segunda-feira, 26 de maio de 2014

das linhas não lidas

Como se recém desperto, ia pela cadência do velocímetro batendo o topo de seu primeiro quarto. Não havia antes, muito menos pretensão de que depois fosse possível ou qualquer maneira outra. Tinha estancados quaisquer que fossem os ideais, e guiava numa completude ao tempo e espaço que fazia destes um ou até menos do que isso. A rua vazia não obrigava meu caminho sempre lento à faixa da direita, e seguia assim, escancarado assim, pelo meio da avenida Visconde de Guarapuava. Éramos eu, a brisa esquiva por entre o vidro entre aberto e o ronco manso do motor do fusca, trindade esta repleta de silêncio, ressoando únicos e amarelados dos postes sem razão. Era a calma, a eternidade tangível e de gosto e forma. O deslize dos pneus soava como chuva ao ouvido com algodão, um som de nuvem que não pode caber em nada não seja sonho. Percebi que estava morto.

Tive meus ideais de paraíso muito antes de realçar o laço que une nossa pequenez humana ao imensurável divino. Não imaginava ser possível ter como a eternidade um último sonho repleto pelo programado em vida. Que seja um homem de fé ou não, ao menos à hora da morte desenhamos o esboço daquilo que desde sempre nos espera. Os sonhos de lá, tendo em vista agora a realidade daqui, nunca nos foram de jeito qualquer que não distantes. Talvez por isso os alcancemos justamente nestas paragens, quem sabe uma indenização dos tribunais celestes que legislam e executam nossas sentenças. Sigo pensando nisso.

A sincronia dos semáforos é perfeita. Não causa receio de frear ou temer qualquer desaviado que nos cruza a vida em vida para colhe-la de maneira trágica. Penso nas esquinas que formamos ao passar uns pelos outros, olhares que por um instante são perpendiculares ao ângulo que não sabemos. Na impossibilidade de todo par de passos ser perfeitamente paralelo, vamos sem saber como o longe vai se tornando perto, se interpõe, se torna perto ao outro lado, para enfim distanciarem-se no imensurável. Sei que logo mais à frente a curva à esquerda simboliza o fim. Acredito nisso por não lembrar ter algum dia adornado meu ideal de paraíso com um retorno inconsciente do trajeto; uma espécie de extensão que levasse o primeiro cruzamento, que julgo ser com a Rua da Paz, até o último demarcado como Carneiro Lobo. Quem sabe dessa forma burlasse o fim da morte, que tão logo veio para logo mais agradecer a carona. É engraçado não ter tempo para aprender teorias ou crenças sobre o que chega depois dela, e o medo desse desconhecido parece leve por ser ainda puro.

A única casa acesa avisto de longe, poucos metros à beira da vereda sinistra. Telhado calmo e luzes mansas que se confundem como estrela em deserto, como farol de lumes circulares que aos olhos dos anjos talvez pareçam estrelas; pareça quem sabe o mar espécie de constelação ondulante onde peixes se alinham à imagem de figuras místicas em lendas divinas. Estaciono e rio de minha preocupação em trancar o carro. Tranco ainda assim. O muro é de plantas baixas, e o caminho segue por entre quadrados de pedra tatuados ao longo da grama por cortar. Sigo até a porta pensando em minha mãe, na risada de hortelã que soltava quando pisava por entre calçamentos que julgávamos de cor proibida. Parece aqui não haver saudade.

Chego sem que haja necessidade de procurar a campainha, como se honrado da segurança que tem o íntimo ao proprietário, que divide não só a morada dos pensamentos como aquela outra que abriga o corpo de tanta fome e tanta dor. Num estalido sem existência a porta cede ao carinho de minha mão direita, consciente da confiança depositada nela, em seus gestos requisitados sem que precise ser afinada pela atenção dos olhos. A sala é branca e não explica as luzes hepáticas que tanto adoecem as janelas, que tanto deixam a casa triste como nunca antes se viu. A música parece dizer de despedida, e o arrepio me leva flutuando às vibrações das teclas. Parece claro aqui a emoção ser originária do encontro de sons idênticos, que se habitam talvez no peito ou na cabeça, mas sempre resultante da similaridade entre o que chega pelo ouvido e o que já mora na periferia da alma. Poltronas e quadros num aconchego único, assim como o rapaz sentado em frente à porta e à quaisquer que sejam as outras coisas daqui. Seus olhos castanhos que seguem, ainda que seja impossível qualquer movimento que lhe obrigue atenção ao acompanhar. Habita como se de toda sua existência nada tivesse feito que não sentar em frente à tudo, me sorrir doente de compleição pelo meu espanto sem sentido. Deus é mesmo jovem, penso.

