. talvez o chá. uma xícara por noite. quem sabe durante um filme. o tempo vai afinar o paladar. vou entender que a água precisa ser aquecida, e não fervida. aromas e sabores elucidarão o entendimento inerente necessário para a compreensão das cerimônias de chá orientais. isso. chá. fazia tempo que não tomava chá. na casa da mãe de meu pai foi onde eu devo ter feito meu último chá. ela tinha umas coisas engraçadas que eu provavelmente nunca saberei o nome. eram casinhas ou corações de metal com um infinidade de furos, e ela me ensinava a abri-los com a técnica que criança nenhuma pode aprender por ser criança e desengonçada, e enchia de algum chá que por vezes eu gostava, por vezes não. o chá dela não vinha naqueles pacotinhos de papel, e agora percebo que parecia muito com o fumo de cachimbo que tentei tornar parte minha. esse fumo deve estar por alguma gaveta. juro que a primeira aspirada que dou depois de pensar onde diabos foi parar esse fumo é sempre carregada de seu cheiro. já abri vários armários e achei outras tantas reminiscências, mas nunca esse fumo. é como se estivesse em uma infinidade de lugares, inclusive dentro dessas casas e corações de uma porção de furos que tinham um encaixe minúsculo que os cerrava com o chá que lembra meu fumo, e assim que imersos, de dentro deles emanava uma essência de cor sempre diferente, que apaixonava a água fervida e tornava o antes puro em chá. é claro que eu não pensava assim. só colocava um pouco menos de água do que a mãe de meu pai recomendava, e assim que tinha autorização, ia dissolvendo, uma a uma, o máximo de pedras de gelo que conseguia. misturava e misturava até que fosse possível virar tudo pela garganta, queixo e camisa sem me queimar. hoje percebo toda a imbecilidade de criança, movida por impulso e não pensamento, ainda que esses dois pareçam sinônimos.

tirando a aparência e a certeza na confusão que tenho por entre as curvas de minha estrada, não vejo relação alguma entre os chás da mãe de meu pai e do meu fumo perdido. fica pra trás um, perco outro, e acredito ser essa a ordem das coisas.

tenho as mãos no bolso, e a tremedeira da chaleira ameaça o sono da nossa casa que dorme. apago o fogo sem confirmar se a água estava fervendo. tenho certeza que não. esperar mais uma ou duas xícaras de café seria o ideal. é mesmo, parei com o café. preciso readequar meus padrões de tempo. na embalagem dizia de três a cinco minutos, conforme o gosto. deveria ter a opção “quatro minutos se você tem um gosto passível de qualquer satisfação”. eu queria um cigarro, mas acabou. decido por quatro minutos: metade do tempo que eu normalmente levo pra fumar um bom cigarro, mesmo que às vezes não seja tão bom assim. tem esses cigarros de menta, cravo, e mais uma porção de essências que prometem e não conseguem adocicar nada. prefiro cigarro sem sabor. prefiro chá mate. rio por parecer enxergar uma ponta de preferência. era uma da manhã quando afoguei os dois saquinhos de papel na xícara. quatro minutos. mexo pra dissolver o açúcar e penso em cubos de gelo. imbecil. essa caneca de meu irmão tem a borda de metal. passo o dedo por precaução. insuportavelmente quente. experimento. pareço fumar a ponta acesa de um cigarro. nem um pouco prático, mas talvez comece a satisfazer mais de uma vontade com apenas um gesto. preciso esperar. quem sabe um cigarro. acabou. imbecil. abro o freezer, e a gaveta do gelo ainda é cheia de resquícios esquecidos do último verão. olho os cubos rodarem e sumirem, o próximo sempre mais devagar que o anterior. por sorte a água evaporou da chaleira e a caneca de meu irmão não ficou tão cheia. já devo ter colocado umas quatro pedras e visto-as sumir em sua dança circular. passo o dedo na borda da xícara de meu irmão por pura precaução, e penso na mãe de meu pai. sinto falta dela, e pela garganta e queixo e camisa, de maneira incrivelmente imbecil, viro tudo em um gole só e apago a luz da cozinha. reconheço os móveis no escuro, e ando pela sala sabendo que amanhã meus olhos não desviarão meus pés dos barulhos que acordam essa casa que dorme. satisfeito, encontro minha cama. deixei o café de lado. meu tempo agora é marcado por cubos de água congelados se dissolvendo, e rindo, penso na mãe de meu pai e na minha imbecilidade como se fosse ontem. digo, como se fosse há menos de uma forma de gelo atrás.

fup - jim dodge

sábado, 25 de maio de 2013

árvores de outono

essa é a história de um homem. apenas uma história da vida de um homem que sempre é a vida de tantos outros homens, de tantas sempre outras histórias. conto-a pelos meus olhos. ainda não sei se por ser também minha, ou por ser grande parte daquilo que agora percebo.

