Na casa de nossa vó tudo foi
feito aqui, na cidade mesmo. Telhas, tijolos, grama, mangueira. De fora, talvez
só a poeira e algumas outras saudades. Saudades nossas, não dela. Vendo bem,
até as saudades que tenho dela, inventadas lá longe, ao sul de minha infância,
acabam sendo daqui. Uma casa original, dela e da cidade, sem saber qual
pertence a quem primeiro. Talvez por vó ser daquelas que termina a vida indo de
um jeito que fica pra sempre. Por conta disso é, e não foi. Ainda lava
sua roupa, frita ovos, esquece nomes junto das chaves, caixas e cartas que um
dia devem ter sido tão esperadas. A dor da morte deixou com a gente, de esperta
e inocente que sempre foi, dessa traquinagem que ainda leva no olhar.
Falo dela como quem entra em um
quarto depois de muito tempo, ou sente só o rabo de algum cheiro que foi
guardado apenas como cheiro, sem imagem ou som ou qualquer outro sentido em
forma de memória. Vou lidando com
estranhamentos, aceitando essas sensações esquisitas que as coisas já
esquecidas dão bem no meio da nossa cabeça. Talvez seja a incompetência que me
leva os ouvidos, pega meus olhos desatentos que toda alma tem e assim me abre o
peito pro universo de coisas que pode ser fantasiada. Sinto os sinos da igreja
da Rua 5, vultos por entre portas encostadas, e tudo parece verdade. Nunca fui
bom em nada, e de vez em quando as coisas me convencem disso mesmo: só comum e desinteressado.
Sempre incompleto demais, tendo de encarar tudo de ordinário que vai e não sai
de minhas mãos e unhas e intenções de meio de estrada. Almejo sempre pouco, e
ainda assim acaba não dando. Não por nada
não, como dizem as pessoas daqui, mas por simplesmente não poder dar.
Deve ser por isso gosto tanto dessas
ruas. O cigarro serve só pra passar o tempo, o sol pra secar as roupas sempre
tão lavadas e as vontades que acabam ficando sempre pela sombra numa cidade
iluminada de sol e calor e toda essa coisa que aperta bem o meio da minha
cabeça. A vida aqui passa, numa redoma onde a constância predomina, sem poder
ser eterna, sem poder ser percebida ou medida ou qualquer coisa que não seja
passar num ritmo sempre engraçado. A cada hora o tempo parece roubar cinco
minutos, como se o encarregado da passagem não gostasse dos badalos quem
anunciam o fim eterno de uma hora e o começo promissor de outra, e por conta
disso avançasse sempre o ponteiro do relógio cinco minutos, evitando o soar dos
sinos e distorcendo as horas que há muito tempo devem ser sobrepostas.
Meu vínculo com essa terra de
vales vem de minha mãe, que sabe de tudo isso desde sempre. Percebeu numa
sabedoria surpreendente, calada. Sonho comigo que quando encontrar seus olhos
de esperança de novo, antes mesmo de desfazer minha mala e lhe entregar todos
os abraços endereçados a ela, a gente vai se entender numa cumplicidade própria
daqui, que ninguém nunca vai poder entender, que vai ser só nosso. Aos outros
um simples jeito de quem é de fora, a nós os traços de quem não pode ser de
outro lugar. Na sala da casa de minha mãe, por entre seus anjos e cristais e
todos os artefatos que materializaram suas saudades, tem um canto de cômodo,
com sua mesa de canto de cômodo, com sua foto de minha mãe cheia desse mesmo
olhar que descobri só aqui. Moça, forte, sorridente, assim como ainda é hoje.
Um pouco chagada da vida, do peso dos filhos e da vida que já foi tantas. Foi
minha tia que sempre me desvendou essa mulher do retrato, que me contou seus
sonhos, seus passos retos de tropeços que abriram meu caminho ao que somos
hoje, eu e meu irmão, iguais no silêncio assim como são todos os irmãos, assim
como minha tia também é a foto de minha mãe,moças, fortes e sorridentes,
chagadas e iguais em seus sorrisos de cerveja.
