segunda-feira, 2 de setembro de 2013

transparências

assim como sou parte de minhas convicções, veleidades concretadas à relação com nada que não acasos sem sincronia, faço hoje, de meu pai, um exímio fumante que haveria de ter sido. ideia essa me passa em dedos e lábios desde há certo tempo, desmistificada em uma caixa de fósforos que, assim como as outras, parece surgir somente em dias de vento, em dias em que o fogo volta às mãos divinas e nos encaramos reféns de nossa existência de preces e fé. como somos imagens, ou como acredito que assim sejamos imagens, fiz a de meu pai num misto do que de fato é em barba, pele e cheiro. naquilo que me faz falta, entendo um vazio nas grandezas que de fato vejo e sinto, a ele invisíveis nos raros luxos em que se reflete em pensamentos. uma vida por completar e que, no entanto, há outros tantos já é plena, numa perfeição transparente aos olhos, cruel à percepção torpe que nos temos: esse sem fim da nossa procura. não me coloco à parte dessa incompreensão, e por isso, numa piedade humana que excede laços ou afinidades, faço de minha imagem a imagem que meu pai não pode enxergar, o reflexo que completa num paradoxo o que já é perfeito, que assim já é pai. uma relação de sacrifícios, onde o mestre abdica a vida aos passos do aprendiz, que deixa de se ser à compreensão da grandeza que sua fonte desconhece. sou eu filho, que por assim ser sorrio como meu pai, que não sabe até que ponto meu irmão lhe é reflexo ou não, que não sei até que ponto os homens de minha vida são pai e filho entre si.

por muito me vi minha mãe, e não somente no sorriso, não somente no coração capixaba repetia seus gestos, perpetuava o caráter sereno e impassível daquele povo ensolarado. desde há outro certo tempo tomei consciência do que trás o companheirismo, dessa troca de formas que o convívio opera no silêncio do tempo. tenho, então, uma mãe que é meu pai à proporção que imprime seu caráter sereno e impassível aos sorrisos que por nada lhe escapam. é impossível imaginar a quantidade de risadas que guarda dentro de si, em seu coração empedrado de alegrias já cinzas. achar a fonte do que são é ver fim no jogo de espelhos do elevador, retratos que se multiplicam conforme o esforço dos olhos. pela falta de insistência que tenho de um dos dois, assumo minha imagem como a de minha mãe que é a de seu companheiro, meu pai. ser um é ser o outro que já não acha começo, e o companheirismo dos dois nunca me pareceu tão único e intenso.

a graça fica por conta do reconhecimento que julgo também impossível. como a quem quer que seja, foge às minhas mãos alguma sombra que desenhe o que de fato sou. talvez por isso eu pareça ao meu pai algo completo numa busca desnecessária, e assim faz dos gestos da sua vida entregue o que falta à minha compreensão. fica meu pai sendo pra mim o que não posso enxergar, ao passo que sou reflexo das transparências de meu mestre: um sendo impossível ao outro, retratos do que de fato não existe e que, ainda assim, tanto nos é. fica a cumplicidade do olhar e das coisas que também sabemos não nos dizer.

ao meu irmão, cada uma das imensidões de seus dedos que não vê, que reduzo geometricamente e aplico aos meus sapatos, ao meu barco sempre por lançar. sinto como os pés na areia, água que molha o joelho que o vento já secou. acabo sendo também maré, e fico estático frente ao meu irmão que oscila, sempre sentado na sua correnteza de silêncio e eficácia, em seu barco inalcançável de proporções perfeitas. como se a calmaria não nos tivesse sido opção, e o silêncio de fora acaba escondendo a infinidade de explosões que cada bolha sussurra ao grão de areia em lança, que mata e absorve e devolve o mar pra sua imensidão nunca suficiente. sinto sua falta quando bocejo de boca fechada e meus ouvidos mergulham seu mar de saudade. creio que baste os cobertores silenciarem pra que nossa respiração grite o oceano que agora esvai, apodrecendo os pés das camas, enferrujando nossas janelas que nunca tiveram cotovelos de companhia. velejamos camas iguais aos sonhos dele que desconheço, e acabo sendo dúvida em suas certezas silenciosas.

de quando meu irmão fumava, acredito que, apesar de há época ele ser mais novo do que sou agora, também tinha a intenção secreta e inconsciente de ser o que meu pai era e não sabia. nada mais faço do que repetir os passos que afastam meus dois espelhos, tão distantes entre si que me fazem distante em essência. não apenas como relação temporária, como nada que não seja distante simplesmente na forma que deles torno minha.

tomo a caixa de fósforos à mão achando graça da forma que arrumo os palitos, segregando queimados e por queimar, pontas voltadas cada uma pra seu lado definido na caixa de quatro pontas e duas castas. se me pedissem um motivo, diria que faço o que ele faria caso fumasse. contaria da importância dos palitos válidos e desvalidos ser a mesma, responsáveis e cúmplices pelo cotovelo que meu pai apoiaria no balcão do bar, cigarro entre os dedos mágicos de graxa, pulso ancorado ao rosto entre queixo e orelha, esta que é direita, esta que é sempre direita e testemunha da infinidade de tragadas que não daria, que acabou nunca dando.

há alguns dias não fumo, interstício que faço pelos mesmos motivos sempre invisíveis ao dono do reflexo. acabo me desconhecendo numa espécie de ingenuidade concreta. meus passos sempre aos outros, existências que findam e se revelam aquele que fui. talvez agora seja filho, assim como meu irmão através de seus cigarros já quis ser pai. derretida a fumaça, esvai-se a consciência presente: o certo como certeza efêmera, clarão pleno que ilumina pra dimensionar o vazio sempre mais infinito. como se fosse apenas no instante que ainda sou pra deixar de ser, e largo os cigarros há alguns dias como alguém que não se conhece, que nunca fumou, que não pode ver em que imita o pai, em que tenta ser o irmão. fica o fim como responsável de mostrar a quem ouve o que foi que houve, o que às vezes nunca houve há alguns dias demais.

considero esse o começo, como se já não tivesse nunca fumado, como se já não tivesse nunca sido meu pai. a roupa da outra noite parecesse não ser minha, esse cheiro emprestado de alguém por fim passado. acabo presente apenas no enquanto que não me sei, e fica tudo suspenso como são suspensas as coisas quase aqui.  

The Kings Of Convenience - Homesick