“éramos os donas da rua”, e a fala excitada, os olhos já voltados às memórias difusas e recém desanuviadas da neblina do tempo, iam me cruzando pernas e braços, automaticamente alinhando postura e atenção, exercendo sobre o curioso a força que a sinceridade impõe. contava que acreditava ter cerca de onze anos, numa segurança temporal que tornava a história possível apenas nesse espaço de infância. deixou claro que havia uma certa inocência. diferente da que encontra em seus sobrinhos, da que vê na criança de mão dada à mãe por essas ruas sem movimento que dormem o Água Verde. eram todos donos de seus passos.

imagino cerca de vinte meninos, cada um com o mapa do bairro impresso na sola dos pés descalços. cada árvore escalada era responsável direta por tornar cada um mais corajoso. talvez houvesse futebol, qualquer outra brincadeira exclusiva à inocentes. acredito que não importa. sei que ele não soube me dizer quanto tempo duraram esses dias de meninice pura, muito menos fez questão de entrar em maiores detalhes. soube apenas me dizer que, de repente, houve uma ruptura. tentou explicar que a sensação daquela ingenuidade era como ouvir durante toda vida uma eterna música baixa, reparada só de quando em vez. ‘’a gente não sabia de que jeito éramos’’, e à criança nunca coube entender essa simplicidade. e ficou quieto e só pode me dizer que de um jeito extraordinário, pra cada um dos cerca de vinte meninos, o volume do que era detalhe foi levado ao máximo de uma só vez, e a vida passou a ser alta demais pra cerca de vinte pares de olhos que ainda não conseguiam entender o que era aquele som alto. como que por uma sincronia impossível, todos já bebiam demais, usavam drogas demais. porém, ainda crianças, ainda resplandecentes de uma infantilidade única. só lhe haviam aumentado o volume, e o som alto de tudo que era cinza na vida só podia incomodar o que ouvidos de criança não foram feitos pra entender.

cada rua era disputada com os meninos de onze anos do bairro vizinho. “a inocência é que era incrível”, e sinto que a partir de hoje, qualquer meio fio decorado de meninos sentados vai me lembrar essa rapaziada, descobrindo sensações, plenos e sinceros em panos com cola, em olhos e punhos machucados. não importava a ordem, não importava nada que não uma vida no ritmo dessa música que de repente ficou tão alta. eram crianças de onze anos, sem ser necessária maior precisão, rindo de um jeito que só a infância ensina, não entendendo de um jeito que só a infância embeleza.

acredito que durante toda essa infância acabou sendo verão. as ruas ficavam mais alaranjadas nos fins de tarde. talvez só nessa hora o volume baixasse, e cada um dobrava suas esquinas, entrava em casa e virava filho pra toda mãe que ainda reclama da roupa suja, que sente a casa inundada de uma inocência que sempre escorrega das mãos de mãe de um jeito inevitável. eram mães e filhos, e as coisas pareciam realmente certas demais.

não tinham dinheiro algum. nas mercearias, a inocência de seus onze anos era colocada em dúvida. tinham bolsos revistados, passos empurrados por olhares vigilantes. de qualquer forma, juntavam todas suas moedas ganhas de pais cansados, trocos esquecidos em bermudas do pão de todo fim de tarde alaranjado. talvez um ou dois dos cerca de vinte meninos já recebessem salários escassos, oriundos das primeiras vezes em que perdiam o tempo da brincadeira ensacolando compras, usando uniformes que deixam as crianças sempre tão iguais, inevitavelmente com a mesma cara de outono. ‘’cada um ajudava com o que podia’’, e chegava sexta-feira e iam até o centro somando moedas, desamassando notas embolotadas. o catalisador do fim de semana dependia da soma. foram raras as sextas e sábados e domingos de cocaína, de ritmo infinito, de mãos e corpos inquietos à procura de qualquer que fosse a coisa, como se sentissem o fim de qualquer tempo puro, como se fossem uma árvore à mercê do outono que sempre chega. na maior parte das vezes o dinheiro era pouco. usavam da criatividade, e recombinando remédios em copos de vinho, voltavam pra casa sempre de dentes tingidos, de inocência sempre alvejada do volume alto da vida.

penso na naturalidade com que tudo acontecia, de como foram inconscientes os passos que saíram puros de uma infância de onze anos e rumaram tortos à uma vida desmistificada, que nos faz sentir cada vez mais áspera a nossa árvore de memórias, cada vez com um punhado menor de lembranças puras penduradas em nossos galhos assimétricos. percebi a inconsciência do tempo para esses meninos como se fosse o verão de suas vidas, numa existência engessada em quatro estações, sempre ordenada em vida, morte, gestação e nascimento, ficando à cabo do acaso a responsabilidade de ter situado vinte meninos em uma mesma infância de verão eterno.

quando o outono chegou, não importava tanto o frio. o vazio era dos janeiros e fevereiros quentes que já não pareciam tão iluminados, tão de tardes alaranjadas, de raios de sol encaracolados. era tudo como se o sol tivesse olhos castanhos que ofuscassem numa leveza de carinho, marcando na retina um sorriso que fazia sorrir. faltava alguma coisa. os meios fios cada vez mais vazios, onde os corajosos que subiam as árvores mais altas da rua faziam tanta falta. quando o verão acabou, quando a sensação de ter onze anos já não era tão clara, veio um outono de drogas pesadas, com roubos que não deram certo, com uma sede de coragem nunca antes vista. os quase vinte já não eram mais tantos assim, e a covardia ficou parecendo necessária demais pra seguir o caminho de árvores secas, num outono rígido demais dentro do peito de cada um dos que sobravam vivos e covardes, livres e parados. por uma última vez todos os quase vinte meninos andaram juntos pela rua principal, dobrando esquinas aleatoriamente, tendo consciência que tiveram onze anos por tempo demais, e que chegar em casa já não transbordaria o peito da mãe da inocência de outrora, em um tempo onde as coisas eram certas demais pra não serem eternas.

