segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Poltrona

Passei hoje a terceira eternidade dentro de apenas três dias de pra sempre. Não me lembro de perceber jeito ou maneira para diferenciar a semelhança dos momentos, de ter deixado atalhos espalhados pela casa. Sinto meu corpo ausente de mim, e a possibilidade de ser apenas enquanto sentado na poltrona do canto. Desde há muito conheço-me somente nos ângulos que tenho daqui, e assim transverso-me. Pelas manhãs e tardes espero me voltar de quartos e corredores pra saber como está, como vou. Só tenho meu silêncio. Só sei de mim o que imagino nessas abstrações de eternidade, e quando volto não me digo nada. Talvez justifique o vazio, ignorado ao canto, largado sob os próprios pés, próprios e meus que por tanto vão e nunca me chegam.

Há três dias não durmo. Tenho estado suspenso, mergulhado em uma dimensão de silêncio. Relógios e seus ponteiros moleques. Passo cada noite nesse ritmo eterno, onde minha vida de temporalidades não se encaixa com nada: acabo inútil e solto e pra sempre. Não há possibilidade de me deixar pra outra hora, agarrado a mim já preso sempre a tudo. Arrumo o tapete com os pés: corrente, trinco, e nessas horas o que fica da porta pra lá é tão a mesma coisa que não faz sentido apertar ferrolhos, torcer chaves. Minha casa acaba extensão de qualquer corredor. Em fuga desço as escadas e contorno o prédio. Suas luzes apagadas seguem meus passos, decifro lampejos de salas e quartos como espio de criança que finge dormir. As coisas ganham esse caráter infantil e duro, possíveis somente nesses enquantos. Pelas calçadas disformes chego e estaco em frente de minha janela, farol do jardim que hoje é noite sem sereno, muro sem gatos relegados apenas às lixeiras daqueles que dormem. Olho pra cima e a sala acesa beira uma sensação de agrado. Parece mesmo que as coisas ali dentro são boas, que a música toca baixo e dois ou três vão buscando alguma justificativa pra continuar logo mais pelo amanhecer. Sinto que posso, e até diria que corro se mudasse alguma relação no tempo daqui que é infinito e de pedra. Tão logo me trago de volta. A maçaneta tranca às costas, apago a luz pra claridade desse sossego sem paz e sem nada. Meu prédio volta a dormir sem mim.

Ainda falta pra hora do banho, da roupa certa, dos dentes cada vez mais amarelos. Mesmo não vendo cores daqui, sinto esse amarelo como indicador do tempo: às roupas, aos dedos, ao jeito das saudades. As coisas só ficam claras de um repente só, independentes das vontades minhas e de mim. Desperto. Saio de baixo da água sem aquele trago de desespero. Me pego mesmo pela mão e o café já foi tomado, a poltrona do canto parece e não me lembra. Chega um sorriso de carinho e o elevador de duas crianças sonolentas e pai responsável já desce cheio de mim. Talvez as crianças me entendam. Pergunto ao garoto mais velho como são seus sonhos, mas a porta já desce fechada e fica só o cheiro de quem recém acorda. Por um momento estou entre o térreo e a garagem, imerso em concreto. Lembro bem, mas não consigo entender quanto falta pra que me esqueça de mim, pra que durma desse espelho às minhas costas que me reflete de sua poltrona tão minha.

"quem sabe a luz de um cigarro que desaba do vigésimo andar"
Vitor Ramil - Não é Céu