quarta-feira, 9 de abril de 2014

pulso

A gaveta de meu pai é mar onde não navego. Confia lembranças de meu avô, fotos onde eram pai e filho pescando pelos infinitos rios do Amazonas. Não reconheço as pessoas pelos papéis envelhecidos, e como se fizesse parte de algo que não lembro, tranco a gaveta ao criado e saio inundado desse cheiro do há muito não lembrado. O que mais me chama atenção é o relógio que um dia de meu avô tornou-se hoje de meu pai: deitado em um estojo preto e simples, o dourado oxidado de sua pulseira de metal envolve o corpo de vidro fosco e ponteiros há muito parados. Traz o mesmo cheiro das fotografias, o mesmo ritmo daquele passado.

Personifico meus ideais de tempo pelos relógios antigos que encontro aos pulsos descobertos. Não revirar memórias ou deixar de aceitar que os cigarros de meus dedos guardem o cheiro passado daquelas fotos e papéis e tempo é entender ainda verde a madeira de meu escalé, a necessidade pelos remos que tão longe me deixam de ser mestre de meu saveiro ou presente naquilo que faço sem estar. Talvez por isso não desvende tanto a porta de seu quarto, evite afagar o nariz com os dedos enfumaçados de minha mão direita enquanto caminho pelos mares de gente num rosto ensaiado que não diz muito à estas ondas; sem nunca entender do tempo e da pressa e das coisas que apenas os relógios no pulso trazem a homens e mulheres de coragem. Se por uma ventura me contraio num sorriso enrijecido, tenho nas bolsas de sob meus olhos esse tudo aquilo que não sei, um mar morto por onde navego sem saber usar os remos.

Por uma dessas últimas noites ganhei dois relógios. Disse-me quem me deu que seu pai já não os usava tanto e o cheiro antigo do couro das pulseiras saltou entre ponteiros minha lembrança despreocupada. Levei-os até Gilberto. Trabalha moldado em sua pequena loja de centro de cidade grande por entre uma infinidade de apetrechos destinados à vigilância desse livre correr do tempo. Sentenciou-me o preço antes do trabalho feito de sob meus olhos, as ferramentas calmas num manejo estanque e decidido por mãos levemente entregues ao balanço daqueles que já muito viveram. Gilberto e suas peças sobressalientes. Por entre colas e baterias maneja o corpo num cheiro de lugar pequeno com coisas demais. Agradeci levando ao pulso o tempo marcado por ele, cru agora na sua figura reclinada sob luzes aos olhos de sua estante decorada por sua esposa em retrato.

Antecipo certo anseio pelo por vir, e isso já diz. Carrego pela segunda os passos da semana sem que haja jeito de outro jeito ser, e assim espero pela confusão que mistura noites de domingo com o clarear que logo chega por ser regrado. Tudo sem muito por sobrar, e às vezes a gente parece se ver com pressa do outro lado da calçada num ritmo que não nos permite cumprimento, não nos deixa nos dizer que parece justo pelo tempo que faz; nesses nossos dias em que vamos em máscaras aos próprios olhos parados daquilo que não é, que não podemos. Pareço-me bem de lá, dourado no pulso e destinado pelos pés.

Pelo em diante as coisas soam ritmadas. Os segundos de Gilberto moldam meu tempo num cheiro de gaveta. Penso por meu pai e suas heranças chegam ritmadas num colorir de sorrisos amarelos ao saudoso de quem há muito foi. É o meu querer pelo regrado, o anseio por mudar numa constância de sempre.