e alguns foram presos, e outros morreram, e outros ainda usaram drogas demais e nunca conseguiram trazer de volta o olhar pra coisa alguma. eram os mais corajosos da lista antes organizada na destreza de subir em árvores. e os outros só podiam esquecer disso tudo, aprender enfim à entender todo esse som alto, à levantar dos meio fios e deixar os onze anos pra trás.

“não sei como fui virar professor”. sinto que ele poderia ter sido qualquer coisa. ele tem olhos de quem pode ser qualquer coisa. pode ser aquele a ser sempre o último a sair do bar. pode precisar ouvir o barulho das portas de aço, sentir cadeiras e mesas vazias pra finalmente se sentir em casa, sentir que o dia realmente valeu a pena. de fato, faz isso quase todas as noites. eu bato as portas, levanto cadeiras, e de mãos cheirando à chaves entro pela porta dos fundos sem precisar sequer levantar os olhos. meus ouvidos sempre dilatados no fim da noite. sei que o canto dele está sendo dele, que os olhos podem, mais do que nunca, ser qualquer coisa que quiserem. é como se de seu copo e garrafa emanasse uma mágica qualquer.

nessa noite sentei-me a sua mesa na vontade de dizer que o dia foi puxado, que ser garçom deve ter sido mais fácil em alguma outra época. sentei-me na esperança de ouvir qualquer coisa que não um pedido por um copo, por um cardápio, uma foto eternizando o vazio que cada um leva em forma de sorriso amarelo, cada um com sua árvore presa em um outono de pra sempre. sentei-me. tinha ainda as pernas descruzadas, braços apoiados atrás da minha cabeça sempre calma demais. a história dele ainda não era a minha, não era nada daquilo do que percebo. era como se, até aquele último suspiro cansado que soltei, eu ainda tivesse onze anos em um verão eterno de minha infância.

foi um sábado. diga-se de passagem que foi sábado, e diferente dos outros dias, ele havia chego cedo no bar. salão de festas fica no fundo, e naquele sábado, diga-se de passagem que era tudo diferente demais. conversas poucas dos primeiros que chegam, e eu organizava mesas e alinhava cadeiras achando o volume alto demais. parecia que a cerveja lá dentro durava mais tempo. que as risadas eram mais duras. que quaisquer que fossem as coisas. por mais sequenciais que obrigatoriamente fossem. paravam em pontos finais. de repente. eram sorrisos chagados, rostos marcados de alguma coisa pesada, que marcavam também os olhos dele, que sempre puderam ser qualquer coisa, e que ali existiam apenas estáticos, mudos como se ser qualquer coisa não tivesse nunca ter sido opção. e foi só depois disso que o dia acabou, que eu me senti cansado demais e cheio de cheiro de chave na mão. acho que, até ali, eu ainda tinha olhos de quem tem onze anos em um verão eterno.

e me contou, deixou as impressões de todo seu tempo. fez tudo sem me olhar, de copo na mão, de gestos estáticos. minhas pernas e braços já haviam sido cruzados pelo tom sincero. jogou os olhos nos meus, e eu tinha vontade de falar que eu ficava ali dentro à noite toda, e que meus tímpanos ficavam meio que abertos demais por um certo tempo. queria que ele falasse um pouco mais baixo, que esperasse eu me levantar e baixar um pouco esse volume que até agora tem me incomodado tanto, tanto. ‘’eu sou um cara bom’’, e realmente ele é um cara bom, e todas as pessoas que não estão mais no bar deveriam estar ali, compartilhando o volume extraordinário que as lembranças ganhavam na voz dele. e lhe sobra perceber e me contar que todo mundo que eu vi hoje, que me marcou os tímpanos naquela sensação pontual de chaga, de uma covardia compreendida, era quem sobrou dos cerca de vinte meninos que escondiam meios fios enquanto sentados e sorridentes. ‘’hoje foi um desses encontros de depois de muito tempo’’, e ele me diz de novo que se acha um cara bom, e que nunca entendeu por que diabos sempre teve tanta raiva dentro de si, por que não conseguia só entender que as coisas eram daquele jeito, que a revolta não sabia levar pra lugar nenhum. ‘’e tinha muita gente ali que tinha acabado de sair da cadeia, que cata lata pra poder continuar’’, e eu pensando que o outono doía mais por um dia já ter sido verão, e estar vivo não é motivo de tanto orgulho assim, já que nunca havia visto um salão de tantos olhares baixos, nunca havia visto um peito meu tão de verdade. e “a gente fazia muita merda”, ele me dizia, ”e hoje eu passei a tarde com toda essa galera que cresceu comigo, com toda essa galera que conseguiu ficar viva, por que a gente usava droga demais, e todo mundo que sobrou ali dentro sabe que é covarde, que pode ter acabado de sair da cadeia, como de fato aconteceu com dois ou três, mas que é covarde. quem escalava aquelas nossas árvores mais difíceis, quem sempre dividia a liderança da lista de coragem, esses sim já morreram, já não trazem atenção no olhar”. hoje eu senti que todo mundo ali sentia um pouco de vergonha de estar ali, que evitava comentar de quem tinha morrido por que não queria se ver como covarde, nessa vida que estar vivo não é mérito pra ninguém. “e sabe?, eu entendi uma coisa hoje”, e se eu que conseguir entender aquilo tudo era o cruzava mais meus braços, apertava mais minhas pernas. “eu sou um cara bom, e eu percebi que eu tenho uma coisa muito ruim aqui dentro, que acha o sistema uma bosta, que acredita que tá tudo errado, que o mundo tá errado. hoje eu entendi. é por causa deles, sabe? eu carrego aqui dentro todos esses caras que não tão mais com a gente, que me ensinaram a viver, que não foram covardes. hoje eu entendi” e ele chorou, e eu sorri de um riso que veio numa contração involuntária do meu rosto, e a gente se olhou, explorado e explorado, olho no olho, minha mão no ombro dele, e era carta demais em cima da mesa, era a vida dele não conseguindo mais não ser parte da minha, e a gente ficou mais puro, mais criança, mesmo tento desvendado essa magia toda que a gente vai colocando nos nossos dias cinzas.

