Nesses dias de calor invento o caminho mais longo. Tenho de meus
passos inconstantes um andar parado, negando de esquerdo o direito que insiste
não sair do lugar. Já no ônibus o olhar encalorado dos sentados, dos em pé que
calculam o horário de amanhã no desejo da janela aberta, da brisa sólida e
abafada que conforta cabeças escoradas em vidros de tantos sonhos sem fim. Levanta
primeiro a alma como quando Satie ilumina
ouvidos por esse bairro de ruas de céu de árvores; procura a expressão mais
cândida, o corpo inerte suspenso pelo olhar perdido de braços e sacolas equilibristas
desse trânsito nada estático. E eu não me mexo, não borro sequer a vista de
qualquer piscar sem que saiba por que levanto, sem que saibam por que ocupam a
janela anunciada de minha alma pouco antes. A campainha me fere os ouvidos
enquanto revela meu destino aos olhos de espelho do motorista que se reflete
pra tanta gente. Nesses ônibus pequenos e sem cobrador as coisas parecem mais
fáceis, os sorrisos começam em qualquer lugar. Salto perto do largo daqui. Não
sei bem a diferença entre largos e praças. Não sei quem é Jacó e muito menos
seus bancos em madeira, muito menos o cheiro de sua grama rala da areia das
crianças. Prometo sempre mais tempo à próxima vez, e suas sombras me sorriem
das promessas que não cumpro. Às vezes, e não sei bem precisar em quais, as
ruas daqui tem o cheiro dos pés de carambola da Cachoeiro de minha mãe.
O tempo logo fecha, e chega a chuva na birra dessa cidade
que não consegue ser sol. Como são lindas as donas de casa que se apressam ensaiadas
pra trancar janelas, maldizer o tempo, estranhar o rapaz que anda lento nesse
furor que a chuva derruba antes de seus pingos. Acabo avesso, e é só o alto de
seus cabelos amarrados que me percebe assim. Dessas ruas desertas fazem
calçadas, e os ipês pintam tudo que os braços de suas árvores alcançam, que o
vento ajuda em borrar por cima dos carros sempre parados, das garagens sempre
sentadas de senhores e suas banquetas de madeira antiga. O cheiro impregna o
rosto, mela a língua. Escorre a criança que atravessa a calçada em caretas e me
deixa a língua de flores num sorriso roxo e amarelo e azul. Não dá tempo pra
que me vire e a veja de alguma forma que não já em flor, já de volta aos galhos
dessas árvores que escondem o céu escondido agora de nuvens. Penso de quais sopros
chegam esses que me passam silenciosos em seus floreios. Logo na esquina o pai jovem
chuta a bola ao filho de olhos sérios, e de qual árvore são eu não sei, não
pergunto. Talvez a mãe já tenha recolhido a roupa do varal, dito aos dois pra
secarem bem os pés antes de entrarem pelo tempo que hoje fechou e eu ainda não
fiz o café. Fins de tarde que parecem sempre sábado, sempre as cinco horas que esses
relâmpagos abafados anunciam quase a todo instante. Eu digo que sei, digo que
logo chego e assovio ao bar que já tem as portas ansiosas dos alarmes de Augusto,
das chaves que me enferrujam os dedos desse alaranjado de flores. Aqui os copos
quebram mesmo às nossas mãos seguras, mesmo aos olhos de concreto azul cimentados
em Luiz.
Cruzo o portão e penso em Deus e nos fins de tarde que nunca
passam. Arrumo as mesas à simetria de suas cadeiras, abro portas e janelas e a
luz insiste em sua desconfiança que torna tudo sombra aqui de dentro. Penso em
Deus e no meu silêncio. Luiz me chega primeiro na fumaça densa de seu cigarro
que lhe esconde o rosto pelas frestas de seus olhos. Confere tudo por conferir,
apalpa os bolsos e olha a camisa riscada de nossas canetas que tanto somem. Penso
que confia em mim, que já pensa em nada pra esperar chegar a vontade de seus outros
cigarros que só vão até a metade estrangulada desses dedos em cacos de copos. Pelos
filtros brancos e sufocados o encontro já pela calçada, aos cantos escondidos
do bar que nos limpam a cabeça de pedidos na fumaça cansada de nossas pausas. Guri,
me diz, deixa só as mesas pra fora que o tempo fechou, diz, enquanto sorrio
escorado à porta que a luz insisti em não cruzar. Há muito que me chama de
guri, há muito que me chamam pelo nome.
