quarta-feira, 12 de junho de 2013

sete luas

acho que nunca fui de ter preferências. assumo em minhas mãos e traços as marcas de meus vícios, de minhas manias. porém, controlo-as sem maiores exigências de tempo ou espaço. creio ter herdado esse jeito de meu pai. ao contrário dele, que satisfez seus desejos à mercê de uma vida que não lhe teve como prioridade, percebo meus passos cômodos desorientados de qualquer que seja a responsabilidade, e talvez por conta disso, ache em um sem fim de gostos e fumaças a saciedade de uma sede incerta. é comum encontrar em armários e gavetas algumas reminiscências minhas em formas diversas. cachimbos, cuias, canetas, isqueiros, peças de quebra cabeça: um sem fim de objetos que um dia foram destinados à ser parte franca do que sou. passaram. faço força por entre as estradas de dias ensolarados, que tão bem conseguem ilustrar os caminhos de nossas memórias, e me perco sem querer num fim de curvas que levam a qualquer que seja minha saudade, exceto às intenções que um dia atribuí nessa minha miscelânea fracassada. saio do banho e reparo um rosto marcado de expressões tão bem ensaiadas, tão bem esquecidas. à medida que o espelho se desvencilha do vapor, redescubro alguma tatuagem sem ter ao certo o significado das cores e das borboletas. “você sempre vai poder contar uma história diferente”. acho que quem disse foi o tatuador. as coisas só tem o sentido que o tempo deixa por onde passa. paciência.

reparo que, há algumas semanas, tenho impregnado minhas tardes de café. tudo meio acre. tanto o cheiro da casa como o gosto dos dentes. faço minhas coisas tendo substituído minutos por xícaras, e mantenho assim meus compromissos muito bem filtrados. o puro acaba nunca bastando. fervemos a água e tiramos dela todo resquício de transparência. precisamos que seja um pouco mais forte, um pouco mais quente. pensei que dessa vez daria certo, que me tornaria um tomador inveterado de café. estava usando sempre a mesma caneca, já acertava a quantidade de pó e o pouco de leite pra enganar o gosto, ganhar um aspecto encorpado mesmo que não saiba ao certo o que isso significasse. só por algumas semanas. devo ter cansado. hoje a caneca de meu pai não conseguiu bastar. peguei a de meu irmão. raras são as coisas dele que não me deixam completo. de ambos. homens de minha vida. bebo um gole e acho graça pensar que sempre me chamam pelo nome dele ao telefone. justificam a sentença em uma semelhança de voz. fico orgulhoso. sorrio e seguro sua caneca. sou meu irmão. posso atender o telefone e confirmar que quem fala é ele, e que claro, no horário combinado, tudo bem, pode deixar. o telefone não toca.

agora a noite tive vontade de fumar um cigarro. acabou. acendi a luz da cozinha e procurei de mãos no bolso. achei chá. fazia tempo que não tomava chá. pego a caixa, e com o fósforo quase incandescente ainda impregnando desenhos e cheiros, vejo a proporção de um sachê pra 200 ml de água fervendo. confirmo se a chaleira tem pelo menos o triplo da água que preciso. nunca sei quanto dela evapora, e a ideia de deixar a xícara meio vazia por falta de água me assusta. a casa toda está apagada, e depois de muitos anos, hoje faltou luz praticamente o dia todo. consigo diferenciar os móveis da sala com certa facilidade, mesmo que não seja noite de lua, e que as cortinas estejam bem fechadas. olhos acostumados. hoje ouvi meus pais conversando enquanto faziam a janta. sempre fazem isso, e eu nunca os tinha ouvido conversando ou muito menos fazendo a janta. meu pai e minha mãe à sombra de uma vela, ao som de alguma cebola ou alho grudando e cheirando a casa de infância. meu irmão dorme e não sabe quanta falta faz. percebo minha coluna reta e o olhar fixo em um parágrafo que não acontece, ainda que tente. fica no papel. acho que emprego toda minha capacidade de abstração em moldar minha figura com a de meu irmão, tanto na coluna, quanto em seus olhos fixos que nunca souberam abstrair. sinto falta dele.
   