Não imaginei que fosse assim, digo quieto achando que aqui pensamento e tom são vozes diferentes. Tão logo reprovo a afirmação na impossibilidade do dito ser convertido em qualquer espécie rara de silêncio. É o que muito me falam, e me diz que tantas são as montagens, tantas são as cenas que se coloca por nossas carências de fé, que por vezes sente já não saber mais quem é; que se olha pelo espelho infinito que é o universo e não vê nada que não seus sonhos também tão nossos. O silêncio que enche todos os cantos onde é possível haver algum canto por ser preenchido é de uma dor que participo, que sinto clara na desilusão de ser possível partilhar qualquer coisa com Deus. Ouço, agora da maneira acostumada.

 - Não se acha digno ou pareço tudo que não aquilo que sempre pensastes ao meu respeito?,  pergunta já sabendo a resposta, provando que de fato tanto sempre nos teve às mãos.

 - Creio que os dois, mas tu bem sabes e já não faz sentido dizer qualquer coisa, pensar em qualquer coisa que não aquele cheiro de café que não lembro fazer parte do arquitetado.

 - Não apenas aquilo que escreve, explica por entre a respiração forte que seu levantar rápido obriga ao peito tão estranhamente humano, mas também os pensamentos que esqueceu; o teu entorno que abandona toda noite por ser muito o por alinhar e pouco o peito pra sentir. Não lembra, por exemplo, do dia em que viu a moça sentada à tua direita, modéstia à parte a direção mais perfeita entre todas as que criei, trazendo presos por milagre também de minha autoria os círculos perfeitos e sem fim que compunham tal cabelo como eternidade. Sim, agora se lembra, mas desconhece a simpatia por esse quadro que tanto lhe prende a atenção desde que aqui chegou; que me faria, caso não fosse Deus, sem voz à tua atenção limitada que deixa pregado os olhos à cada detalhe dessa casa.

Calo, e justo é dizer que nessa nossa ausência de tempo meu silêncio é maior que qualquer eternidade. Dou asas aos olhos que em seu livre voar me deixam apenas com minhas imagens de dentro. Ostentam o dom dos beija flores à cada detalhe que desperta interesse: rodapés, livros, luminárias, degraus específicos de distintas escadas, cortinas entre abertas, eu e até mesmo o relógio de Deus trabalhado em couro. Voltam sem avisar, dentro de um único súbito em que entendo a casa composta de tudo que vivi.

 - Do quadro vejo o listrado da camisa dela, o contorno do corpo refém da leveza dos próprios braços. Ela que tanto acredita em fumantes poderem também amar, e nisso ainda agora concordo. Deu um abraço que listrou de carinho a moça que lhe foi tomada ao corpo, o tom forte da voz manifestado na pose dura quando imobilizava as mãos por de trás do corpo; refém consciente do caminho, de peito aberto ao encarar das garoas. Agora me lembro.

 - Fostes sempre com muita sede, ainda que reconheça teu saciar precoce, teu desinteresse ao caminho que quer pra logo mais não querer. Não foste tu que se quis assim, meu filho.

Interrompe minha resposta antes mesmo que pudesse pensar em qualquer coisa. Deus tem essa mania terrível de responder as próprias perguntas, ainda que pareça ser só Ele capaz de satisfazer as próprias dúvidas. Entendo. 

 - Não, não entende e é por isso que és, assim como todos os outros, capaz de sentir apenas o não dito; traduzindo o desconhecido em medo por ser medo a única palavra dona de todas as faces sentidas aos teus olhos humanos que tanto são iguais em todos.