Aos que chegam, nosso cumprimento às vezes sincero de saber
como foram seus dias. E respondem tanto sem dizer nada, e tudo pra de em quando
falarem do futebol, atrasar o silêncio da despedida numa intenção que não
entendo. Penso em Deus e volto à porta com meu cigarro por de trás da orelha. Augusto
aperta a caneta contra o granito do balcão, e não raro assusta as próprias
pernas quando se levanta decidido, caminha até a última geladeira e volta ao
mesmo lugar com a caneta agora descansada e o silêncio num alvoroço que só dele
vejo. Deixo alguns sorrisos prontos pelos olhares que se esbarram por acaso ao
meu, e procuro o motivo pelo qual bebem sozinhos os que chegam mais cedo por
ter quem esperar, que aguardam o amigo de volta do banheiro carregado daquelas
conversas reprisadas. Percebo que não é inconsciente, e sinto a confiança nesses
que deixam escapar a razão de suas doses, de seus copos pela metade pra que não
esquentem tão logo. Chega Blumenau, chega Mineiro e Clair e suas cervejas de
rótulos azuis de tantos e de Adoniran Barbosa. Em dias assim Augusto não nos
olha. Dá a atenção de seu cabelo sincero às contas do fim de semana que passou,
às entregas dos pedidos sempre tão bem atrasados em seus funcionários de
caminhões que trancam a rua, apressados em seus carrinhos de caixas e garrafas
que tilintam alto em meu peito de olhos de Luiz, do silêncio desses dias mansos
de Augusto.
E tão logo acalmo, dos motores das geladeiras rasga um
sussurro intermitente que me leva ao balcão. A lista de compras já gravada em
meu andar, o dinheiro contado num exagero que passa a sensação de que esqueci
alguma coisa. Nem sequer me despeço da moça do mercado, nem interfiro na briga
dos irmãos da padaria: logo volto por que já não me lembro mais, diz aquele de
mim já destacado do resto. Como eles aos meus olhos, me esvazio. Subo a rua sem
saber o que é calçada, e das sacolas cheias compenso o que vou deixando pelas
ruas calmas de mercearias e saudades.
Encontro Paulinho antes mesmo de chegar à quadra, seus olhos
que se jogam incertos nessa vontade que a gente tão pouco entende. Aperta pela mão
quaisquer que sejam, ronda o bar em sorrisos sinceros numa intenção que também nos
sorri pelo desespero do não saber. Meu piazinho, e minha mão apertada na dele
como se quisesse que eu entendesse, como se em seus olhos incertos gritasse
qualquer coisa que não nos é. Chega manso, pergunta que dia é hoje e tenta me
convencer de que não falta muito pro natal. Acredito ser ele o único que saiba tudo
por aqui como sábado. Carrega seus jornais velhos de hoje cedo, suas caixas que
vende por onde desconheço. Contou-me que não gosta de cachorros, que a moça que
limpa a casa de sua mãe não enxaguou o banheiro e que ele caiu e sangrou. Diz e
conta e. Cala. Principalmente nos dias em que as coisas lhe passam
despercebidas e me ignora, ignora os poucos que lhe esperam com a mão
estendida. Escolhe a cadeira numa intenção que daqui da porta não me parece
clara, e silencia o tempo em uma ou duas latas de refrigerante antes de sair
cansado do que tanto nos explica, do que tanto nos diz em seu jeito que me leva
os olhos.
Sei das horas por aqueles que saem, pelo frio que me fecha os
botões da camisa às onzes horas aqui dentro sempre tão frias. Os relâmpagos já
não me dizem mais, e num instante as luzes de fora já vão acesas, as pessoas
apertam cadeiras e vontades sob um céu de estrelas que não lhes ganha a
atenção. Às vezes a lua parece flor por entre as árvores daqui da frente. Vejo
prédios baixos e as casas de janelas tão lá no alto, e ignoro até mais de um
pedido sonhando o céu daquelas janelas vazias de senhoras viúvas, de senhores e
seus bancos puxados com esforço de suas garagens nemorosas. As cortinas sempre
por balançar, mesmo que pelas janelas fechadas não passem crianças em vento. Nessas
já as sonho recolhidas com seus pais jovens às suas árvores que desconheço.
A mesa do canto é a única de calma nas noites cheias de
gente e de seus silêncios ruidosos. Um, quem sabe dois lugares permanentemente
vagos. Dos que ali sentam julgo saber do vazio de suas vontades, e volto de
dentro com cinzeiro, copo e a primeira cerveja da primeira geladeira que me
atravessa a ansiedade. Não digo nada. O rapaz ameaça erguer os olhos, mas o
isqueiro já sai do meu cigarro à sua mão trêmula pelo relógio que não leva. Talvez
o tempo lhe escoa avisado apenas pelos relâmpagos que do portão pra dentro nada
anunciam. Nossas fumaças se dançam, se conversam, e saio sem que perceba.
