segunda-feira, 26 de maio de 2014

das linhas não lidas

Como se recém desperto, ia pela cadência do velocímetro batendo o topo de seu primeiro quarto. Não havia antes, muito menos pretensão de que depois fosse possível ou qualquer maneira outra. Tinha estancados quaisquer que fossem os ideais, e guiava numa completude ao tempo e espaço que fazia destes um ou até menos do que isso. A rua vazia não obrigava meu caminho sempre lento à faixa da direita, e seguia assim, escancarado assim, pelo meio da avenida Visconde de Guarapuava. Éramos eu, a brisa esquiva por entre o vidro entre aberto e o ronco manso do motor do fusca, trindade esta repleta de silêncio, ressoando únicos e amarelados dos postes sem razão. Era a calma, a eternidade tangível e de gosto e forma. O deslize dos pneus soava como chuva ao ouvido com algodão, um som de nuvem que não pode caber em nada não seja sonho. Percebi que estava morto.

Tive meus ideais de paraíso muito antes de realçar o laço que une nossa pequenez humana ao imensurável divino. Não imaginava ser possível ter como a eternidade um último sonho repleto pelo programado em vida. Que seja um homem de fé ou não, ao menos à hora da morte desenhamos o esboço daquilo que desde sempre nos espera. Os sonhos de lá, tendo em vista agora a realidade daqui, nunca nos foram de jeito qualquer que não distantes. Talvez por isso os alcancemos justamente nestas paragens, quem sabe uma indenização dos tribunais celestes que legislam e executam nossas sentenças. Sigo pensando nisso.

A sincronia dos semáforos é perfeita. Não causa receio de frear ou temer qualquer desaviado que nos cruza a vida em vida para colhe-la de maneira trágica. Penso nas esquinas que formamos ao passar uns pelos outros, olhares que por um instante são perpendiculares ao ângulo que não sabemos. Na impossibilidade de todo par de passos ser perfeitamente paralelo, vamos sem saber como o longe vai se tornando perto, se interpõe, se torna perto ao outro lado, para enfim distanciarem-se no imensurável. Sei que logo mais à frente a curva à esquerda simboliza o fim. Acredito nisso por não lembrar ter algum dia adornado meu ideal de paraíso com um retorno inconsciente do trajeto; uma espécie de extensão que levasse o primeiro cruzamento, que julgo ser com a Rua da Paz, até o último demarcado como Carneiro Lobo. Quem sabe dessa forma burlasse o fim da morte, que tão logo veio para logo mais agradecer a carona. É engraçado não ter tempo para aprender teorias ou crenças sobre o que chega depois dela, e o medo desse desconhecido parece leve por ser ainda puro.

A única casa acesa avisto de longe, poucos metros à beira da vereda sinistra. Telhado calmo e luzes mansas que se confundem como estrela em deserto, como farol de lumes circulares que aos olhos dos anjos talvez pareçam estrelas; pareça quem sabe o mar espécie de constelação ondulante onde peixes se alinham à imagem de figuras místicas em lendas divinas. Estaciono e rio de minha preocupação em trancar o carro. Tranco ainda assim. O muro é de plantas baixas, e o caminho segue por entre quadrados de pedra tatuados ao longo da grama por cortar. Sigo até a porta pensando em minha mãe, na risada de hortelã que soltava quando pisava por entre calçamentos que julgávamos de cor proibida. Parece aqui não haver saudade.