seria mais fácil se tivéssemos aquelas chaleiras que assoviam. a nossa treme, e às vezes muito antes de começar a evaporar a quantidade de água que pode fazer falta na minha garrafa de café. digo, em minha xícara de chá. fico em dúvida, e é comum pegar uma faca e espiar pela tampa duas ou três vezes se já posso apagar o fogo. preciso pegar uma faca por que o puxador da tampa sumiu. de qualquer forma, espero e deixo as esperanças do café pra trás. talvez o chá. uma xícara por noite. quem sabe durante um filme. o tempo vai afinar o paladar. vou entender que a água precisa ser aquecida, e não fervida. aromas e sabores elucidarão o entendimento inerente necessário para a compreensão das cerimônias de chá orientais. isso. chá. fazia tempo que não tomava chá. na casa da mãe de meu pai foi onde eu devo ter feito meu último chá. ela tinha umas coisas engraçadas que eu provavelmente nunca saberei o nome. eram casinhas ou corações de metal com um infinidade de furos, e ela me ensinava a abri-los com a técnica que criança nenhuma pode aprender por ser criança e desengonçada, e enchia de algum chá que por vezes eu gostava, por vezes não. o chá dela não vinha naqueles pacotinhos de papel, e agora percebo que parecia muito com o fumo de cachimbo que tentei tornar parte minha. esse fumo deve estar por alguma gaveta. juro que a primeira aspirada que dou depois de pensar onde diabos foi parar esse fumo é sempre carregada de seu cheiro. já abri vários armários e achei outras tantas reminiscências, mas nunca esse fumo. é como se estivesse em uma infinidade de lugares, inclusive dentro dessas casas e corações de uma porção de furos que tinham um encaixe minúsculo que os cerrava com o chá que lembra meu fumo, e assim que imersos, de dentro deles emanava uma essência de cor sempre diferente, que apaixonava a água fervida e tornava o antes puro em chá. é claro que eu não pensava assim. só colocava um pouco menos de água do que a mãe de meu pai recomendava, e assim que tinha autorização, ia dissolvendo, uma a uma, o máximo de pedras de gelo que conseguia. misturava e misturava até que fosse possível virar tudo pela garganta, queixo e camisa sem me queimar. hoje percebo toda a imbecilidade de criança, movida por impulso e não pensamento, ainda que esses dois pareçam sinônimos.

tirando a aparência e a certeza na confusão que tenho por entre as curvas de minha estrada, não vejo relação alguma entre os chás da mãe de meu pai e do meu fumo perdido. fica pra trás um, perco outro, e acredito ser essa a ordem das coisas.

tenho as mãos no bolso, e a tremedeira da chaleira ameaça o sono da nossa casa que dorme. apago o fogo sem confirmar se a água estava fervendo. tenho certeza que não. esperar mais uma ou duas xícaras de café seria o ideal. é mesmo, parei com o café. preciso readequar meus padrões de tempo. na embalagem dizia de três a cinco minutos, conforme o gosto. deveria ter a opção “quatro minutos se você tem um gosto passível de qualquer satisfação”. eu queria um cigarro, mas acabou. decido por quatro minutos: metade do tempo que eu normalmente levo pra fumar um bom cigarro, mesmo que às vezes não seja tão bom assim. tem esses cigarros de menta, cravo, e mais uma porção de essências que prometem e não conseguem adocicar nada. prefiro cigarro sem sabor. prefiro chá mate. rio por parecer enxergar uma ponta de preferência. era uma da manhã quando afoguei os dois saquinhos de papel na xícara. quatro minutos. mexo pra dissolver o açúcar e penso em cubos de gelo. imbecil. essa caneca de meu irmão tem a borda de metal. passo o dedo por precaução. insuportavelmente quente. experimento. pareço fumar a ponta acesa de um cigarro. nem um pouco prático, mas talvez comece a satisfazer mais de uma vontade com apenas um gesto. preciso esperar. quem sabe um cigarro. acabou. imbecil. abro o freezer, e a gaveta do gelo ainda é cheia de resquícios esquecidos do último verão. olho os cubos rodarem e sumirem, o próximo sempre mais devagar que o anterior. por sorte a água evaporou da chaleira e a caneca de meu irmão não ficou tão cheia. já devo ter colocado umas quatro pedras e visto-as sumir em sua dança circular. passo o dedo na borda da xícara de meu irmão por pura precaução, e penso na mãe de meu pai. sinto falta dela, e pela garganta e queixo e camisa, de maneira incrivelmente imbecil, viro tudo em um gole só e apago a luz da cozinha. reconheço os móveis no escuro, e ando pela sala sabendo que amanhã meus olhos não desviarão meus pés dos barulhos que acordam essa casa que dorme. satisfeito, encontro minha cama. deixei o café de lado. meu tempo agora é marcado por cubos de água congelados se dissolvendo, e rindo, penso na mãe de meu pai e na minha imbecilidade como se fosse ontem. digo, como se fosse há menos de uma forma de gelo atrás.

fup - jim dodge