Cala agora ele, direciona o corpo de roupas elegantes à porta à direita e entra. Penso que tem Ele também suas manias, as afrontas que não permite de jeito maneira. Sei que há de voltar equilibrando sem dificuldade paradoxal a bandeja de prata de minha mãe, decorada das xícaras que foram da mãe de meu pai e que um dia se tornariam minhas e de meu irmão; ao centro o bule com café colombiano que tanto nunca tomei.

De fato. O vapor sai trêmulo em formato e ritmado às teclas que martelam essa música por tudo e inconsciente, som e silêncio numa existência inseparável que agora é clara de fazer sorrir. Pego a xícara oferecida e percebo que tudo sempre haveria de ser assim, ao passo que, agora sentado em sua cadeira, me responde com um sorriso recortado em xícara, cerâmica de encaixe perfeito à fenda que até em Deus se abre ao mostrar dentes amarelos de cigarros.

 - E as perguntas?

 - Já delas bem sabe.

 - Pois bem, e descansa a xícara às mãos em concha, movimentos rítmicos ao cruzar de pernas que demonstra orgulho pelo sapato lustrado. Pois bem. As mulheres têm graça em tudo, mas isso reluto em dizer que foi criação própria de suas maneiras. Não os fiz homens desgraçados, e dou aqui sentido apenas de ausência de encanto. Bem sabes que essa figura de elegância que assumo ao teu desejo é prova do homem ser tão ilustre por seus gestos duros. Voltemos às mulheres, e aponta ao bolso de minha camisa justo quando não sabia se formar cá dentro a sede de tabaco.

 - Obrigado. Posso ter a honra de lhe emprestar o fogo?

 - Não, e admito achar graça de querer fazer contrário tudo que sabe tão bem quanto eu. Voltemos às mulheres, e aproveito o exemplo do teu acender de cigarro: a forma com que dispõem dos dedos ao criar fogo. Com nós, e assumo o caráter masculino apenas ao teu desejo, o ato é ordinário ainda quando sentados por varandas, deitados pela grama ao sonhar que a fumaça que sai do peito participa de alguma forma às nuvens que não sabem parar. Tu bem sabes de como o rosto delas se ilumina, lembras de quando viu o corpo daquela que ainda lhe é incandescido em brasa pela penumbra do quarto. Essa graça não temos, meu filho. A bem da verdade é que você tinha razão ao dizer que percebia as cores conforme os diferentes graus de pequenez que galgava durante a vida; mas se nem em mim acreditava realmente, quem dirá em seus próprios pensamentos solitários.

Disse-me ainda dos esforços que fez. Admitiu por vezes nos esquecer à razões impossíveis para nossa compreensão, e por isso não nos pede perdão. Confessou uma ou outra guerra e a mutação de certos vírus resultantes de suas ausências, mas não demorou muito para perceber a perfeição de todo e qualquer gesto próprio, indignificando inclusive a piedade para conosco.

Fala com bondade, e não sei até que ponto o caráter dócil é atuado por vontade minha.

 - É frustrante, e agora quem levanta de cigarro aceso sou eu, pensar o quanto tudo é tão repleto de dúvida e incerteza, do próprio medo que ouso dizer não ter sentido algum em tuas paragens; tu que não temes, que tem claras todas as mistificações que compõem o duro e cético seguir nosso; tu que de tudo sabes e tudo participa e de fato é muito mais do que qualquer dimensão de totalidade; tu que és o infinito, e ao mesmo tempo longe de nosso sentir restrito e temerário.

Parece incomodado, e ao meu julgamento sorri de imediato.

 -  Não sei fingir espanto, e esqueço que você já se deu conta da maneira que as coisas funcionam por aqui. Mas de fato entendo sua frustração, e para ela nada digo. Viver a dura vida de incerteza na esperança que em minha face há de repousar quaisquer inquietações e turbulências na alma, e por fim me encontram conforme desejam que eu fosse, sabendo que a curva à esquerda tua é a porta ou o corredor ou o salto da montanha para todos os outros que te disse.

 - Devia ter nos avisado de alguma maneira que o fim não era você.

