E naquele dia ele acordou antes mesmo de dormir, com a cara marcada de almofadas e com os olhos pesados do sono mais forte que se pode imaginar. Mas mesmo assim levantou, tinha que levantar e fazer o dia ser apenas deles dois.
Fez a barba do seu rosto liso sem se olhar no espelho, tomou banho sem parar de encarar as flores do azulejo, e secou-se com braços que não eram parte de si. Os ouvidos que sentiam os pés descalços no chão não eram dele, e apenas deixou que aquelas pernas estranhas entrassem nas calças, e que os pés dormentes se acomodassem dentro do tênis verde escuro. Só fez questão de ser ele quando se viu parado diante de um espelho com escovas, perfumes e fotografias manchadas. Mais que pegar o perfume que não usava, pegou o perfume que não conhecia o cheiro; hoje queria andar de um jeito diferente, baixar os olhos de um jeito diferente, e ser respirado como se fosse uma novidade pelos outros narizes. Depois disso colocou a carteira no bolso de trás da calça apertada, encheu o peito para sentir os cigarros no bolso da camisa, e ainda encarou-lhe alguns instantes antes de tomá-la pela mão esquerda e fechar a porta com um gesto lento.
Demorou algum tempo pra perceber como doía o jeito que ela lhe apertava a mão. Talvez porque no caminho até o museu ele quis de novo se desfazer de partes do seu corpo, e apenas olhar aqueles braços que sustentavam tantos olhares estáticos dentro de um ônibus; olhares estes que seus próprios olhos encaravam de forma quieta e desinteressada; um por um, uma única vez. Tomou as rédeas das suas atitudes, e mesmo tendo acabado de trocá-la de mão, já sentia que ela apertava cada vez mais forte; foi quando se convenceu que ela queria apenas chamar atenção.
Desceu um ponto antes, olhou o motorista nos olhos pelo espelho trêmulo, e não sentiu vontade de cumprimentá-lo. No caminho até o museu perguntou a ela porque as pessoas fazem cara feia para engolir o café, dizem que está horroroso, mas logo em seguida dão outro longo trago. Ela não respondeu, e na verdade ele não se importava em saber o que ela pensava. A funcionária não deixou que entrassem de mãos dadas, então se deram os olhos e esperaram a mulher de terno azul validar aquela única entrada. Não agradeceu, muito menos olhou o rosto daquela mulher que mais parecia aeromoça, e veio como um frio tê-la de novo nas mãos.
Fones nos ouvidos, e carnaval.
À medida que ia se perdendo entre rabiscos de pincéis ou formas – para ele incertas – em enormes molduras, cantarolava. Parava na frente de males causados pelo amor, e a apertava tão forte que a sentia entrando na sua palma, como se ela quisesse, a partir dali, ser alvo de todos os seus aplausos. Parava algumas vezes nos salões vazios, olhava para os lados, e sorria ao pensar em como estariam se beijando, e o que responderiam pro segurança mal amado quando o ouvissem afirmando que aquilo não era a casa da mãe joana. Aí ele saía de uma exposição e corria, corria para alcançar aquele sorriso vestido de cinza com os cabelos molhados que iam deixando um rastro de cheiro inocente. Creio que foi indo assim, até as músicas acabarem e ele achar a saída.
Depois fez hora, queria que a chuva passasse pra sentar com ela em algum banco e fumar um cigarro ou dois. Mas a chuva não passou, e o que lhe sobrou foi a ironia do acaso em forma de escada. Contou o número de degraus e sentou bem na metade pra tentar ser justo. Acendeu o primeiro, e olhar aquela garoa dançando na sua frente o fez lembrar-se dela só quando acendia o segundo. Ela não estava ali, ela nunca esteve ali, e lhe irritava no fundo da alma ter acordado achando que um rabicó de cabelo poderia ser alguma coisa, poderia ser alguém; que o cigarro que ele acendia para ela e deixava queimar na escada faria as coisas dançarem em outro ritmo, em outra música.
E daí pra frente eu já não sei. Se pudesse, apostaria minhas fichas na possibilidade de encontrá-lo sentado de pernas cruzadas em uma praça, mas nunca se sabe. O que sei é que ele não foi atrás dela, e nem sequer ligou. Das coisas nunca se sabe, mas ele é previsível demais pra fazer qualquer coisa assim. No máximo, pegou no telefone e discou o número dela para desligar ao ouvir aquela voz doce; no máximo, pegou um ônibus e foi para casa dormir o que a noite passada não lhe havia permitido.
‘’Não solta da minha mão,
não solta da minha mão.’’
De Onde Vem A Calma - Los Hermanos