Chego sem que haja necessidade de procurar a campainha, como se honrado da segurança que tem o íntimo ao proprietário, que divide não só a morada dos pensamentos como aquela outra que abriga o corpo de tanta fome e tanta dor. Num estalido sem existência a porta cede ao carinho de minha mão direita, consciente da confiança depositada nela, em seus gestos requisitados sem que precise ser afinada pela atenção dos olhos. A sala é branca e não explica as luzes hepáticas que tanto adoecem as janelas, que tanto deixam a casa triste como nunca antes se viu. A música parece dizer de despedida, e o arrepio me leva flutuando às vibrações das teclas. Parece claro aqui a emoção ser originária do encontro de sons idênticos, que se habitam talvez no peito ou na cabeça, mas sempre resultante da similaridade entre o que chega pelo ouvido e o que já mora na periferia da alma. Poltronas e quadros num aconchego único, assim como o rapaz sentado em frente à porta e à quaisquer que sejam as outras coisas daqui. Seus olhos castanhos que seguem, ainda que seja impossível qualquer movimento que lhe obrigue atenção ao acompanhar. Habita como se de toda sua existência nada tivesse feito que não sentar em frente à tudo, me sorrir doente de compleição pelo meu espanto sem sentido. Deus é mesmo jovem, penso.

Não imaginei que fosse assim, digo quieto achando que aqui pensamento e tom são vozes diferentes. Tão logo reprovo a afirmação na impossibilidade do dito ser convertido em qualquer espécie rara de silêncio. É o que muito me falam, e me diz que tantas são as montagens, tantas são as cenas que se coloca por nossas carências de fé, que por vezes sente já não saber mais quem é; que se olha pelo espelho infinito que é o universo e não vê nada que não seus sonhos também tão nossos. O silêncio que enche todos os cantos onde é possível haver algum canto por ser preenchido é de uma dor que participo, que sinto clara na desilusão de ser possível partilhar qualquer coisa com Deus. Ouço, agora da maneira acostumada.

 - Não se acha digno ou pareço tudo que não aquilo que sempre pensastes ao meu respeito?,  pergunta já sabendo a resposta, provando que de fato tanto sempre nos teve às mãos.

 - Creio que os dois, mas tu bem sabes e já não faz sentido dizer qualquer coisa, pensar em qualquer coisa que não aquele cheiro de café que não lembro fazer parte do arquitetado.

 - Não apenas aquilo que escreve, explica por entre a respiração forte que seu levantar rápido obriga ao peito tão estranhamente humano, mas também os pensamentos que esqueceu; o teu entorno que abandona toda noite por ser muito o por alinhar e pouco o peito pra sentir. Não lembra, por exemplo, do dia em que viu a moça sentada à tua direita, modéstia à parte a direção mais perfeita entre todas as que criei, trazendo presos por milagre também de minha autoria os círculos perfeitos e sem fim que compunham tal cabelo como eternidade. Sim, agora se lembra, mas desconhece a simpatia por esse quadro que tanto lhe prende a atenção desde que aqui chegou; que me faria, caso não fosse Deus, sem voz à tua atenção limitada que deixa pregado os olhos à cada detalhe dessa casa.

Calo, e justo é dizer que nessa nossa ausência de tempo meu silêncio é maior que qualquer eternidade. Dou asas aos olhos que em seu livre voar me deixam apenas com minhas imagens de dentro. Ostentam o dom dos beija flores à cada detalhe que desperta interesse: rodapés, livros, luminárias, degraus específicos de distintas escadas, cortinas entre abertas, eu e até mesmo o relógio de Deus trabalhado em couro. Voltam sem avisar, dentro de um único súbito em que entendo a casa composta de tudo que vivi.

 - Do quadro vejo o listrado da camisa dela, o contorno do corpo refém da leveza dos próprios braços. Ela que tanto acredita em fumantes poderem também amar, e nisso ainda agora concordo. Deu um abraço que listrou de carinho a moça que lhe foi tomada ao corpo, o tom forte da voz manifestado na pose dura quando imobilizava as mãos por de trás do corpo; refém consciente do caminho, de peito aberto ao encarar das garoas. Agora me lembro.

 - Fostes sempre com muita sede, ainda que reconheça teu saciar precoce, teu desinteresse ao caminho que quer pra logo mais não querer. Não foste tu que se quis assim, meu filho.

Interrompe minha resposta antes mesmo que pudesse pensar em qualquer coisa. Deus tem essa mania terrível de responder as próprias perguntas, ainda que pareça ser só Ele capaz de satisfazer as próprias dúvidas. Entendo. 