Aqui o sol queima, o ritmo cala,
e tem essa alguma coisa que mexe no olhar da gente, que muda nosso jeito pra
sempre assim que pegamos nossa passagem de volta no guichê da rodoviária. A
atendente percebe, e não diz nada não por não querer, mas por acreditar que
essa cratera no olhar é coisa que todo mundo sabe, entendimento popular, tipo
um prato típico, um significado de sonho. Vó sabe, tia sabe, meu primo tenta
até explicar, mas não sei. Talvez o olhar de minha mãe responda, clareie, faça
tudo simples como as brincadeiras da menina da casa do lado, casa séria de
menina feliz, grades altas que viram brinquedos nessa menina que olha rápido e
some de repente, sem respeitar nenhuma ordem dessa casa séria que deve ter um
punhado de horários.
Nossa vó pendura umas roupas no
varal, olha de canto e some pra dentro de casa. Acho que me conta que o centro
da cidade é chamado de “rua”. Até tem seu próprio trânsito, suas buzinas, seu
ritmo de meio tarde, seus ônibus de fim de expediente de portas de lojas pequenas
sendo trancadas e não conferidas. Nunca vi ninguém conferir nada por aqui.
Ainda assim, os rostos são os mesmos, a cadência por pouco é vista lenta e com
um pra sempre engraçado, e os ônibus
são tão pontuais como o sol indo embora, trazendo cadeiras de praia e senhoras
e senhores e crianças de banho tomado, sentadas em suas calçadas mornas,
transpirando o suor do asfalto que é pra sempre tão quente demais, refugiado
nas sombras dos postes, por de baixo das calçadas meladas de flores e de
senhoras e senhores e crianças que já precisam entrar pra tomar outro
banho.
A água daqui esquenta no copo, as
lagartixas correm de sombra em sombra, e todos só me riem e dizem que hoje ainda tá ventando e que tem dia que
tudo fica tão quente que não dá nem pra perceber o tempo e fica até parecendo
que esse moço que cuida pros dias irem e voltarem fica meio preguiçoso e então
a gente fuma pro tempo passar e joga uma água no asfalto e ele evapora de um
jeito engraçado assim que fica até parecendo que ele fuma também e fica amigo
da gente e quando a gente vê parece mesmo que a noite chegou mais depressa. E
penso que hoje ainda tá ventando, e já não sei mais se sou eu ou eles ou a
mesma mistura.
Parece que as pessoas daqui não
existem. Todas as vezes que vim pra cá era fim de ano, de escolas fechadas e
praias e casas de parentes de outras cidades abarrotadas. Acho que só eu venho
pra cá nesses dias engraçados. Vejo uma cidade, sinto outra, e ouço ainda uma
que não se encaixa muito bem entre as outras duas. Acabo fazendo da terra da
casa de nossa vó uma cidade que é impossível de existir, por ter sido feita
muito pouco do que vejo de meus olhos de adulto, e sim da miscelânea maluca e
sem sentido da cidade que só sabe existir quando não estou por aqui, e que meu
primo afirma ser diferente dessa que vem das lembranças quando sinto o cheiro
de flores nos raros dias de calor lá do sul, quando entro em algum ônibus que
entra estrada afora, quando embarco em aviões que me deixam apavorado demais e
com tempo de menos pra pensar que aqui talvez não exista mesmo, e os sinos que
tocam da igreja da Rua 5, de hora em hora, devem ser meu despertador da vida
real, ao lado de minha cama de solteiro do quarto que ainda divido com meu
irmão e que meu irmão divide comigo e com o amor de minha vida. Por fim, a dor
no meio de minha cabeça chega mansa e fuscas estacionam por sobre as calçadas
pra não estreitar as ruas já meio estreitas.
Poucos parecem se arriscar até a
rua entre qualquer hora do dia que não seja uma das horas da noite. Talvez na rua seja diferente, mas aqui, no bairro
de minha vó, são realmente poucos os mulatos sem camisa que passam pelo asfalto
de pele quente, descrentes do alívio efêmero nas poucas sombras de árvores que
blindam o sol contra minha pele virgem. Devem ter deixado de se queixar disso
tudo há muito tempo, e agora calam e alguns trabalham e a maior parte fica
dentro de suas casas de janelas lindas e sempre abertas na esperança de que
haja uma brisa que carregue o tempo amorfo, que traga de quebra a noite que
revigora e que é carnaval e catarse toda santa noite de cadeiras de praia e
espera até que chegue a hora da novela que começou na semana passada e que já
conquistou toda a rua e os vizinhos das ruas de cima e das ruas de baixo.
Nos bares a cerveja é mais barata
que no sul, e talvez seja isso pela ausência da alegria das cervejas daqui
durante o processo de fermentação e mistura dos demais ingredientes. Por aqui
não se fica bêbado de cerveja. Parece mesmo que só a cachaça salva, a melosa que dá fluidez nessa vida estancada.
