terça-feira, 20 de maio de 2014

andante

não acho justo o enquadramento. acordo por volta das oito horas da manhã de segunda à sexta, e não depois das dez preciso estar com o corpo preso à catraca da entrada do prédio. alto, espelhado, sede de inúmeras empresas que buscaram nessa opulência de metal e concreto a imagem real de seus objetivos abstratos e vazios. a intenção de todas elas é sempre a mesma. dia ou outro chego atrasado. o porteiro não sorri como de costume, os elevadores não respondem o clamado de meus dedos. num espaço de tempo onde aquele saguão é o universo por inteiro, olham-me todos como se aquela eternidade desgraçada fosse de minha responsabilidade, da minha barba por fazer, do cigarro que nubla o castanho de meus olhos num cheiro sem disfarce. sinto sermos personagens de uma peça ensaiada diariamente, de final conhecido por de trás da interpretação de cada um. o letreiro vermelho incandesce no imediato instante posterior à campainha anunciar o deslize cromado das portas. penso às vezes se o instante imediato não é sim o anterior, mas já trago a maleta apertada ao peito que sobe à vontade dos botões sempre tão bem apertados. som, deslize, e ao meu andar sapatos e seus saltos murmuram numa pressa disfarçada por corredores, na ansiedade que tilinta o pé escondida num rosto repleto de cores e esbranquiçado de expressões. deixo a mala por sobre a mesa e desço fumar.

assumo nossa pequenez, ainda mais quando cerro os olhos buscando lá no alto o contorno invisível do beiral transparente à claridade do céu, cúpula brilhante de um nublado escuro e reluzente. daqui da calçada sonho uma câmera imaginária que capta o exato momento em que entrego meus olhos ao topo do edifício, que num close rápido e inverso, sai da brasa imensa de meu cigarro até alguma altura suficiente à tornar o prédio pequeno e minha existência nula. penso nisso de mão direita no bolso, como que apoiado da velocidade das coisas que imagino e me deixam aqui e toda vez. a verdade talvez se resuma ao fato de todo ideal facultoso tornar-se medíocre quando visto por dentro, tal qual este prédio de vidraças espelhadas, relógio enorme capaz de ditar o passo daqueles que por ali passam esquecidos da vida. por dentro uma sucessão de andares sobrepostos, banheiros pontualmente distribuídos, pés direitos baixos à ponto de impedir que pensemos em qualquer coisa que não o preenchimento de planilhas. sinto falta de meu teclado, do jeito que me canta sublime as imundícies que lhe segredo todo dia em números confidenciais, balancetes de pesquisas encomendadas, infinitudes de dados que se colocados em papel ergueriam verdadeiros monumentos burocráticos. aos que descem fumar, a volta até o elevador contorna uma passagem de funcionários enquanto a catraca continua pronta, armada no ataque certeiro que nos arremessa sem pressa na aleatoriedade dos andares. penso se em algum dia já não desci antes da hora e sentei na mesa que parecia a minha por entre pessoas iguais a todas as outras. não sei e acho graça nosso dom de sermos tão próximos, comuns numa capacidade de substituir-nos de maneira idêntica.

aqui de dentro as coisas são claras e levemente azuladas aos dias de sol. bastões de luz florescentes escondem a cor branca do teto e daquilo que se julga parede: tudo é a tonalidade de um claro duro que participa todos os pigmentos em sua rigidez. pretas são as cadeiras, as capas das pastas e as molduras de nossos quadros eletrônicos. já passei noites nessa mesa sem que houvesse a menor mudança de tom ao azul das vidraças, que como dito, apenas nos dias de sol acusam uma cor levemente sagrada, celeste em nossas rotinas alvas que aqui perdem o caráter divino típico do branco imaginado do paraíso. de tal forma divido o dia pelos cafés, sede inconsciente que me chama três vezes a atenção antes do almoço e quatro no período da tarde. o relógio de meu pulso acaba apenas adereço que me torna igual aos outros e nada mais, cada um refém de sua maneira única de entender esse tempo comum e tão próprio de cada pessoa.

