sexta-feira, 26 de julho de 2013

rodapé

e por ter como espelho os próprios pensamentos, fazia do silêncio seu reflexo invisível. andar de olhos baixos como quem procura seu relance em janela, certeza provisória de um enquanto onde tudo está bem até o próximo vidro espelhado em azul, em nós. calado confirmava algum tanto por ainda existir, confrontava a imagem que lhe era com o desenho que julgava à ele ser feita. por só saber reparar, aprendeu a presença do que não existe. tudo pela possibilidade do fantástico. era durante as semanas em que conversava e se fazia ser visto que deixava de existir, passando transparente aos retratos avessos que qualquer superfície não podia, pelo momento de sua extensão, inverter na fidelidade contrária do refletido. talvez por isso tenha sido o único numa vida intercalada entre a presença física e a impossibilidade de ser: era, ou literalmente não o podia.

nos momentos em que se ausentava de si, vivia quaisquer que fossem os outros numa fé cega de fim próximo. moldava-se à imagem de quem devotava, numa esperança inconsciente de se ver outro no vidro do carro que passa, que nos leva embora de quem somos, de quem, no caso dele, tornava próprio. de se ver outro por simplesmente se ver. não sei. seus pensamentos invisíveis tomavam posse em sinais sempre diferentes. a verdade é que esquecia das delicadezas que lhe davam de volta ao que era, e na falta do que comparar, acreditava na impossibilidade de evitar os caminhos destinados à transparência de se ser. uma boa memória seria como fórmulas de mãe, de resultados infalíveis aos banhos quentes seguidos de sereno, à falta de sabor que a pressa deixa ou pela comida ou pela boca. nunca soube. nem ele, nem eu.

por ser quem é às vezes torná-lo outro, comportava todas as opiniões, todas as maneiras de segurar a manga da camiseta comprida quando sobrepunha algum suéter, alguma camisa. era a infinidade de tudo que devotava por não saber ter reflexo, por precisar ser quando não se era no propósito simples da existência. como ser vitrine do outro. tinha a predisposição do alfaiate quando encontrava com alguém, e conseguia se fazer presente enquanto dedicava toda a atenção em olhos de fita métrica, mensurando largura de ombros, fissuras deixadas pelo riso. a ideia leve do sorriso sempre se desfazia quando notava as marcas fundas que a alegria talhava ao rosto. por fim, tinha as medidas na cabeça pra incorporar atitudes alheias como um traje feito sob medida, mãos de artista, dom hoje deixado pra trás pela facilidade em se enquadrar tudo em moldes prontos. ser o molde pronto de outras pessoas era tudo que podia, já que nem o fantástico conseguiu vestir sua transparência. ou que não tinha. também não sei.

"por assim ser" lhe ser definição impossível, fica por assim que não só aos espelhos se faz invisível, mas a todos que o percebem apenas quando é outra pessoa. à mim próprio não é dado o direito de dizer que o conheço, já que só o sou quando é ausente desses pensamentos que lhe tiram de mim, que lhe tiram dele próprio e que não me deixam vestígios, iguais apenas na capacidade de serem esquecidos assim que acordo. é como se eu fosse outro por não poder ser refletido em mim, e nesse instante de consciência fico imerso em seu próprio silêncio meu de imagem invertida. acabo por me ser apenas quando não posso mais por assim, quando os pensamentos ainda não tomam conta. por de repente parecer despertar em baixo d’água, caminha de olhos baixos refletindo a incapacidade de ser ele próprio, onde só posso ser quem sou quando ausentes de nós.

"mas às vezes ainda espero você chegar"
carlos posada - província