 - E por quais motivos acredita que isso nunca fiz? Lembra-te daqueles que escreviam as histórias daqui.
Lembro-me. Nas gravações em que aqueles aparecem psicografando segredos das dimensões que talvez se encontrem após a curva de logo mais, há sempre uma moça ou rapaz à função de virar páginas de caderno ou trocar folhas de papel para que continuassem o que tanto ouviam. Rimos um dia, eu e outros moços de mentes fantasiosas, na possibilidade da distração ou dos dedos secos que alisam sem nunca trazer o papel, fazendo assim com que algumas linhas sejam escritas no ar, segredos de máxima divindade em que o sussurro viesse talvez diretamente de Deus. Disso apenas ríamos.

 - A fantasia é a realidade desacreditada. Não apenas essas linhas escritas pelo ar, inexistentes ao vosso analfabetismo em caligrafias flutuantes e invisíveis, mas também os vultos reais que diluíam em jogos secretos entre olhos e escuridão, vozes caladas pela certeza do engano da mente cansada. Eu muito digo, meu filho. Talvez pelo longo tempo de solidão.

Pontua poucas coisas, e a totalidade destas é decorada pelo dedo em riste de sua mão direita. Gesticula com maestria, rasga qualquer que seja a vista de meus olhos num violino refém da intensidade do que quer provar. Fala do diabo, dos amores, das propriedades dos chás, de tudo aquilo que julguei ter levado na vida como dúvidas. Pouco falou de meu desfecho.

 - Isso não posso te responder. Àquilo que traz consigo como injusto ou ponderável de qualquer coisa que não aceitação, sinto, mas não cabe a mim. Foste a vida toda fantoche, para que agora tenhas em mim apenas a segurança que lhe falta para acreditar em tudo aquilo que nunca pode.

Como planejado. Ainda pergunto uma ou outra coisa sobre a feição de Santo Amaro, mas Ele pouco caso fez. Talvez as nomeações de santos pelo Vaticano não condigam com os bem quistos de Deus, e nessa desarmonia vejo graça.

 - Aquela ideia unir as pontas da rua daria jeito de fugir do irremediável?

 - Assim como uma vida saudável prolonga o sofrimento.

Levanto resignado, e agora como se desperto de um sonho. Aos ideais de mistificação do fim, a verdade se apresenta como crua e sem floreios aos nossos olhos. A bem da verdade é uma certa monotonia, uma ausência de surpresas que vem à tona por completo tão logo se dê conta do jogo. Sem despedidas o deixo da mesma maneira que o encontrei, e se essa pergunta tivesse de ser respondida por Deus, diria que me deixa da mesma maneira que tanto sempre nos deixou.

Um sujeito de bem.

Forço os olhos num temor desnecessário pela presença do carro, e ao alívio prazeroso caminho conferindo chaves, carteira e maço. Até aqui perco o isqueiro. Abro a porta e o molejo dos bancos range como chuva forte ao cheiro de gasolina doce que sempre tanto inundou meus pulmões. Paciência. O fusca pega fácil e por milagre ou desatenção minha, ainda tenho mais uma quadra antes da Carneiro Lobo. Não penso em muita coisa. Olho ao espelho esquerdo à força do hábito, e a seta ilumina a direção que não conheço. Foi tudo bem. A folga do volante persiste. Talvez arrumasse na outra semana, mas acontece. Venço a curva.

O semáforo poucos metros à frente alerta num amarelo sugestivo. Talvez pense, assim como eu, que faço a última curva desse estágio pós vida inominável sem a confissão de Deus. Tenho como trunfo a dependência dele às nossas fraquezas, e isso nada me adianta. É escuro, e sinto que me apertam algodões ao ouvido de maneira gradual. Não há mais tempo. Nunca houve. É tudo sonho, ou pelo menos soa como tal.