e minhas pernas formigaram, e meus braços, pela primeira vez, despencaram do meu colo até o topo de minha cabeça que já não parecia ser assim desse jeito tão leve demais. a verdade é que tudo sempre esteve aqui. dá pra reconhecer as sensações. é como eu criança ganhando livros desde cedo, passando os olhos cedo demais pelas realidades que só conseguia sentir, ouvir num volume alto que não me dizia muita coisa. o meu herói acordava sempre de pijama cinza, escovava os dentes sem cor na pia que refletia o céu nublado pela única janela do apartamento. e eu não entendia que os livros de crônicas eram histórias separadas, e eu só podia acreditar sem entender que acordar num apartamento cinza era uma tarefa difícil, coisa de homem de coragem. toda criança quer ser seu herói.

e eu fui eternamente acordando e escovando os dentes e tomando café, de maneira inocente, de maneira infantil. meu cinza de criança sendo cimentado. eu em uma infância de onze anos em um verão que sempre foi cinza em minha árvore nunca antes percebida. até que o outono toma conta de toda a cabeça, seja a cabeça o solo onde todo homem tem sua árvore de lembranças plantadas. o frio na barriga agora faz sentido, longe de ser uma legião de borboletas que tão bem imitam anjos, longe de ser qualquer coisa que não uma árvore em um outono que parece ter começado justo na hora que meus braços despencaram até minha cabeça.

um dia, vem o estalo. não é a questão de ser o que um dia moldamos, essa continuidade organizada, caminho guiado por passos que desbravam corredores de ônibus logo pela manhã na busca de bancos livres, de assentos com vista preferencial para os pontos que cada dia vão ficando mais pra trás. é, de fato, se ver sendo o que nunca tínhamos percebido ser, e que de fato fomos, e que de fato agora explica todo esse conjunto de fatos que cruzou meus braços e pernas, que colidiu os olhos daquele que ainda agora pode ser qualquer coisa, com meus olhos que agora entendem o caminho de meus pés, entendem meu herói de crônicas cinzas.

levantei. lembrei de baixar os braços pra pegar a chave do carro, colocar a camisa. fazia frio. a porta dos fundos precisa ser aberta sempre com as duas mãos. empurra, gira a maçaneta. frio. o portão é de ferro e ferrugem, e deixa minha mão com cheiro de chave. meu último cigarro sempre tem cheiro de chave e fumaça. entro no carro. dou a partida e arranco. arranco de mim toda ideia de verão, toda ideia de ter onze anos. naquela noite, que de passagem acabou sendo sábado, olhei pra minha árvore com os olhos de um homem que me ensinou a ter olhos de quem pode ser qualquer coisa.

naquele sábado começou meu outono.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

vamos nos jogar onde já caímos

só te agradeço, meu irmão. fica na boa.

