deu as costas para o real, e lá estava ele, parado na porta de algum lugar e sem nada nas mãos. tirou os sapatos, mexeu os dedos para prolongar um pouco a sensação de alívio, e contou os passos calmamente até a poltrona cor de mostarda. sentou, soltou o ar até sentir aquela calma dor na coluna, e notou que à sua volta era tudo branco e quieto. tinha adiado tanto aquele momento que já não sabia ao certo o que queria com aquilo.
fechou os olhos, e quando os abriu, lá estava a cômoda de duas gavetas com um pequeno tapete em cima. todo aquele imenso branco cansava um pouco seus olhos, e quando tentava achar o fim daquela ausência de cores, acabava chegando em alguém sentado em alguma coisa cor de mostarda - creio que ele. quis que tudo ficasse mais escuro, e depois de se reclinar um pouco, abriu a segunda gaveta e começou a assistir a sua vida que de lá saía.
realmente tinha muito lixo. os papéis de propaganda e as notas de qualquer coisa fizeram questão de se apresentar primeiro e ir embora sem fazer diferença alguma. ''não é tão difícil assim'', pensou antes de amassar o recibo do seu primeiro all star, e o atirar em direção àquele espaço ausente.
pelo o que lembrava, deixava tudo que lhe importava dentro de um saquinho azul escuro, sempre amarrado por um fio da mesma cor prestes a se tornar dois. deixou-o de lado pois resolveu assistir primeiro aos livros e cds que ganhara de presente, e que lá estavam por julgá-los importantes demais para ficarem junto de letras comuns e sons cotidianos. onde estava não havia tempo e nem limite, então desejou uma cadeira e pediu para que Papillon, sentado ao seu lado, lhe contasse algumas vezes o ''caminho da podridão'' contido em 525 páginas amarelas. acabou indo embora ser feliz na Venezuela, e deixou-o ali com suas músicas que tanto lhe fizeram correr, sonhar e escrever.
de repente, um silêncio branco.
de repente ele não ouvia mais nada. o pouco que enxergava era ofuscado pelo sopro gelado que vinha da boca de seu estômago, e que saia incerto entre seus beijos vazios. sem avisar, uma caixa de que praticamente desconhecia existência resolveu tomar a vez e expor-se no telão de suas memórias. era a primeira medalha, a primeira música escrita, a primeira carteirinha de colégio, e seus primeiros colares de praia; na realidade, lembrou-se que nenhuma daquelas coisas tinham sido verdadeiramente as primeiras de sua vida, mas conseguiam se passar por tal e dar vida a uma infância que ficou para trás não faz muito tempo.
quando recobrou a consciência tirou toda aquela incerteza dos pulmões, e começou a tentar perceber o que seus olhos olharam enquanto seu coração estava longe, vagando entre simplicidades e sorrisos; deve ter sido entre a paz de reler seus textos, ou no prazer de tocar em seu violão as músicas que lembram a menina que não diz frases bonitas. ''quem sabe no arrepio de ouvir a música certa na hora incerta'', pensou alto e sorrindo, enquanto apoiava melhor na poltrona o vazio imenso do seu peito.
''tenho certeza! foi isso que meus olhos olharam...''
depois disso, foi tanta coisa que tinha quase plena consciência de não ter piscado enquanto sua gaveta praticamente se esvaziou da vida daquele ser da poltrona. não lhe doía nada, mas menos ainda lhe fazia algum bem; aquela sensação de não ter o que sentir frente ao passado era muito pior do que a desculpa que usava para adiar este encontro. ''está tudo indo ''bem'''', pensava com um sorriso que mais transmitia pena do que ironia.
até que, de um jeito esperado, não mais que de um jeito esperado, um papel de bala não conseguiu ser levado pelo branco, e muito menos voltar para o móvel de marfim vagabundo; ficou ali, estatelado no vazio bem diante de seus olhos. de um jeito nem um pouco engraçado, ele apenas não se lembrava o que era, e não conseguia deixar ir embora aquilo que esquentava o frio de seu estômago. fechou os olhos, desejou não existir, mas o lugar onde os relógios não funcionam atendeu-lhe por tão pouco tempo que quando abriu os olhos, o papel ainda fazia questão de não fazer sentido. a idéia de perder uma memória entre poucas boas não lhe fez bem.
enfim, ''que eu possa ser justo com as coisas que ainda me parecem ter sentido.'' foi tudo o que pensou.
levantou da poltrona, contraiu as pernas para sentir o sangue fluir, retirou a gaveta de baixo do móvel decorado com tapete, e sentou-se para poder encarar melhor aquele saquinho azul. reconheceu que realmente parecia com aqueles em que os antigos colocam suas moedas de ouro, e tentou reconfortar a pequena bolsa dizendo que ouro nenhum poderia comprar o conteúdo que sustentava: a sua parte mais sincera.
''saquinho, fique claro que seu silêncio me reafirma como sou péssimo com meus argumentos...''
naquele momento, se houvesse mais música, ela se calaria pra ouvir; se houvesse ponteiro passeando, sentaria pra observar tudo atenciosamente por toda a eternidade; até se Papillon ficasse sabendo disso antes da Venezuela, desfaria suas malas a menos de 10 metros da poltrona e por lá viveria. enfim, desfez aquele nó com mesmo cuidado que tem ao dar o primeiro beijo do dia nela. o branco pareceu noite sem lua, perto da imensidão de brilhos e formas que saíam daquele velho pedaço de pano azul.
viu conchas, tartarugas, balas e bilhetes azuis passarem pelo céu branco como criança no ano novo. tudo pareceu tão simples, tão livre de mágoas e fantasmas* que pediu para rever aqueles filmes que lhe escancaravam cada vez mais o sorriso. as coisas nunca lhe fizeram tanto sentido como naquela hora; tudo de repente não precisou ter motivo para ser o certo, e assim sentia seus medos indo da mesma maneira que um qualquer bilhete azul se fazia ser notado diante de seus olhos. sem sombra alguma de dúvidas, armas de elefante era tudo que conseguia ouvir.
''e que comece a temporada!'', dizia a música entre sopros e cordas. só conseguia dançar naquela imensidão branca, segurando pela ponta de seus dedos um bilhete azul rabiscado de vermelho e preto. naquela hora, todas as desventuras e angústias que passaria pelo resto da vida estavam sendo recompensadas; as coisas que fariam questão de perderem o sentido estariam apenas justificando a certeza que teve, naquele momento, de um mundo perfeito à sua volta.
e foi assim, da mesma forma sem porque, despiscou e deu-se de peito para o real. para sua decepção, tudo estava no seu mais perfeito lugar. todo aquele branco tinha dado a vez para uma infinidade de cores que lhe maltratavam, acima de tudo, a calma que tivera outrora. lhe restou, dessa forma mal escrita, colocar aquela segunda gaveta no seu lugar, e ter toda a eternidade para se lembrar como, naquele branco qualquer, as coisas não precisaram ter sentido algum para serem as mais certas de sua vida.