não acho justo o enquadramento. acordo por volta das oito
horas da manhã de segunda à sexta, e não depois das dez preciso estar com o
corpo preso à catraca da entrada do prédio. alto, espelhado, sede de inúmeras
empresas que buscaram nessa opulência de metal e concreto a imagem real de seus
objetivos abstratos e vazios. a intenção de todas elas é sempre a mesma. dia ou
outro chego atrasado. o porteiro não sorri como de costume, os elevadores não
respondem o clamado de meus dedos. num espaço de tempo onde aquele saguão é o
universo por inteiro, olham-me todos como se aquela eternidade desgraçada fosse
de minha responsabilidade, da minha barba por fazer, do cigarro que nubla o
castanho de meus olhos num cheiro sem disfarce. sinto sermos personagens de uma
peça ensaiada diariamente, de final conhecido por de trás da interpretação de
cada um. o letreiro vermelho incandesce no imediato instante posterior à
campainha anunciar o deslize cromado das portas. penso às vezes se o instante
imediato não é sim o anterior, mas já trago a maleta apertada ao peito que sobe
à vontade dos botões sempre tão bem apertados. som, deslize, e ao meu andar
sapatos e seus saltos murmuram numa pressa disfarçada por corredores, na
ansiedade que tilinta o pé escondida num rosto repleto de cores e esbranquiçado
de expressões. deixo a mala por sobre a mesa e desço fumar.
assumo nossa pequenez, ainda mais quando cerro os olhos buscando
lá no alto o contorno invisível do beiral transparente à claridade do céu,
cúpula brilhante de um nublado escuro e reluzente. daqui da calçada sonho uma
câmera imaginária que capta o exato momento em que entrego meus olhos ao topo
do edifício, que num close rápido e inverso, sai da brasa imensa de meu cigarro
até alguma altura suficiente à tornar o prédio pequeno e minha existência nula.
penso nisso de mão direita no bolso, como que apoiado da velocidade das coisas
que imagino e me deixam aqui e toda vez. a verdade talvez se resuma ao fato de todo ideal
facultoso tornar-se medíocre quando visto por dentro, tal qual este prédio de
vidraças espelhadas, relógio enorme capaz de ditar o passo daqueles que por ali
passam esquecidos da vida. por dentro uma sucessão de andares sobrepostos,
banheiros pontualmente distribuídos, pés direitos baixos à ponto de impedir que
pensemos em qualquer coisa que não o preenchimento de planilhas. sinto falta de
meu teclado, do jeito que me canta sublime as imundícies que lhe segredo todo
dia em números confidenciais, balancetes de pesquisas encomendadas, infinitudes
de dados que se colocados em papel ergueriam verdadeiros monumentos
burocráticos. aos que descem fumar, a volta até o elevador contorna uma
passagem de funcionários enquanto a catraca continua pronta, armada no ataque
certeiro que nos arremessa sem pressa na aleatoriedade dos andares. penso se em
algum dia já não desci antes da hora e sentei na mesa que parecia a minha por
entre pessoas iguais a todas as outras. não sei e acho graça nosso dom de
sermos tão próximos, comuns numa capacidade de substituir-nos de maneira
idêntica.
aqui de dentro as coisas são claras e levemente azuladas aos
dias de sol. bastões de luz florescentes escondem a cor branca do teto e daquilo
que se julga parede: tudo é a tonalidade de um claro duro que participa todos
os pigmentos em sua rigidez. pretas são as cadeiras, as capas das pastas e as
molduras de nossos quadros eletrônicos. já passei noites nessa mesa sem que houvesse
a menor mudança de tom ao azul das vidraças, que como dito, apenas nos dias de
sol acusam uma cor levemente sagrada, celeste em nossas rotinas alvas que aqui
perdem o caráter divino típico do branco imaginado do paraíso. de tal forma
divido o dia pelos cafés, sede inconsciente que me chama três vezes a atenção
antes do almoço e quatro no período da tarde. o relógio de meu pulso acaba
apenas adereço que me torna igual aos outros e nada mais, cada um refém de sua
maneira única de entender esse tempo comum e tão próprio de cada pessoa.