Não é possível beber devagar e muito menos sozinho, já que a garrafa esquenta
rápido demais e a cerveja meio gelada é enlaçada na dança dos copos mornos que
encontram as mãos dos mulatos sem camisa. Rodadas e mais rodadas de garrafas
que enchem sempre um copo de vários, infiéis e fadadas a várias sedes
insaciáveis que nunca serão saciadas, já que o dono do bar Onze fica com calor demais, baixa suas portas e vai pra sua casa
que fica logo nos fundos com as janelas encostadas. Fuma vendo um pouco menos
da metade da novela, até que chega a hora de ir dormir, que nunca chega cedo ou
fresca, e no caminho que é marcado pelo levantar do sofá, o dedo no botão da
televisão e a caminhada pelo curto corredor que liga a sala ao quarto, se
arrepende e decide levantar as portas do bar, e os mulatos sem camisa guardam suas
cadeiras de praia em casa, e quase inconscientemente formam grupos de quatro
pessoas, pegam seus copos sempre os mesmos e tomam mais alguns primeiros copos
de outras várias garrafas infiéis.
Nesse montar de imagens, sinto
falta de alguns punhados de grama nos quintais das casas que por aqui sempre
tem quintais. Havia pés de carambola e minha sina de nunca ter gostado de
carambolas, apenas dos mosquitinhos pretos que viviam entre folhas e frutas e
que chamávamos de leopoldos, dóceis
de serem pegos nos dedos, admirados, pousados sempre em todo meu corpo e no
corpo de meu primo, onde o vencedor tinha sempre um ou dois bichinhos a mais
pousados em braços e pernas. Hoje penso que nunca percebemos os leopoldos emaranhados em nossos cabelos,
que até pouco tempo atrás me davam comichões na cabeça enquanto se desprendiam
de minhas lembranças e voltavam voando para o pé de carambola que já não
existia mais. Quem de nós dois realmente ganhava nossa disputa por leopoldos? Sem saber ando olhando o
topo de qualquer árvore pra ver se encontro qual delas virou o pé de carambola
da casa de nossa vó.
Acho que naqueles tempos via tudo
melhor, as coisas como realmente eram, sem fantasia, sentindo mesmo a água da
torneira mais gelada que agora. Havia menos formigas, grandes e vermelhas e
pretas e pequenas que hoje não me incomodam tanto assim. Talvez por conta do
meu esforço de criança, armado de dedos e chinelos e pés descalços atrás de
qualquer ponto meio imóvel, tardes e tardes de guerras intermináveis,
armisticiadas apenas nos dias de futebol na rua. Hoje elas me sobem, me coçam,
e desconfio até que algumas poucas me mordam, enquanto passivo, assim como
criança que desejou ser sempre criança, vejo tudo de um jeito infantil, percebo
esse raro começo de tarde nublado e sei que não vai chover por que só sei inventar
e assim brinco que o sol escondido logo vai evaporar todas essas nuvens que são
resquícios de outro raro dia nublado e assim as nuvens acabam se tornando outras
nuvens que já foram muitas outras tantas vezes. Talvez agora sejam apenas
algodão ou tufos de qualquer outra coisa branca e intocável, ignoradas por que
o amarelo do sol deixa o céu sempre azul demais e machuca os olhos dos senhores
e senhoras e meninas lentas e graciosas que já há muito não levantam os olhos,
há muito não buscam os pedaços de alma flutuantes que não tem muita utilidade e
que não se sabe se é a terra que gira ou elas que caminham do jeito devagar que
se caminha por aqui.
Hoje choveu, e o cheiro que as
coisas soltam pra saudar a chuva provavelmente vai impregnar tudo por tempo
demais, tanto na rua como aqui dentro de minhas lembranças. É engraçado ver
tudo molhado, meio impossível, meio fantástico. Tudo ganha outro aspecto, outro
jeito de parecer. As pessoas já não são as mesmas, e a tensão de que tudo volte
ao normal parece eminente, parece certa demais pra qualquer idéia vaga de
esperança, de que tudo seja do jeito que não deva ser. Acho que os sonhos secos
de antes se manifestam nessas horas, todos ao mesmo tempo e extremamente claros
aos olhos das pessoas, que se enxergam e não entendem que diabos há no olhar de
todas essas pessoas paradas, olhando pra cima, redescobrindo o céu,
redescobrindo todos os jeitos e formas que já foram e ficaram deixadas há tempo
demais, idéias que chegam com aquela dor bem no meio da cabeça que é comum pra
todo mundo, que não precisa ser explicada e é passível apenas da junção da
surpresa com o incerto do fim da chuva, do frescor do asfalto e dos corrimões e
dos capôs dos carros fechados que mantém por dentro o calor amorfo em saudades
e maneiras, ainda que o lado de fora pareça úmido e gracioso e diferente. Os
carros daqui são exatamente como as pessoas.