terça-feira, 20 de maio de 2014

andante

não acho justo o enquadramento. acordo por volta das oito horas da manhã de segunda à sexta, e não depois das dez preciso estar com o corpo preso à catraca da entrada do prédio. alto, espelhado, sede de inúmeras empresas que buscaram nessa opulência de metal e concreto a imagem real de seus objetivos abstratos e vazios. a intenção de todas elas é sempre a mesma. dia ou outro chego atrasado. o porteiro não sorri como de costume, os elevadores não respondem o clamado de meus dedos. num espaço de tempo onde aquele saguão é o universo por inteiro, olham-me todos como se aquela eternidade desgraçada fosse de minha responsabilidade, da minha barba por fazer, do cigarro que nubla o castanho de meus olhos num cheiro sem disfarce. sinto sermos personagens de uma peça ensaiada diariamente, de final conhecido por de trás da interpretação de cada um. o letreiro vermelho incandesce no imediato instante posterior à campainha anunciar o deslize cromado das portas. penso às vezes se o instante imediato não é sim o anterior, mas já trago a maleta apertada ao peito que sobe à vontade dos botões sempre tão bem apertados. som, deslize, e ao meu andar sapatos e seus saltos murmuram numa pressa disfarçada por corredores, na ansiedade que tilinta o pé escondida num rosto repleto de cores e esbranquiçado de expressões. deixo a mala por sobre a mesa e desço fumar.

assumo nossa pequenez, ainda mais quando cerro os olhos buscando lá no alto o contorno invisível do beiral transparente à claridade do céu, cúpula brilhante de um nublado escuro e reluzente. daqui da calçada sonho uma câmera imaginária que capta o exato momento em que entrego meus olhos ao topo do edifício, que num close rápido e inverso, sai da brasa imensa de meu cigarro até alguma altura suficiente à tornar o prédio pequeno e minha existência nula. penso nisso de mão direita no bolso, como que apoiado da velocidade das coisas que imagino e me deixam aqui e toda vez. a verdade talvez se resuma ao fato de todo ideal facultoso tornar-se medíocre quando visto por dentro, tal qual este prédio de vidraças espelhadas, relógio enorme capaz de ditar o passo daqueles que por ali passam esquecidos da vida. por dentro uma sucessão de andares sobrepostos, banheiros pontualmente distribuídos, pés direitos baixos à ponto de impedir que pensemos em qualquer coisa que não o preenchimento de planilhas. sinto falta de meu teclado, do jeito que me canta sublime as imundícies que lhe segredo todo dia em números confidenciais, balancetes de pesquisas encomendadas, infinitudes de dados que se colocados em papel ergueriam verdadeiros monumentos burocráticos. aos que descem fumar, a volta até o elevador contorna uma passagem de funcionários enquanto a catraca continua pronta, armada no ataque certeiro que nos arremessa sem pressa na aleatoriedade dos andares. penso se em algum dia já não desci antes da hora e sentei na mesa que parecia a minha por entre pessoas iguais a todas as outras. não sei e acho graça nosso dom de sermos tão próximos, comuns numa capacidade de substituir-nos de maneira idêntica.

aqui de dentro as coisas são claras e levemente azuladas aos dias de sol. bastões de luz florescentes escondem a cor branca do teto e daquilo que se julga parede: tudo é a tonalidade de um claro duro que participa todos os pigmentos em sua rigidez. pretas são as cadeiras, as capas das pastas e as molduras de nossos quadros eletrônicos. já passei noites nessa mesa sem que houvesse a menor mudança de tom ao azul das vidraças, que como dito, apenas nos dias de sol acusam uma cor levemente sagrada, celeste em nossas rotinas alvas que aqui perdem o caráter divino típico do branco imaginado do paraíso. de tal forma divido o dia pelos cafés, sede inconsciente que me chama três vezes a atenção antes do almoço e quatro no período da tarde. o relógio de meu pulso acaba apenas adereço que me torna igual aos outros e nada mais, cada um refém de sua maneira única de entender esse tempo comum e tão próprio de cada pessoa.

as regras de hierarquia são despercebidas. ainda que reuniões periódicas reforcem o ideal do trabalho conjunto, palestras baseadas principalmente em metáforas sobre a lida heroica das formigas, sinto o abismo de cada um como único e incomunicável. entendo por superior todo aquele que solicita ao tom grave e manso respostas que não posso dar. a arte com que admiram meu silêncio e agradecem o vazio de todo meu esforço talvez justifique seus cargos de sabedoria. somos singulares apenas aos tons da voz, unicamente quando nossos ouvidos podem ouvir aquilo que querem de maneira diferente. na maior parte das vezes é tudo baixo, como se houvessem turnos destinados ao arrumar da coluna, à pressa dos dedos no teclado que se manifesta em estalidos ritmados e sem muita razão; ruídos mansos e ordenados por regras inconscientes que limitam gestos, todos pacientes e ensaiados à meta desconhecida.