as regras de hierarquia são despercebidas. ainda que
reuniões periódicas reforcem o ideal do trabalho conjunto, palestras baseadas
principalmente em metáforas sobre a lida heroica das formigas, sinto o abismo
de cada um como único e incomunicável. entendo por superior todo aquele que
solicita ao tom grave e manso respostas que não posso dar. a arte com que
admiram meu silêncio e agradecem o vazio de todo meu esforço talvez justifique
seus cargos de sabedoria. somos singulares apenas aos tons da voz, unicamente
quando nossos ouvidos podem ouvir aquilo que querem de maneira diferente. na
maior parte das vezes é tudo baixo, como se houvessem turnos destinados ao
arrumar da coluna, à pressa dos dedos no teclado que se manifesta em estalidos
ritmados e sem muita razão; ruídos mansos e ordenados por regras inconscientes
que limitam gestos, todos pacientes e ensaiados à meta desconhecida.
já é perto do último café do dia e a mesa à minha frente
continua vazia. lembro dos sons e dos papéis coloridos do outro lado, o
compensado branco que a todas as mesas separa dos olhos do um aquele outro
sentado adiante, o longe pelo espaço de dois metros intransponível ao alvo que
parece sem fim. no dia em que chegou perdi o horário do almoço. vários foram os
olhares de reprovação, repreensões silenciosas de mãe pelas vezes em que
levantei sem respeitar o equilíbrio de ruídos ao nosso corredor. lembro do
cheiro, das vezes em que entregava a ponta dos dedos à divisória como se fosse
possível trespassá-la. vi seu rosto uma única vez por sobre o pescoço, os dois
primeiros botões da camisa sobrepostos escondendo poros sedentos da vida dali
de fora. talvez estivessem ainda abertos do arrepio ao banho recém tomado, o
carinho da toalha que tira apenas o excesso não tragado pelo corpo. vi seu
rosto uma única vez e segui o compasso fino da ponta daqueles saltos até sua
mesa. acompanhei seguro o despejar de chaves, dedos rápidos à ponta da coluna
curvada digitando senhas, soltando do ombro a bolsa que tão bonito lhe deixava
o braço. no outro dia não apareceu.
arrumo minhas poucas coisas numa carência por desordem, e
envolto pelo silêncio dou a volta sem saber pra onde. a dificuldade daqui é
ninguém possuir algum rosto que familiarize o caminho, feições como placas ou
quadros que nos indiquem a certeza do lugar certo. sei apenas de minha mesa, minha
unicamente pela tatuagem do café posto ao lado esquerdo. ao final do dia escondo
a marca com pastas ou qualquer papel que pareça importante, qualquer coisa
indigna de ser tocada por qualquer um; sejam quais forem as faxineiras que
tanto tem acesso à tudo, que tanto apagam nossas marcas e esse outro pouco que
resta de nós.
os olhos não aceitam de bom grado o dia já recolhido. como
passarinhos de cozinha reféns do acender e apagar das luzes, minhas janelas
piam e batem pálpebras por uma ou duas esquinas até que se amansam. o trânsito
existe mas meu ônibus vai como aquário vazio numa sala repleta. sem apoiar a
cabeça na janela penso qual a utilidade de um ônibus que nunca vai cheio.
escolho os acentos duplos como se buscasse ver uma única vez algum rosto
qualquer. certo dia sentou-me ao lado um homem já curado das feições joviais.
pouco se mexeu e quando ameacei me levantar já existia rente à porta. desceu
dois ou três passos à minha frente, e tão logo venci o degrau da calçada, ia ele
manso envolvido pela fumaça de seu cigarro. parecia protegido.
até certo ponto parece justo o enquadramento. desaperto a
gravata e ainda de sapatos dou os cotovelos ao beiral da sacada. moro no quinto
andar e minhas luzes estão sempre apagadas como as dos outros andares. sinto
que por essas noites sem lua os olhos de qualquer um viram estrelas, mas não.
já parece tarde, um céu escuro como que se levemente azulado de dias de sol.
pega o táxi, meu irmão.