as regras de hierarquia são despercebidas. ainda que reuniões periódicas reforcem o ideal do trabalho conjunto, palestras baseadas principalmente em metáforas sobre a lida heroica das formigas, sinto o abismo de cada um como único e incomunicável. entendo por superior todo aquele que solicita ao tom grave e manso respostas que não posso dar. a arte com que admiram meu silêncio e agradecem o vazio de todo meu esforço talvez justifique seus cargos de sabedoria. somos singulares apenas aos tons da voz, unicamente quando nossos ouvidos podem ouvir aquilo que querem de maneira diferente. na maior parte das vezes é tudo baixo, como se houvessem turnos destinados ao arrumar da coluna, à pressa dos dedos no teclado que se manifesta em estalidos ritmados e sem muita razão; ruídos mansos e ordenados por regras inconscientes que limitam gestos, todos pacientes e ensaiados à meta desconhecida.

já é perto do último café do dia e a mesa à minha frente continua vazia. lembro dos sons e dos papéis coloridos do outro lado, o compensado branco que a todas as mesas separa dos olhos do um aquele outro sentado adiante, o longe pelo espaço de dois metros intransponível ao alvo que parece sem fim. no dia em que chegou perdi o horário do almoço. vários foram os olhares de reprovação, repreensões silenciosas de mãe pelas vezes em que levantei sem respeitar o equilíbrio de ruídos ao nosso corredor. lembro do cheiro, das vezes em que entregava a ponta dos dedos à divisória como se fosse possível trespassá-la. vi seu rosto uma única vez por sobre o pescoço, os dois primeiros botões da camisa sobrepostos escondendo poros sedentos da vida dali de fora. talvez estivessem ainda abertos do arrepio ao banho recém tomado, o carinho da toalha que tira apenas o excesso não tragado pelo corpo. vi seu rosto uma única vez e segui o compasso fino da ponta daqueles saltos até sua mesa. acompanhei seguro o despejar de chaves, dedos rápidos à ponta da coluna curvada digitando senhas, soltando do ombro a bolsa que tão bonito lhe deixava o braço. no outro dia não apareceu.

arrumo minhas poucas coisas numa carência por desordem, e envolto pelo silêncio dou a volta sem saber pra onde. a dificuldade daqui é ninguém possuir algum rosto que familiarize o caminho, feições como placas ou quadros que nos indiquem a certeza do lugar certo. sei apenas de minha mesa, minha unicamente pela tatuagem do café posto ao lado esquerdo. ao final do dia escondo a marca com pastas ou qualquer papel que pareça importante, qualquer coisa indigna de ser tocada por qualquer um; sejam quais forem as faxineiras que tanto tem acesso à tudo, que tanto apagam nossas marcas e esse outro pouco que resta de nós.

os olhos não aceitam de bom grado o dia já recolhido. como passarinhos de cozinha reféns do acender e apagar das luzes, minhas janelas piam e batem pálpebras por uma ou duas esquinas até que se amansam. o trânsito existe mas meu ônibus vai como aquário vazio numa sala repleta. sem apoiar a cabeça na janela penso qual a utilidade de um ônibus que nunca vai cheio. escolho os acentos duplos como se buscasse ver uma única vez algum rosto qualquer. certo dia sentou-me ao lado um homem já curado das feições joviais. pouco se mexeu e quando ameacei me levantar já existia rente à porta. desceu dois ou três passos à minha frente, e tão logo venci o degrau da calçada, ia ele manso envolvido pela fumaça de seu cigarro. parecia protegido.


até certo ponto parece justo o enquadramento. desaperto a gravata e ainda de sapatos dou os cotovelos ao beiral da sacada. moro no quinto andar e minhas luzes estão sempre apagadas como as dos outros andares. sinto que por essas noites sem lua os olhos de qualquer um viram estrelas, mas não. já parece tarde, um céu escuro como que se levemente azulado de dias de sol.

pega o táxi, meu irmão.