 - Não, não entende e é por isso que és, assim como todos os outros, capaz de sentir apenas o não dito; traduzindo o desconhecido em medo por ser medo a única palavra dona de todas as faces sentidas aos teus olhos humanos que tanto são iguais em todos.

Cala agora ele, direciona o corpo de roupas elegantes à porta à direita e entra. Penso que tem Ele também suas manias, as afrontas que não permite de jeito maneira. Sei que há de voltar equilibrando sem dificuldade paradoxal a bandeja de prata de minha mãe, decorada das xícaras que foram da mãe de meu pai e que um dia se tornariam minhas e de meu irmão; ao centro o bule com café colombiano que tanto nunca tomei.

De fato. O vapor sai trêmulo em formato e ritmado às teclas que martelam essa música por tudo e inconsciente, som e silêncio numa existência inseparável que agora é clara de fazer sorrir. Pego a xícara oferecida e percebo que tudo sempre haveria de ser assim, ao passo que, agora sentado em sua cadeira, me responde com um sorriso recortado em xícara, cerâmica de encaixe perfeito à fenda que até em Deus se abre ao mostrar dentes amarelos de cigarros.

 - E as perguntas?

 - Já delas bem sabe.

 - Pois bem, e descansa a xícara às mãos em concha, movimentos rítmicos ao cruzar de pernas que demonstra orgulho pelo sapato lustrado. Pois bem. As mulheres têm graça em tudo, mas isso reluto em dizer que foi criação própria de suas maneiras. Não os fiz homens desgraçados, e dou aqui sentido apenas de ausência de encanto. Bem sabes que essa figura de elegância que assumo ao teu desejo é prova do homem ser tão ilustre por seus gestos duros. Voltemos às mulheres, e aponta ao bolso de minha camisa justo quando não sabia se formar cá dentro a sede de tabaco.

 - Obrigado. Posso ter a honra de lhe emprestar o fogo?

 - Não, e admito achar graça de querer fazer contrário tudo que sabe tão bem quanto eu. Voltemos às mulheres, e aproveito o exemplo do teu acender de cigarro: a forma com que dispõem dos dedos ao criar fogo. Com nós, e assumo o caráter masculino apenas ao teu desejo, o ato é ordinário ainda quando sentados por varandas, deitados pela grama ao sonhar que a fumaça que sai do peito participa de alguma forma às nuvens que não sabem parar. Tu bem sabes de como o rosto delas se ilumina, lembras de quando viu o corpo daquela que ainda lhe é incandescido em brasa pela penumbra do quarto. Essa graça não temos, meu filho. A bem da verdade é que você tinha razão ao dizer que percebia as cores conforme os diferentes graus de pequenez que galgava durante a vida; mas se nem em mim acreditava realmente, quem dirá em seus próprios pensamentos solitários.

Disse-me ainda dos esforços que fez. Admitiu por vezes nos esquecer à razões impossíveis para nossa compreensão, e por isso não nos pede perdão. Confessou uma ou outra guerra e a mutação de certos vírus resultantes de suas ausências, mas não demorou muito para perceber a perfeição de todo e qualquer gesto próprio, indignificando inclusive a piedade para conosco.

Fala com bondade, e não sei até que ponto o caráter dócil é atuado por vontade minha.

 - É frustrante, e agora quem levanta de cigarro aceso sou eu, pensar o quanto tudo é tão repleto de dúvida e incerteza, do próprio medo que ouso dizer não ter sentido algum em tuas paragens; tu que não temes, que tem claras todas as mistificações que compõem o duro e cético seguir nosso; tu que de tudo sabes e tudo participa e de fato é muito mais do que qualquer dimensão de totalidade; tu que és o infinito, e ao mesmo tempo longe de nosso sentir restrito e temerário.

Parece incomodado, e ao meu julgamento sorri de imediato.

 -  Não sei fingir espanto, e esqueço que você já se deu conta da maneira que as coisas funcionam por aqui. Mas de fato entendo sua frustração, e para ela nada digo. Viver a dura vida de incerteza na esperança que em minha face há de repousar quaisquer inquietações e turbulências na alma, e por fim me encontram conforme desejam que eu fosse, sabendo que a curva à esquerda tua é a porta ou o corredor ou o salto da montanha para todos os outros que te disse.