paulinho moska - tudo novo de novo

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

A casa de nossa Vó

Na casa de nossa vó tudo foi feito aqui, na cidade mesmo. Telhas, tijolos, grama, mangueira. De fora, talvez só a poeira e algumas outras saudades. Saudades nossas, não dela. Vendo bem, até as saudades que tenho dela, inventadas lá longe, ao sul de minha infância, acabam sendo daqui. Uma casa original, dela e da cidade, sem saber qual pertence a quem primeiro. Talvez por vó ser daquelas que termina a vida indo de um jeito que fica pra sempre. Por conta disso é, e não foi. Ainda lava sua roupa, frita ovos, esquece nomes junto das chaves, caixas e cartas que um dia devem ter sido tão esperadas. A dor da morte deixou com a gente, de esperta e inocente que sempre foi, dessa traquinagem que ainda leva no olhar.
Falo dela como quem entra em um quarto depois de muito tempo, ou sente só o rabo de algum cheiro que foi guardado apenas como cheiro, sem imagem ou som ou qualquer outro sentido em forma de memória.  Vou lidando com estranhamentos, aceitando essas sensações esquisitas que as coisas já esquecidas dão bem no meio da nossa cabeça. Talvez seja a incompetência que me leva os ouvidos, pega meus olhos desatentos que toda alma tem e assim me abre o peito pro universo de coisas que pode ser fantasiada. Sinto os sinos da igreja da Rua 5, vultos por entre portas encostadas, e tudo parece verdade. Nunca fui bom em nada, e de vez em quando as coisas me convencem disso mesmo: só comum e desinteressado. Sempre incompleto demais, tendo de encarar tudo de ordinário que vai e não sai de minhas mãos e unhas e intenções de meio de estrada. Almejo sempre pouco, e ainda assim acaba não dando. Não por nada não, como dizem as pessoas daqui, mas por simplesmente não poder dar.
Deve ser por isso gosto tanto dessas ruas. O cigarro serve só pra passar o tempo, o sol pra secar as roupas sempre tão lavadas e as vontades que acabam ficando sempre pela sombra numa cidade iluminada de sol e calor e toda essa coisa que aperta bem o meio da minha cabeça. A vida aqui passa, numa redoma onde a constância predomina, sem poder ser eterna, sem poder ser percebida ou medida ou qualquer coisa que não seja passar num ritmo sempre engraçado. A cada hora o tempo parece roubar cinco minutos, como se o encarregado da passagem não gostasse dos badalos quem anunciam o fim eterno de uma hora e o começo promissor de outra, e por conta disso avançasse sempre o ponteiro do relógio cinco minutos, evitando o soar dos sinos e distorcendo as horas que há muito tempo devem ser sobrepostas.
Meu vínculo com essa terra de vales vem de minha mãe, que sabe de tudo isso desde sempre. Percebeu numa sabedoria surpreendente, calada. Sonho comigo que quando encontrar seus olhos de esperança de novo, antes mesmo de desfazer minha mala e lhe entregar todos os abraços endereçados a ela, a gente vai se entender numa cumplicidade própria daqui, que ninguém nunca vai poder entender, que vai ser só nosso. Aos outros um simples jeito de quem é de fora, a nós os traços de quem não pode ser de outro lugar. Na sala da casa de minha mãe, por entre seus anjos e cristais e todos os artefatos que materializaram suas saudades, tem um canto de cômodo, com sua mesa de canto de cômodo, com sua foto de minha mãe cheia desse mesmo olhar que descobri só aqui. Moça, forte, sorridente, assim como ainda é hoje. Um pouco chagada da vida, do peso dos filhos e da vida que já foi tantas. Foi minha tia que sempre me desvendou essa mulher do retrato, que me contou seus sonhos, seus passos retos de tropeços que abriram meu caminho ao que somos hoje, eu e meu irmão, iguais no silêncio assim como são todos os irmãos, assim como minha tia também é a foto de minha mãe,moças, fortes e sorridentes, chagadas e iguais em seus sorrisos de cerveja.
Aqui o sol queima, o ritmo cala, e tem essa alguma coisa que mexe no olhar da gente, que muda nosso jeito pra sempre assim que pegamos nossa passagem de volta no guichê da rodoviária. A atendente percebe, e não diz nada não por não querer, mas por acreditar que essa cratera no olhar é coisa que todo mundo sabe, entendimento popular, tipo um prato típico, um significado de sonho. Vó sabe, tia sabe, meu primo tenta até explicar, mas não sei. Talvez o olhar de minha mãe responda, clareie, faça tudo simples como as brincadeiras da menina da casa do lado, casa séria de menina feliz, grades altas que viram brinquedos nessa menina que olha rápido e some de repente, sem respeitar nenhuma ordem dessa casa séria que deve ter um punhado de horários.
Nossa vó pendura umas roupas no varal, olha de canto e some pra dentro de casa. Acho que me conta que o centro da cidade é chamado de “rua”. Até tem seu próprio trânsito, suas buzinas, seu ritmo de meio tarde, seus ônibus de fim de expediente de portas de lojas pequenas sendo trancadas e não conferidas. Nunca vi ninguém conferir nada por aqui. Ainda assim, os rostos são os mesmos, a cadência por pouco é vista lenta e com um pra sempre engraçado, e os ônibus são tão pontuais como o sol indo embora, trazendo cadeiras de praia e senhoras e senhores e crianças de banho tomado, sentadas em suas calçadas mornas, transpirando o suor do asfalto que é pra sempre tão quente demais, refugiado nas sombras dos postes, por de baixo das calçadas meladas de flores e de senhoras e senhores e crianças que já precisam entrar pra tomar outro banho. 
