quarta-feira, 19 de junho de 2013

retrato

dona Sara caminha combinando sobretudo e guarda chuva em um azul escuro. foge-me a tonalidade. sua filha passa por mim pouco antes, e tem dificuldade em abrir sua sombrinha cor de rosa. mochila nas costas, desprotegida de pingos desordenados. param ao meu lado na porta do bloco. comentam que precisam de uma nova sombrinha. poucas palavras. nem se despedem. poucas palavras são sinônimos de afinidade. todos os dias, pouco antes do meio dia, a filha de dona Sara caminha trôpega do nosso bloco até à condução da escola. todos os dias, desde os dias que consigo me lembrar. tem os olhos perdidos assim como os de João que é Francisco. vive em seu mundo particular, dividido em poucas afinidades com a solidão de dona Sara. filha dobra à esquerda, mãe à direita. fico embaixo da marquise, de pé, encostado à porta, me abrigando dos pingos que saem estilhaçados, desordenados que caem no chão, na mala desabrigada da filha de dona Sara.

subo as escadas e volto pra casa. vinte e oito degraus. o número de sorte de meu pai é vinte e sete. tudo pra ele é sempre perto, quase lá. penso se, assim como é difícil andar na chuva, há alguma dificuldade no voo dos pássaros. caminham de asas ainda assim, e voar ainda parece fácil, mesmo sob as gotas que logo nos tomarão o corpo, encharcando calçados pra encharcar meias.

abro a porta de casa e não tenho nenhuma conclusão. vai a dona Sara à direita e sua filha à esquerda. caminham pra logo voltar, começar tudo amanhã, pouco antes do meio dia. a chuva não muda muito as coisas. percebo pelos pássaros, de galho em galho sacudindo as penas, que em dias de sol não devem ser tão sacudidas assim. fico pensando qual é o número de sorte da dona Sara. são quarenta nove degraus até seu último andar. todos os dias combinando roupas, na desatenção da afinidade não notando os passos trôpegos de sua filha. cada uma a outra. trocam sempre poucas palavras comigo. estar parado vendo-as sair pouco antes do meio dia é detalhe na continuidade de seus dias, e por afinidade e meus poucos olhares, sinto-me elas. cada eu elas, e cada elas uma a outra, pontos da mesma linha.