A gaveta de meu pai é mar onde não navego. Confia lembranças
de meu avô, fotos onde eram pai e filho pescando pelos infinitos rios do
Amazonas. Não reconheço as pessoas pelos papéis envelhecidos, e como se fizesse
parte de algo que não lembro, tranco a gaveta ao criado e saio inundado desse
cheiro do há muito não lembrado. O que mais me chama atenção é o relógio que um
dia de meu avô tornou-se hoje de meu pai: deitado em um estojo preto e simples,
o dourado oxidado de sua pulseira de metal envolve o corpo de vidro fosco e
ponteiros há muito parados. Traz o mesmo cheiro das fotografias, o mesmo ritmo
daquele passado.
Personifico meus ideais de tempo pelos relógios antigos que
encontro aos pulsos descobertos. Não revirar memórias ou deixar de aceitar que
os cigarros de meus dedos guardem o cheiro passado daquelas fotos e papéis e
tempo é entender ainda verde a madeira de meu escalé, a necessidade pelos remos
que tão longe me deixam de ser mestre de meu saveiro ou presente naquilo que faço
sem estar. Talvez por isso não desvende tanto a porta de seu quarto, evite
afagar o nariz com os dedos enfumaçados de minha mão direita enquanto caminho pelos
mares de gente num rosto ensaiado que não diz muito à estas ondas; sem nunca
entender do tempo e da pressa e das coisas que apenas os relógios no pulso
trazem a homens e mulheres de coragem. Se por uma ventura me contraio num
sorriso enrijecido, tenho nas bolsas de sob meus olhos esse tudo aquilo que não
sei, um mar morto por onde navego sem saber usar os remos.
Por uma dessas últimas noites ganhei dois relógios. Disse-me
quem me deu que seu pai já não os usava tanto e o cheiro antigo do couro das
pulseiras saltou entre ponteiros minha lembrança despreocupada. Levei-os até
Gilberto. Trabalha moldado em sua pequena loja de centro de cidade grande por
entre uma infinidade de apetrechos destinados à vigilância desse livre correr
do tempo. Sentenciou-me o preço antes do trabalho feito de sob meus olhos, as
ferramentas calmas num manejo estanque e decidido por mãos levemente entregues
ao balanço daqueles que já muito viveram. Gilberto e suas peças
sobressalientes. Por entre colas e baterias maneja o corpo num cheiro de lugar
pequeno com coisas demais. Agradeci levando ao pulso o tempo marcado por ele,
cru agora na sua figura reclinada sob luzes aos olhos de sua estante decorada
por sua esposa em retrato.
Antecipo certo anseio pelo por vir, e isso já diz. Carrego
pela segunda os passos da semana sem que haja jeito de outro jeito ser, e assim
espero pela confusão que mistura noites de domingo com o clarear que logo chega
por ser regrado. Tudo sem muito por sobrar, e às vezes a gente parece se ver
com pressa do outro lado da calçada num ritmo que não nos permite cumprimento,
não nos deixa nos dizer que parece justo pelo tempo que faz; nesses nossos dias
em que vamos em máscaras aos próprios olhos parados daquilo que não é, que não
podemos. Pareço-me bem de lá, dourado no pulso e destinado pelos pés.
Pelo em diante as coisas soam ritmadas. Os segundos de
Gilberto moldam meu tempo num cheiro de gaveta. Penso por meu pai e suas heranças chegam ritmadas num colorir de sorrisos amarelos ao saudoso de quem há
muito foi. É o meu querer pelo regrado, o anseio por mudar numa constância de
sempre.