Nossa cozinha fecha mais cedo. Não consigo saber quando
sinto falta da campainha que nos chama aos pedidos. De qualquer forma, é nessas
horas vou aos fundos, tranco a porta e arrumo o depósito de caixas e geladeiras
e coisas que Augusto não pode se desfazer: garrafas já não mais retornáveis, um
cofre, tacos de sinuca e ventiladores e cadeiras aos pedaços. Estes amontoados
me fazem pensar no silêncio e em Augusto. De meus tênis furados driblo as
garrafas mal varridas, as tampas de cerveja que insistem em bater nas bordas de
nossos lixos vazios ao final da noite. Empilho as caixas no carrinho, e no
corredor até as geladeiras não ouço garrafas num murmúrio sequer: uma aceitação
de seus destinos, a obrigação de alimentar o silêncio daqueles que por hoje já
fecham suas contas e estranham o vazio que se manifesta perto do carro, à porta
de casa depois de cada bebedeira.
Quando já não há mais, vou pra fora e tenho o primeiro
cigarro inteiro da noite. Procuro a lua por entre as árvores e sinto como se já
fosse colhida. Penso em Deus e nas coisas por brotar aqui de dentro. Os últimos
logo saem. Nesses dias em que parece sábado sinceramente não me incomodo de
esperar. A música toca agora mais lá longe, as pessoas conversam agora com mais
silêncio. Augusto adianta as coisas e fecha o caixa que lhe martelou a caneta
ao granito por tantos olhares. Luiz serve sua meia dose e escora os ombros no
balcão pelo espaço que sobra da sua cerveja já aberta, do seu copo já meio
cheio. Desenrolo as portas e o som de suas engrenagens despenca tudo. Penso nos
relâmpagos e no vazio que de agora em diante não me fala mais do tempo. As
chaves na caixa vermelha, e procuro a garrafa já quente por entre as mais
geladas que há pouco coloquei em seus silêncios conformados. Dos copos que
sobram inteiros, sobra um que amansa os dedos retalhados de cacos e ferrugem. Augusto
há muito me priva o prazer da volta de bicicleta pelas ruas que apenas de
madrugada se parecem com as daqui. Diz da segurança, diz de coisas que pareço
não entender por só sentir falta da calmaria que preciso, e espero.
No fundo do bar as cadeiras já empilhadas, mesas limpas das
cinzas e daquilo que choram as garrafas. Desabo o corpo onde as pernas pedem, meu
copo e sempre pela metade, cigarro por me sonhar enquanto o isqueiro me foge
aos dedos. Penso em tudo sem lembrar de muita coisa. O gosto dessas cervejas me
estanca a alma, e no dia já por raiar que atravessa o toldo furado de
pinheiros, sou o motor da geladeira, o molhado dos copos que ainda escorre na
cozinha deserta. Augusto me agradece em seus sussurros transparentes.
Eles e eu à banqueta no balcão, de qual levanto só hora ou
outra pra tirar alguma mesa, limpar algum cinzeiro até que todos saiam e deixem
meus bolsos livres de canetas, de abridores e gorjetas que somem de um pra
aparecer por algum lugar que nunca sei. Agora só nosso silêncio e as
geladeiras. Penso em Satie e não sei
de onde vem o arrepio, não sei quantos copos encho até a hora que me peço pra
ir embora. Augusto não me chama nem o táxi que de algum jeito já me espera, a
porta do passageiro aberta e o nome aos lábios do motorista. Luiz me pergunta
do fusca. Sorrio que logo chega, calo pra que eu dê as costas ao caminho de
casa, agradeça ao taxista e diga que hoje não, que chamei por engano, que vou
dar a volta na rua e ir pros lados da rodoviária até me perder nas travessas
iguais, achar por fim o começo da Visconde de Guarapuava.
Saio pra logo mais. Tranca e portão encostado até que bato a
porta laranja do táxi que confunde a ferrugem de minhas mãos. Penso na seta à
esquerda que me envereda em sonhos à Visconde, a terceira marcha presa na sincronia
divina dos semáforos de lá. Dou o endereço, meu silêncio e não tenho mais nada.
O taxista olha de lado meus olhos que acompanham os postes tristes e amarelos. Penso
que assim serão as lembranças à hora do juízo, que iluminam o caminho
sincronizado em terceira marcha que tive durante o que pude. Penso em Deus, no
meu céu de avenida. Quem sabe quem minha alma escolhe amanhã ao meu lugar do
ônibus, se me cumpro a vontade dos bancos sozinhos do largo de Jacó.