já é perto do último café do dia e a mesa à minha frente continua vazia. lembro dos sons e dos papéis coloridos do outro lado, o compensado branco que a todas as mesas separa dos olhos do um aquele outro sentado adiante, o longe pelo espaço de dois metros intransponível ao alvo que parece sem fim. no dia em que chegou perdi o horário do almoço. vários foram os olhares de reprovação, repreensões silenciosas de mãe pelas vezes em que levantei sem respeitar o equilíbrio de ruídos ao nosso corredor. lembro do cheiro, das vezes em que entregava a ponta dos dedos à divisória como se fosse possível trespassá-la. vi seu rosto uma única vez por sobre o pescoço, os dois primeiros botões da camisa sobrepostos escondendo poros sedentos da vida dali de fora. talvez estivessem ainda abertos do arrepio ao banho recém tomado, o carinho da toalha que tira apenas o excesso não tragado pelo corpo. vi seu rosto uma única vez e segui o compasso fino da ponta daqueles saltos até sua mesa. acompanhei seguro o despejar de chaves, dedos rápidos à ponta da coluna curvada digitando senhas, soltando do ombro a bolsa que tão bonito lhe deixava o braço. no outro dia não apareceu.

arrumo minhas poucas coisas numa carência por desordem, e envolto pelo silêncio dou a volta sem saber pra onde. a dificuldade daqui é ninguém possuir algum rosto que familiarize o caminho, feições como placas ou quadros que nos indiquem a certeza do lugar certo. sei apenas de minha mesa, minha unicamente pela tatuagem do café posto ao lado esquerdo. ao final do dia escondo a marca com pastas ou qualquer papel que pareça importante, qualquer coisa indigna de ser tocada por qualquer um; sejam quais forem as faxineiras que tanto tem acesso à tudo, que tanto apagam nossas marcas e esse outro pouco que resta de nós.

os olhos não aceitam de bom grado o dia já recolhido. como passarinhos de cozinha reféns do acender e apagar das luzes, minhas janelas piam e batem pálpebras por uma ou duas esquinas até que se amansam. o trânsito existe mas meu ônibus vai como aquário vazio numa sala repleta. sem apoiar a cabeça na janela penso qual a utilidade de um ônibus que nunca vai cheio. escolho os acentos duplos como se buscasse ver uma única vez algum rosto qualquer. certo dia sentou-me ao lado um homem já curado das feições joviais. pouco se mexeu e quando ameacei me levantar já existia rente à porta. desceu dois ou três passos à minha frente, e tão logo venci o degrau da calçada, ia ele manso envolvido pela fumaça de seu cigarro. parecia protegido.


até certo ponto parece justo o enquadramento. desaperto a gravata e ainda de sapatos dou os cotovelos ao beiral da sacada. moro no quinto andar e minhas luzes estão sempre apagadas como as dos outros andares. sinto que por essas noites sem lua os olhos de qualquer um viram estrelas, mas não. já parece tarde, um céu escuro como que se levemente azulado de dias de sol.

pega o táxi, meu irmão.

domingo, 11 de maio de 2014

canção na praia

nesses horários de fim de expediente anda tudo em estanque. confesso que ao semáforo dessa curta quadra a esquerda é opção, mas tão poucos são os carros que se entregam ao vértice sinistro, à obrigação de recalcular rotas pelos aparelhos que nos ditam a vida. parece ser o fluxo a intenção de tudo. vão as luzes estaticamente avermelhadas em pequenos movimentos que não mudam o panorama, onde estacadas brilham numa força uniforme, talvez o mesmo grito de ansiedade que implora ao inerte a esperança do movimento. desgraçadas são as ambulâncias, esse infinito escasso de cores que garganteiam passagem pelo travado, escoando-se por entre esquinas num falso intuito misericordioso que esconde a necessidade de ir sem pra onde.  talvez seja assim o ritmo: acostumar-se à lentidão num sonho de continuidade. é outono.