A água daqui esquenta no copo, as lagartixas correm de sombra em sombra, e todos só me riem e dizem que hoje ainda tá ventando e que tem dia que tudo fica tão quente que não dá nem pra perceber o tempo e fica até parecendo que esse moço que cuida pros dias irem e voltarem fica meio preguiçoso e então a gente fuma pro tempo passar e joga uma água no asfalto e ele evapora de um jeito engraçado assim que fica até parecendo que ele fuma também e fica amigo da gente e quando a gente vê parece mesmo que a noite chegou mais depressa. E penso que hoje ainda tá ventando, e já não sei mais se sou eu ou eles ou a mesma mistura.
Parece que as pessoas daqui não existem. Todas as vezes que vim pra cá era fim de ano, de escolas fechadas e praias e casas de parentes de outras cidades abarrotadas. Acho que só eu venho pra cá nesses dias engraçados. Vejo uma cidade, sinto outra, e ouço ainda uma que não se encaixa muito bem entre as outras duas. Acabo fazendo da terra da casa de nossa vó uma cidade que é impossível de existir, por ter sido feita muito pouco do que vejo de meus olhos de adulto, e sim da miscelânea maluca e sem sentido da cidade que só sabe existir quando não estou por aqui, e que meu primo afirma ser diferente dessa que vem das lembranças quando sinto o cheiro de flores nos raros dias de calor lá do sul, quando entro em algum ônibus que entra estrada afora, quando embarco em aviões que me deixam apavorado demais e com tempo de menos pra pensar que aqui talvez não exista mesmo, e os sinos que tocam da igreja da Rua 5, de hora em hora, devem ser meu despertador da vida real, ao lado de minha cama de solteiro do quarto que ainda divido com meu irmão e que meu irmão divide comigo e com o amor de minha vida. Por fim, a dor no meio de minha cabeça chega mansa e fuscas estacionam por sobre as calçadas pra não estreitar as ruas já meio estreitas.
Poucos parecem se arriscar até a rua entre qualquer hora do dia que não seja uma das horas da noite. Talvez na rua seja diferente, mas aqui, no bairro de minha vó, são realmente poucos os mulatos sem camisa que passam pelo asfalto de pele quente, descrentes do alívio efêmero nas poucas sombras de árvores que blindam o sol contra minha pele virgem. Devem ter deixado de se queixar disso tudo há muito tempo, e agora calam e alguns trabalham e a maior parte fica dentro de suas casas de janelas lindas e sempre abertas na esperança de que haja uma brisa que carregue o tempo amorfo, que traga de quebra a noite que revigora e que é carnaval e catarse toda santa noite de cadeiras de praia e espera até que chegue a hora da novela que começou na semana passada e que já conquistou toda a rua e os vizinhos das ruas de cima e das ruas de baixo.
Nos bares a cerveja é mais barata que no sul, e talvez seja isso pela ausência da alegria das cervejas daqui durante o processo de fermentação e mistura dos demais ingredientes. Por aqui não se fica bêbado de cerveja. Parece mesmo que só a cachaça salva, a melosa que dá fluidez nessa vida estancada. Não é possível beber devagar e muito menos sozinho, já que a garrafa esquenta rápido demais e a cerveja meio gelada é enlaçada na dança dos copos mornos que encontram as mãos dos mulatos sem camisa. Rodadas e mais rodadas de garrafas que enchem sempre um copo de vários, infiéis e fadadas a várias sedes insaciáveis que nunca serão saciadas, já que o dono do bar Onze fica com calor demais, baixa suas portas e vai pra sua casa que fica logo nos fundos com as janelas encostadas. Fuma vendo um pouco menos da metade da novela, até que chega a hora de ir dormir, que nunca chega cedo ou fresca, e no caminho que é marcado pelo levantar do sofá, o dedo no botão da televisão e a caminhada pelo curto corredor que liga a sala ao quarto, se arrepende e decide levantar as portas do bar, e os mulatos sem camisa guardam suas cadeiras de praia em casa, e quase inconscientemente formam grupos de quatro pessoas, pegam seus copos sempre os mesmos e tomam mais alguns primeiros copos de outras várias garrafas infiéis.
Nesse montar de imagens, sinto falta de alguns punhados de grama nos quintais das casas que por aqui sempre tem quintais. Havia pés de carambola e minha sina de nunca ter gostado de carambolas, apenas dos mosquitinhos pretos que viviam entre folhas e frutas e que chamávamos de leopoldos, dóceis de serem pegos nos dedos, admirados, pousados sempre em todo meu corpo e no corpo de meu primo, onde o vencedor tinha sempre um ou dois bichinhos a mais pousados em braços e pernas. Hoje penso que nunca percebemos os leopoldos emaranhados em nossos cabelos, que até pouco tempo atrás me davam comichões na cabeça enquanto se desprendiam de minhas lembranças e voltavam voando para o pé de carambola que já não existia mais. Quem de nós dois realmente ganhava nossa disputa por leopoldos? Sem saber ando olhando o topo de qualquer árvore pra ver se encontro qual delas virou o pé de carambola da casa de nossa vó.