 - Devia ter nos avisado de alguma maneira que o fim não era você.

 - E por quais motivos acredita que isso nunca fiz? Lembra-te daqueles que escreviam as histórias daqui.
Lembro-me. Nas gravações em que aqueles aparecem psicografando segredos das dimensões que talvez se encontrem após a curva de logo mais, há sempre uma moça ou rapaz à função de virar páginas de caderno ou trocar folhas de papel para que continuassem o que tanto ouviam. Rimos um dia, eu e outros moços de mentes fantasiosas, na possibilidade da distração ou dos dedos secos que alisam sem nunca trazer o papel, fazendo assim com que algumas linhas sejam escritas no ar, segredos de máxima divindade em que o sussurro viesse talvez diretamente de Deus. Disso apenas ríamos.

 - A fantasia é a realidade desacreditada. Não apenas essas linhas escritas pelo ar, inexistentes ao vosso analfabetismo em caligrafias flutuantes e invisíveis, mas também os vultos reais que diluíam em jogos secretos entre olhos e escuridão, vozes caladas pela certeza do engano da mente cansada. Eu muito digo, meu filho. Talvez pelo longo tempo de solidão.

Pontua poucas coisas, e a totalidade destas é decorada pelo dedo em riste de sua mão direita. Gesticula com maestria, rasga qualquer que seja a vista de meus olhos num violino refém da intensidade do que quer provar. Fala do diabo, dos amores, das propriedades dos chás, de tudo aquilo que julguei ter levado na vida como dúvidas. Pouco falou de meu desfecho.

 - Isso não posso te responder. Àquilo que traz consigo como injusto ou ponderável de qualquer coisa que não aceitação, sinto, mas não cabe a mim. Foste a vida toda fantoche, para que agora tenhas em mim apenas a segurança que lhe falta para acreditar em tudo aquilo que nunca pode.

Como planejado. Ainda pergunto uma ou outra coisa sobre a feição de Santo Amaro, mas Ele pouco caso fez. Talvez as nomeações de santos pelo Vaticano não condigam com os bem quistos de Deus, e nessa desarmonia vejo graça.

 - Aquela ideia unir as pontas da rua daria jeito de fugir do irremediável?

 - Assim como uma vida saudável prolonga o sofrimento.

Levanto resignado, e agora como se desperto de um sonho. Aos ideais de mistificação do fim, a verdade se apresenta como crua e sem floreios aos nossos olhos. A bem da verdade é uma certa monotonia, uma ausência de surpresas que vem à tona por completo tão logo se dê conta do jogo. Sem despedidas o deixo da mesma maneira que o encontrei, e se essa pergunta tivesse de ser respondida por Deus, diria que me deixa da mesma maneira que tanto sempre nos deixou.

Um sujeito de bem.

Forço os olhos num temor desnecessário pela presença do carro, e ao alívio prazeroso caminho conferindo chaves, carteira e maço. Até aqui perco o isqueiro. Abro a porta e o molejo dos bancos range como chuva forte ao cheiro de gasolina doce que sempre tanto inundou meus pulmões. Paciência. O fusca pega fácil e por milagre ou desatenção minha, ainda tenho mais uma quadra antes da Carneiro Lobo. Não penso em muita coisa. Olho ao espelho esquerdo à força do hábito, e a seta ilumina a direção que não conheço. Foi tudo bem. A folga do volante persiste. Talvez arrumasse na outra semana, mas acontece. Venço a curva.

O semáforo poucos metros à frente alerta num amarelo sugestivo. Talvez pense, assim como eu, que faço a última curva desse estágio pós vida inominável sem a confissão de Deus. Tenho como trunfo a dependência dele às nossas fraquezas, e isso nada me adianta. É escuro, e sinto que me apertam algodões ao ouvido de maneira gradual. Não há mais tempo. Nunca houve. É tudo sonho, ou pelo menos soa como tal.