domingo, 11 de maio de 2014

canção na praia

nesses horários de fim de expediente anda tudo em estanque. confesso que ao semáforo dessa curta quadra a esquerda é opção, mas tão poucos são os carros que se entregam ao vértice sinistro, à obrigação de recalcular rotas pelos aparelhos que nos ditam a vida. parece ser o fluxo a intenção de tudo. vão as luzes estaticamente avermelhadas em pequenos movimentos que não mudam o panorama, onde estacadas brilham numa força uniforme, talvez o mesmo grito de ansiedade que implora ao inerte a esperança do movimento. desgraçadas são as ambulâncias, esse infinito escasso de cores que garganteiam passagem pelo travado, escoando-se por entre esquinas num falso intuito misericordioso que esconde a necessidade de ir sem pra onde.  talvez seja assim o ritmo: acostumar-se à lentidão num sonho de continuidade. é outono.

escangalho o cadeado e levo a bicicleta de banco dado em minha mão direita. ir pela contramão requer calçada, e nisso atravesso as poucas esquinas de outros tantos aglomerados de fachos rubros. a manhã que se maquia pra logo mais, diz a previsão, é daquelas de céu claro imundo das tintas de aquarela. penso em nossa longa travessa de centro levemente esgarçada dessas neblinas que só aparecem em manhãs escancaradas de alaranjado, eu saindo mais cedo por flagrar a preguiça das portas dormindo em suas trancas. é tudo silêncio e é macio por entre teclas de dedos mansos. se a sorte acomodar balancetes meteorológicos na intenção de iludir adivinhações nossas tidas sempre como ciência, hei de andar por contra o mau humor do sol ofuscando os olhos de quem quer que lhe encare a forma recém desperta, a intensidade do brilho que me tira traços do rosto daqueles que me cruzam, iguais assim, manequins sem sequer a expressão nula que todo manequim não tem por nada nunca poder que não seja ensaiar os sonhos que não somos.

imagino serem esses pensamentos próprios do outono. o verão que nos incandesce pelo inverno torna tudo tão sólido, a primavera colore e faz espirrar sonhos em pétalas que ao outono dançam-se em fantasias. já não faz muito e os pedais me levam sem pressa, ainda que esta seja refém da intensidade da busca. seja aqui talvez o motivo que delega pelo passo calmo uma áurea paradoxalmente turbulenta, riscada na pressa santa dos carros que aos semáforos esverdeados parecem tanto saber por onde chegar. pareço passageiro dessa minha extensão de muitos raios que giram e giram e mantém-se parados. desperto hora ou outra pelas ruas mais íngremes numa necessidade de esforço que torna o vagar lento, o encontro ocasional de olhares eterno em panoramas que por nada mudam nessa vagar de janela fechada. não há tempo às dúvidas, ao querer girar a trava da vidraça e perceber ventos de arrepio que devastam colunas tão logo o sol se torna um clarão esmagado. tão logo a subida acaba, adormeço pelos pedais que me sabem o caminho sem destino.

lembro de uma manhã em que passei pela nossa longa travessa de centro. talvez a claridade também encantasse o dormir das lojas, e disso não me lembro bem. naquilo que de memória assumo como realidade de outrora, chego à imagem de um rapaz autista sentado por um dos inúmeros bancos que inundam nossos caminhos. a cidade por vezes parece consciente do cansaço desse fluxo que nos falta, e arquiteta-se aos sonhos de outros de maneira piedosa àquilo que nos pesa. não importa. o rapaz se balançava o corpo numa precisão que toma minhas lembranças ao mesmo ritmo, o olhar vivo num vazio estático que ignora a revoada de pombas recém despertas. penso no carinho de Deus por elas ao dar-lhes gêneros definidos na própria nomenclatura, ao contrário dos sabiás e chupins e canários que não nos são como anjos de sons santos e sexos inexistentes. e rapaz seguia santo, completo em seus próprios pensamentos que nossa capacidade não distingue. nosso minuto de consciência como cotidiano que lhe congela feições, esquece o físico no brindar do entendimento de si para consigo.

admito o desconexo tendo como salvaguarda a possibilidade da cabeça ser geograficamente mapeada por caixas, e dentro dessa que reviro agora, encontro lembranças que algum diabo devem ter em comum. o rapaz se basta sabe-se lá aonde como tão bem se bastaria em qualquer outro lugar. talvez na praia haja mais sentido, haja sentir qualquer coisa pela areia que se faz uma num infinito de grãos unos. realmente não entendo as comparações. tenho leve ao peito as teclas espaçadas em sons que se confundem. seja quem sabe talvez o piano uma única tecla que se dispõe aleatoriamente pelas lacunas de nossas cabeças, cada qual à sua cadência própria, nosso jeito próprio de nos sermos nós. é a tecla grave que faz fundo ao delicado. sente o rodapé e que assim seja.

"song on the beach - arcade fire"