Acho que naqueles tempos via tudo melhor, as coisas como realmente eram, sem fantasia, sentindo mesmo a água da torneira mais gelada que agora. Havia menos formigas, grandes e vermelhas e pretas e pequenas que hoje não me incomodam tanto assim. Talvez por conta do meu esforço de criança, armado de dedos e chinelos e pés descalços atrás de qualquer ponto meio imóvel, tardes e tardes de guerras intermináveis, armisticiadas apenas nos dias de futebol na rua. Hoje elas me sobem, me coçam, e desconfio até que algumas poucas me mordam, enquanto passivo, assim como criança que desejou ser sempre criança, vejo tudo de um jeito infantil, percebo esse raro começo de tarde nublado e sei que não vai chover por que só sei inventar e assim brinco que o sol escondido logo vai evaporar todas essas nuvens que são resquícios de outro raro dia nublado e assim as nuvens acabam se tornando outras nuvens que já foram muitas outras tantas vezes. Talvez agora sejam apenas algodão ou tufos de qualquer outra coisa branca e intocável, ignoradas por que o amarelo do sol deixa o céu sempre azul demais e machuca os olhos dos senhores e senhoras e meninas lentas e graciosas que já há muito não levantam os olhos, há muito não buscam os pedaços de alma flutuantes que não tem muita utilidade e que não se sabe se é a terra que gira ou elas que caminham do jeito devagar que se caminha por aqui.
Hoje choveu, e o cheiro que as coisas soltam pra saudar a chuva provavelmente vai impregnar tudo por tempo demais, tanto na rua como aqui dentro de minhas lembranças. É engraçado ver tudo molhado, meio impossível, meio fantástico. Tudo ganha outro aspecto, outro jeito de parecer. As pessoas já não são as mesmas, e a tensão de que tudo volte ao normal parece eminente, parece certa demais pra qualquer idéia vaga de esperança, de que tudo seja do jeito que não deva ser. Acho que os sonhos secos de antes se manifestam nessas horas, todos ao mesmo tempo e extremamente claros aos olhos das pessoas, que se enxergam e não entendem que diabos há no olhar de todas essas pessoas paradas, olhando pra cima, redescobrindo o céu, redescobrindo todos os jeitos e formas que já foram e ficaram deixadas há tempo demais, idéias que chegam com aquela dor bem no meio da cabeça que é comum pra todo mundo, que não precisa ser explicada e é passível apenas da junção da surpresa com o incerto do fim da chuva, do frescor do asfalto e dos corrimões e dos capôs dos carros fechados que mantém por dentro o calor amorfo em saudades e maneiras, ainda que o lado de fora pareça úmido e gracioso e diferente. Os carros daqui são exatamente como as pessoas.
Sempre acreditei que se caso encontrasse meus chinelos, batesse o cadeado no portão que precisa sempre de um empurrão um pouco firme – na verdade não chega a ser firme, e assim é quase uma forma sutil de força -, e fosse subindo a rua até quase a esquina, chegaria à casa de azulejos azul escuro, eternizados pelos primeiros desenhos de nossas brincadeiras quase inocentes de tão leves que pareciam ser. Agora pareço perceber que essa lembrança é uma daquelas desprovidas de sentido. Não pode ser vista, nem ouvida, não tem cheiro de perfume doce e nem textura de pele no verão. Chego a duvidar até que existiu, de tão transparente e inodora e não fria e nem quente que é. Talvez seja um estímulo de sorriso, a eclosão da primeira borboleta dos milhares de borboletas que de vez em quando inundam nossos estômagos. Não sei. Algo que realmente não exista e que esteja longe de qualquer conceito de realidade e decência, algo dividido que seja apenas de um, injustamente indivisível nessa metade, dignamente do peito e do meio da cabeça de quem acredita que o que não tem forma possa realmente ter existido. Dessa forma, ou de qualquer outro jeito que possa ser explicado, dentro de corpo e mente incompletas de quase homem que sou, sinto o pique esconde, a nossa fidelidade de baixo da rampa da tua casa, silêncio que se preciso seria eterno, guardiões que fomos da nossa fortaleza cúmplice, da nossa certeza um no outro de que sairíamos dali apenas na hora certa, na disparada de criança que aprende a disparar por razões inatas, e assim seria por que assim precisava ser, não havia jeito, nem fuga, nem nada que pudéssemos fazer para que todos aqueles pares de segundos não fossem eternos nessa cidade que não comporta eternidade e só sabe ser passageiramente pra sempre na vida de quem volta em busca de concretizar resquícios, de cimentar a fluidez das sensações, de construir algo tão daqui como todas as casas, erguendo muros de segurança em nosso peito tão repleto de certezas não tão boas quanto os olhos que julgo serem os seus, que obrigo a serem os seus antes mesmo de te ver descendo a rua todas as noites, nessa espera ancorada no banco de madeira de nossa vó, de garrafas de cerveja de apenas um copo que acabam sendo só minhas, minhas e de mais ninguém, assim como você me é sem mesmo saber, sem mesmo que eu saiba se foi você, se tudo isso foi com você ou com a antiga dona dessa casa de azulejos azuis que acabou confundindo a cabeça de todos os senhores e senhoras e crianças que não sabem quando precisarão tomar outro banho. Tudo pode ter mudado há tempo demais e ainda assim ter sido ontem, incerto e de qualquer forma de uma verdade acreditada.