escangalho o cadeado e levo a bicicleta de banco dado em minha mão direita. ir pela contramão requer calçada, e nisso atravesso as poucas esquinas de outros tantos aglomerados de fachos rubros. a manhã que se maquia pra logo mais, diz a previsão, é daquelas de céu claro imundo das tintas de aquarela. penso em nossa longa travessa de centro levemente esgarçada dessas neblinas que só aparecem em manhãs escancaradas de alaranjado, eu saindo mais cedo por flagrar a preguiça das portas dormindo em suas trancas. é tudo silêncio e é macio por entre teclas de dedos mansos. se a sorte acomodar balancetes meteorológicos na intenção de iludir adivinhações nossas tidas sempre como ciência, hei de andar por contra o mau humor do sol ofuscando os olhos de quem quer que lhe encare a forma recém desperta, a intensidade do brilho que me tira traços do rosto daqueles que me cruzam, iguais assim, manequins sem sequer a expressão nula que todo manequim não tem por nada nunca poder que não seja ensaiar os sonhos que não somos.

imagino serem esses pensamentos próprios do outono. o verão que nos incandesce pelo inverno torna tudo tão sólido, a primavera colore e faz espirrar sonhos em pétalas que ao outono dançam-se em fantasias. já não faz muito e os pedais me levam sem pressa, ainda que esta seja refém da intensidade da busca. seja aqui talvez o motivo que delega pelo passo calmo uma áurea paradoxalmente turbulenta, riscada na pressa santa dos carros que aos semáforos esverdeados parecem tanto saber por onde chegar. pareço passageiro dessa minha extensão de muitos raios que giram e giram e mantém-se parados. desperto hora ou outra pelas ruas mais íngremes numa necessidade de esforço que torna o vagar lento, o encontro ocasional de olhares eterno em panoramas que por nada mudam nessa vagar de janela fechada. não há tempo às dúvidas, ao querer girar a trava da vidraça e perceber ventos de arrepio que devastam colunas tão logo o sol se torna um clarão esmagado. tão logo a subida acaba, adormeço pelos pedais que me sabem o caminho sem destino.

lembro de uma manhã em que passei pela nossa longa travessa de centro. talvez a claridade também encantasse o dormir das lojas, e disso não me lembro bem. naquilo que de memória assumo como realidade de outrora, chego à imagem de um rapaz autista sentado por um dos inúmeros bancos que inundam nossos caminhos. a cidade por vezes parece consciente do cansaço desse fluxo que nos falta, e arquiteta-se aos sonhos de outros de maneira piedosa àquilo que nos pesa. não importa. o rapaz se balançava o corpo numa precisão que toma minhas lembranças ao mesmo ritmo, o olhar vivo num vazio estático que ignora a revoada de pombas recém despertas. penso no carinho de Deus por elas ao dar-lhes gêneros definidos na própria nomenclatura, ao contrário dos sabiás e chupins e canários que não nos são como anjos de sons santos e sexos inexistentes. e rapaz seguia santo, completo em seus próprios pensamentos que nossa capacidade não distingue. nosso minuto de consciência como cotidiano que lhe congela feições, esquece o físico no brindar do entendimento de si para consigo.

admito o desconexo tendo como salvaguarda a possibilidade da cabeça ser geograficamente mapeada por caixas, e dentro dessa que reviro agora, encontro lembranças que algum diabo devem ter em comum. o rapaz se basta sabe-se lá aonde como tão bem se bastaria em qualquer outro lugar. talvez na praia haja mais sentido, haja sentir qualquer coisa pela areia que se faz uma num infinito de grãos unos. realmente não entendo as comparações. tenho leve ao peito as teclas espaçadas em sons que se confundem. seja quem sabe talvez o piano uma única tecla que se dispõe aleatoriamente pelas lacunas de nossas cabeças, cada qual à sua cadência própria, nosso jeito próprio de nos sermos nós. é a tecla grave que faz fundo ao delicado. sente o rodapé e que assim seja.

"song on the beach - arcade fire"