nesses horários de fim de expediente anda tudo em estanque.
confesso que ao semáforo dessa curta quadra a esquerda é opção, mas tão poucos são
os carros que se entregam ao vértice sinistro, à obrigação de recalcular rotas
pelos aparelhos que nos ditam a vida. parece ser o fluxo a intenção de tudo.
vão as luzes estaticamente avermelhadas em pequenos movimentos que não mudam o
panorama, onde estacadas brilham numa força uniforme, talvez o mesmo grito de
ansiedade que implora ao inerte a esperança do movimento. desgraçadas são as
ambulâncias, esse infinito escasso de cores que garganteiam passagem pelo
travado, escoando-se por entre esquinas num falso intuito misericordioso que
esconde a necessidade de ir sem pra onde. talvez seja assim o ritmo: acostumar-se à
lentidão num sonho de continuidade. é outono.
escangalho o cadeado e levo a bicicleta de banco dado em
minha mão direita. ir pela contramão requer calçada, e nisso atravesso as
poucas esquinas de outros tantos aglomerados de fachos rubros. a manhã que se
maquia pra logo mais, diz a previsão, é daquelas de céu claro imundo das tintas
de aquarela. penso em nossa longa travessa de centro levemente esgarçada dessas
neblinas que só aparecem em manhãs escancaradas de alaranjado, eu saindo mais
cedo por flagrar a preguiça das portas dormindo em suas trancas. é tudo
silêncio e é macio por entre teclas de dedos mansos. se a sorte acomodar balancetes
meteorológicos na intenção de iludir adivinhações nossas tidas sempre como
ciência, hei de andar por contra o mau humor do sol ofuscando os olhos de quem
quer que lhe encare a forma recém desperta, a intensidade do brilho que me tira
traços do rosto daqueles que me cruzam, iguais assim, manequins sem sequer a
expressão nula que todo manequim não tem por nada nunca poder que não seja
ensaiar os sonhos que não somos.
imagino serem esses pensamentos próprios do outono. o verão
que nos incandesce pelo inverno torna tudo tão sólido, a primavera colore e faz
espirrar sonhos em pétalas que ao outono dançam-se em fantasias. já não faz
muito e os pedais me levam sem pressa, ainda que esta seja refém da intensidade
da busca. seja aqui talvez o motivo que delega pelo passo calmo uma áurea
paradoxalmente turbulenta, riscada na pressa santa dos carros que aos semáforos
esverdeados parecem tanto saber por onde chegar. pareço passageiro dessa minha
extensão de muitos raios que giram e giram e mantém-se parados. desperto hora
ou outra pelas ruas mais íngremes numa necessidade de esforço que torna o vagar
lento, o encontro ocasional de olhares eterno em panoramas que por nada mudam
nessa vagar de janela fechada. não há tempo às dúvidas, ao querer girar a trava
da vidraça e perceber ventos de arrepio que devastam colunas tão logo o sol se
torna um clarão esmagado. tão logo a subida acaba, adormeço pelos pedais que me
sabem o caminho sem destino.
lembro de uma manhã em que passei pela nossa longa travessa
de centro. talvez a claridade também encantasse o dormir das lojas, e disso não
me lembro bem. naquilo que de memória assumo como realidade de outrora, chego à
imagem de um rapaz autista sentado por um dos inúmeros bancos que inundam nossos
caminhos. a cidade por vezes parece consciente do cansaço desse fluxo que nos
falta, e arquiteta-se aos sonhos de outros de maneira piedosa àquilo que nos
pesa. não importa. o rapaz se balançava o corpo numa precisão que toma minhas
lembranças ao mesmo ritmo, o olhar vivo num vazio estático que ignora a revoada
de pombas recém despertas. penso no carinho de Deus por elas ao dar-lhes
gêneros definidos na própria nomenclatura, ao contrário dos sabiás e chupins e
canários que não nos são como anjos de sons santos e sexos inexistentes. e rapaz
seguia santo, completo em seus próprios pensamentos que nossa capacidade não
distingue. nosso minuto de consciência como cotidiano que lhe congela feições,
esquece o físico no brindar do entendimento de si para consigo.
admito o desconexo tendo como salvaguarda a possibilidade da
cabeça ser geograficamente mapeada por caixas, e dentro dessa que reviro agora,
encontro lembranças que algum diabo devem ter em comum. o rapaz se basta
sabe-se lá aonde como tão bem se bastaria em qualquer outro lugar. talvez na
praia haja mais sentido, haja sentir qualquer coisa pela areia que se faz uma
num infinito de grãos unos. realmente não entendo as comparações. tenho leve ao
peito as teclas espaçadas em sons que se confundem. seja quem sabe talvez o
piano uma única tecla que se dispõe aleatoriamente pelas lacunas de nossas cabeças,
cada qual à sua cadência própria, nosso jeito próprio de nos sermos nós. é a
tecla grave que faz fundo ao delicado. sente o rodapé e que assim seja.
"song on the beach - arcade fire"