Hoje, no ponto de ônibus, senti de novo o peso dos seus olhos outra vez, e como quem acende a luz do quarto em noite sem lua, você brilhou.
Não sei de ninguém. A gente sempre precisa correr pra longe se quer chegar até nosso deus, que parece tanto com essa sombra da gente no asfalto. Creio que grande parte daquelas pessoas já tenha ido embora, e nesse meio alguns resolveram mesmo morrer de vez, sem jeito ou chance, assim certeiros. Pra mim é mais esquisito lidar com os novos telhados dos vizinhos, com a insegurança que substitui a confiança nos rostos e sorrisos antes tão amigos. Alguns poucos me abraçam e se enchem os olhos de lágrimas que não sei há quanto tempo estavam ali guardadas, por saudade de antes, por lapso de consciência que faz a mesmice daqui parecer mesmo diferente, meio incerta. Será que faz tanto tempo assim?, percebo por de trás de minhas máscaras, e não grito e só escrevo que já faz tempo demais mesmo e que o telhado novo da casa do lado não combina com o telhado antigo dessa redoma que é a Rua 2 de dentro de mim.
Uma tristeza, daquelas bem azuis, pega a gente pelo pé desde a hora que a gente acorda. Ajuda a arrumar o travesseiro e esticar a colcha nessa terra de sem cobertas. As formigas são parte de tudo, e qualquer que seja o pensamento bonito que passe correndo bem no meio da nossa cabeça, um punhado de borboletas começa a aparecer pelo quintal. Sempre amarelinhas e com a borda das asas pretas, borda essa tão fina que lembro dos teus olhos maquiados, castanhas envoltas da borda dessas borboletas do pensamento bonito. Logo a tristeza volta, do céu nublado dessas nuvens que talvez não saibam que já foram e serão apenas outras nuvens, destino esse tão parecido com o nosso. Diferente talvez só as formigas, de por tudo, de pelo cimento da casa de nossa vó e toda a terra vermelha e nossas roupas e paredes. São mesmo tão presentes como essa tristeza de por todo lugar, que não quer fazer nada a ninguém, mas é de um azul tão triste que vai deixando a gente triste, até que já não se sabe mais quem começou com todo esse silêncio primeiro.
Creio que a cidade me expulsa. Nada de maldade, longe disso. É como se não desse mais tempo, e pronto. Talvez pelo ciúme que essas ruas têm das ruas que ficaram imunes ao tempo, guardadas em mim e que, agora, parecem tão intactas, até mais impossíveis do que antes, como se recordar não fosse uma opção. Tem chovido tanto nesses últimos dias, e as formigas parecem mais zangadas, inquietas. O sol acha brechas nas nuvens e denuncia o trabalho das aranhas, antes imóveis, impressionadas com o vento que nunca não soprava e que agora derruba roupas dos varais no chão molhado. Talvez seja essa a cidade de meu primo, onde as lagartixas me dão as costas e ficam paradas longe das sombras, sempre às vistas, sonhando com borboletas que tanto voam por aqui, procurando os traços de minhas marcas de saudades, agora tão certas que poderiam até ser invisíveis e indeléveis, sem meio termo. Aqui se vê que as coisas todas já aconteceram há tempo demais, e.
Alguns poucos ainda descem de suas motos, param de frente ao portão de nossa vó pra me dar, sem perceber, talvez suas maiores riquezas, talvez a maior sinceridade em alegria e cumprimento, polegar em riste, dentes em sorriso, sem que eu perceba que já até respondi, achando graça em ainda não ser nem sexta-feira, amor, não ser nem dia de simpatia. Quem sabe aqui seja sempre sexta-feira, dia de bloco na rua, carnaval de cidade pequena, tristeza de gente grande. Parece que já me despedi das pessoas, da cidade que é essas pessoas, e posso até antecipar minha passagem de daqui uns dias, sair na hora da novela, passarinho recolhidos, e tá tudo certo. Ainda tem uns dias, fala minha tia, brinca meu primo, olha nossa vó. Parece ser saudade de casa, saudade do amor de minha vida, mas é essa coisa da moça do guichê da rodoviária. Preciso dos olhos de minha mãe, da fotografia do móvel de canto de cômodo, da minha tia que até fora da foto é tanto minha mãe. Vou esperar, ir pra casa sabendo que meu lugar é aqui, que minha volta já tava certa antes do dia que fiquei bêbado e lembrei da menina que dividiu meu primeiro amor comigo, do susto dessas lembranças não terem mais forma, nem gosto ou cheiro, e serem só essa vontade de sentar na mesa de mármore do quintal de nossa vó, silenciar, cumprimentar a rua recortada no portão enferrujado. Volto pra casa ficando aqui, levando esse olhar de cratera, essa saudade, esses alguns leopoldos emaranhados em minha barba emaranhada. Minto. Volto pro sul. Minha casa é aqui. Minha vida é Cachoeiro.


Cícero e Sérgio Sampaio, graças às suas músicas com som de sonho.
Para Edna, Sandra e Pablo: minhas mães e irmão. E nossa Vó.