Sempre acreditei que se caso
encontrasse meus chinelos, batesse o cadeado no portão que precisa sempre de um
empurrão um pouco firme – na verdade não chega a ser firme, e assim é quase uma
forma sutil de força -, e fosse subindo a rua até quase a esquina, chegaria à
casa de azulejos azul escuro, eternizados pelos primeiros desenhos de nossas
brincadeiras quase inocentes de tão leves que pareciam ser. Agora pareço
perceber que essa lembrança é uma daquelas desprovidas de sentido. Não pode ser
vista, nem ouvida, não tem cheiro de perfume doce e nem textura de pele no
verão. Chego a duvidar até que existiu, de tão transparente e inodora e não
fria e nem quente que é. Talvez seja um estímulo de sorriso, a eclosão da
primeira borboleta dos milhares de borboletas que de vez em quando inundam
nossos estômagos. Não sei. Algo que realmente não exista e que esteja longe de
qualquer conceito de realidade e decência, algo dividido que seja apenas de um,
injustamente indivisível nessa metade, dignamente do peito e do meio da cabeça
de quem acredita que o que não tem forma possa realmente ter existido. Dessa
forma, ou de qualquer outro jeito que possa ser explicado, dentro de corpo e
mente incompletas de quase homem que sou, sinto o pique esconde, a nossa
fidelidade de baixo da rampa da tua casa, silêncio que se preciso seria eterno,
guardiões que fomos da nossa fortaleza cúmplice, da nossa certeza um no outro
de que sairíamos dali apenas na hora certa, na disparada de criança que aprende
a disparar por razões inatas, e assim seria por que assim precisava ser, não
havia jeito, nem fuga, nem nada que pudéssemos fazer para que todos aqueles
pares de segundos não fossem eternos nessa cidade que não comporta eternidade e
só sabe ser passageiramente pra sempre na vida de quem volta em busca de
concretizar resquícios, de cimentar a fluidez das sensações, de construir algo tão
daqui como todas as casas, erguendo muros de segurança em nosso peito tão
repleto de certezas não tão boas quanto os olhos que julgo serem os seus, que
obrigo a serem os seus antes mesmo de te ver descendo a rua todas as noites,
nessa espera ancorada no banco de madeira de nossa vó, de garrafas de cerveja
de apenas um copo que acabam sendo só minhas, minhas e de mais ninguém, assim
como você me é sem mesmo saber, sem mesmo que eu saiba se foi você, se tudo
isso foi com você ou com a antiga dona dessa casa de azulejos azuis que acabou
confundindo a cabeça de todos os senhores e senhoras e crianças que não sabem
quando precisarão tomar outro banho. Tudo pode ter mudado há tempo demais e
ainda assim ter sido ontem, incerto e de qualquer forma de uma verdade
acreditada.
Hoje, no ponto de ônibus, senti de novo o peso dos seus olhos outra vez, e como quem acende a luz do quarto em noite sem lua, você brilhou.
Hoje, no ponto de ônibus, senti de novo o peso dos seus olhos outra vez, e como quem acende a luz do quarto em noite sem lua, você brilhou.
Não sei de ninguém. A gente
sempre precisa correr pra longe se quer chegar até nosso deus, que parece tanto
com essa sombra da gente no asfalto. Creio que grande parte daquelas pessoas já
tenha ido embora, e nesse meio alguns resolveram mesmo morrer de vez, sem jeito
ou chance, assim certeiros. Pra mim é mais esquisito lidar com os novos
telhados dos vizinhos, com a insegurança que substitui a confiança nos rostos e
sorrisos antes tão amigos. Alguns poucos me abraçam e se enchem os olhos de
lágrimas que não sei há quanto tempo estavam ali guardadas, por saudade de
antes, por lapso de consciência que faz a mesmice daqui parecer mesmo
diferente, meio incerta. Será que faz
tanto tempo assim?, percebo por de trás de minhas máscaras, e não grito e
só escrevo que já faz tempo demais mesmo e que o telhado novo da casa do lado
não combina com o telhado antigo dessa redoma que é a Rua 2 de dentro de mim.
Uma tristeza, daquelas bem azuis,
pega a gente pelo pé desde a hora que a gente acorda. Ajuda a arrumar o
travesseiro e esticar a colcha nessa terra de sem cobertas. As formigas são
parte de tudo, e qualquer que seja o pensamento bonito que passe correndo bem
no meio da nossa cabeça, um punhado de borboletas começa a aparecer pelo
quintal. Sempre amarelinhas e com a borda das asas pretas, borda essa tão fina
que lembro dos teus olhos maquiados, castanhas envoltas da borda dessas
borboletas do pensamento bonito. Logo a tristeza volta, do céu nublado dessas
nuvens que talvez não saibam que já foram e serão apenas outras nuvens, destino
esse tão parecido com o nosso. Diferente talvez só as formigas, de por tudo, de
pelo cimento da casa de nossa vó e toda a terra vermelha e nossas roupas e
paredes. São mesmo tão presentes como essa tristeza de por todo lugar, que não
quer fazer nada a ninguém, mas é de um azul tão triste que vai deixando a gente
triste, até que já não se sabe mais quem começou com todo esse silêncio
primeiro.
Creio que a cidade me expulsa.
Nada de maldade, longe disso. É como se não desse mais tempo, e pronto. Talvez
pelo ciúme que essas ruas têm das ruas que ficaram imunes ao tempo, guardadas
em mim e que, agora, parecem tão intactas, até mais impossíveis do que antes,
como se recordar não fosse uma opção. Tem chovido tanto nesses últimos dias, e
as formigas parecem mais zangadas, inquietas. O sol acha brechas nas nuvens e
denuncia o trabalho das aranhas, antes imóveis, impressionadas com o vento que
nunca não soprava e que agora derruba roupas dos varais no chão molhado. Talvez
seja essa a cidade de meu primo, onde as lagartixas me dão as costas e ficam
paradas longe das sombras, sempre às vistas, sonhando com borboletas que tanto
voam por aqui, procurando os traços de minhas marcas de saudades, agora tão certas
que poderiam até ser invisíveis e indeléveis, sem meio termo. Aqui se vê que as
coisas todas já aconteceram há tempo demais, e.
Alguns poucos ainda descem de
suas motos, param de frente ao portão de nossa vó pra me dar, sem perceber,
talvez suas maiores riquezas, talvez a maior sinceridade em alegria e
cumprimento, polegar em riste, dentes em sorriso, sem que eu perceba que já até respondi, achando graça em ainda não ser nem sexta-feira,
amor, não ser nem dia de simpatia. Quem sabe aqui seja sempre sexta-feira,
dia de bloco na rua, carnaval de
cidade pequena, tristeza de gente grande. Parece que já me despedi das pessoas,
da cidade que é essas pessoas, e posso até antecipar minha passagem de daqui
uns dias, sair na hora da novela, passarinho recolhidos, e tá tudo certo. Ainda tem uns dias, fala minha tia,
brinca meu primo, olha nossa vó. Parece ser saudade de casa, saudade do amor de
minha vida, mas é essa coisa da moça do guichê da rodoviária. Preciso dos olhos
de minha mãe, da fotografia do móvel de canto de cômodo, da minha tia que até
fora da foto é tanto minha mãe. Vou esperar, ir pra casa sabendo que meu
lugar é aqui, que minha volta já tava certa antes do dia que fiquei bêbado e lembrei da menina que dividiu meu primeiro amor comigo, do susto dessas
lembranças não terem mais forma, nem gosto ou cheiro, e serem só essa vontade de sentar na mesa
de mármore do quintal de nossa vó, silenciar, cumprimentar a rua recortada no
portão enferrujado. Volto pra casa ficando aqui, levando esse olhar de cratera,
essa saudade, esses alguns leopoldos emaranhados em minha barba emaranhada. Minto. Volto pro sul. Minha casa é aqui. Minha vida é Cachoeiro.
Cícero e Sérgio Sampaio, graças às suas músicas com som de sonho.
Para Edna, Sandra e Pablo: minhas mães e irmão. E nossa Vó.
Cícero e Sérgio Sampaio, graças às suas músicas com som de sonho.
Para Edna, Sandra e Pablo: minhas mães e irmão. E nossa Vó.