sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Sintomas

Não sabe o que é isso que chega de madrugada. Fazia tempo que não vinha, e já achava que tinha ido embora de uma vez por todas; estava tão seguro de si que nem mesmo ligava a televisão, apenas deitava de peito nu e costas descobertas na cama que, depois dela, ficou sendo só metade. De qualquer forma, este bom filho a casa voltou, e o braço esquerdo dormente com um peito indeciso é outra vez o sinal de chegada e saudade.

É como se de repente o seu braço ficasse gelado e doesse de um lado avesso sem contrário, e acha mesmo que esta dor possa ser o preço implícito do desatar de nós que seus dedos recebem de repente. Ele não tem o direito de reclamar, e não reclama; se quiser pode até sorrir ou fazer cena, mas de um jeito diferente daqueles outros em que fez a mesma coisa, apenas cala. Só sei que sabe que assim calado como a música, arrepia; e arrepia sem ousar piar como os pássaros as escolhas que já estavam feitas e as dúvidas que agora dormiram. Na verdade prefere nem falar das dúvidas pra que o sono baixo não se desmanche, e para assim ir percebendo que não falar mais pra outros olhos fará tudo adormecer sem dor maior.

Fica com sede e tem vontade de ter sono, e se sente tão desperto que a idéia de ver a noite clarear é quase que certeza. Quer falar daqueles olhos que sorriam, mas o braço esquerdo começa realmente a incomodar. Parou de fumar, então se dá conta que, além de tudo, a fumaça gastava seu tempo de um jeito mais digno e prazeroso. Pensa que o que fica das coisas que deixou é mesmo o confronto entre teclas e dedos, e acha engraçado ver essa briga quase que silenciosa gerar tantas linhas lentas e honestas.

Ainda tem certeza que aqueles outros olhos não acertaram na previsão, mas sabe que eles o entendem mais uma vez.

O que lhe sobra disso tudo? Nada. Tudo se bastou para ele, e pensar assim é prova da existência daquele seu egoísmo, que mesmo disfarçado de carne e osso, é feito de atitudes concretas. O diferente é que com ela não há dúvidas, e todo aquele pouco que insiste em não ser certo corre quando ele encara os olhos que transbordam nos dele. Se ela soubesse que às vezes em que ele a chama de linda são verdadeiras, ficaria tão surpresa quanto ele ao se sentir perdido em mais um labirinto daquele rosto de anjo. Você o basta Pequena, e ser pessoal dessa forma em seu projeto que não deveria ter nome nem jeito, só não é mais certo que a vontade de ter-te com a cabeça deitada em seu peito por mais muito tempo.

E assim, ele sorri no quarto cheio de noite clara. O braço ainda incomoda, mas o peito já quase se acalma. Só lhe chateia a idéia de dormir menos e não poder vê-la por tanto tempo correndo em seus sonhos. Queria mesmo um dia poder lembrar-se de cada passo, de cada som de risada que ela deixa enquanto se esconde onde o impossível é a atração menos visitada. E de novo, assim ter certeza que acordou sorrindo não pelo o que são, mas sim pelo o que foram enquanto os olhos apenas fingiam dormir.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Mon Amour

E eu espero realmente que você leia isso bem no começo do seu estágio, ouvindo a música do rodapé, enquanto espera a chata que fala baixo chegar e pedir a confirmação das fotos que nem sequer havia pedido. Quero que ria alto e tampe a boca com a mão direita, e tire os olhos do computador só pra ter certeza de que não tem ninguém na redação sentindo vergonha alheia da sua risadinha escandalosa. Quero que você leia o fim antes do começo, que seu sorriso não caiba mais em você, e que quando ficar quieta, tudo que queira seja me beijar. Meu Deus, como eu quero que isso aconteça...

Eu quero que a idéia de me ver sentado na escada do ponto de ônibus ou na arquibancada da faculdade faça seu tempo simplesmente engatinhar; quero que você não se agüente de vontade de me ver, de apertar seu passo curto e deixar que eu te beije sorrindo sem saber o que fazer com as mãos. Depois vai me abraçar, dizer que não acredita que eu fiz tudo isso, e vai piscar e se ver lendo pela segunda vez seu próprio nome em quatro parágrafos. Nessa hora eu acho que suas pernas não estarão tremendo, e pensar no seu ‘’não acredito!’’ de língua presa me arrepia.

Sei que cedo ou tarde os relógios marcarão seis da tarde, e você vai se despedir meio com pressa, meio com educação. Eu não sei onde vou estar e nem sei quais serão seus planos, mas sei que será certo como a sua foto no dia frio, onde seu sorriso ainda me faz sorrir, e o reflexo de seus olhos ainda me faz ficar curioso. E assim vou dizer-lhe que quero deixar todos estes dias ruins pra trás, e que não vale a pena ficar procurando resposta se a verdade que quero surge quando te faço rir; surge quando te beijo e agente se olha sério; quando você é você mesma. Por fim, te dizer que ‘’nós’’ é mais certo que qualquer dúvida que nossas cabeças façam, e que não, o gordinho azul não sente inveja, mas sim orgulho de nós dois.

De mim? De mim eu não sei. Não vou entrar na internet pra te deixar com vontade de falar comigo, e te obrigar a mandar uma mensagem pra me confirmar onde é que tudo isso vai acontecer. Acho que serei só a vontade de te ver vindo com os passos apertados, te segurar pela cintura, e de nariz colado dizer: ‘’você me basta, pequena!’’

‘’Look at the stars,

look how they shine for you

and all the things that you do.’’

Yellow - Coldplay

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Inédito

Na verdade pensava isso em todas as metades de dia em que acordava. Fazia questão de sentir o gosto de desapego que as poucas horas de sono cultivavam em sua boca. Achava engraçado o cheiro ruim de sua roupa de cama lhe dar o prazer de fundas tragadas, e só levantava depois que todo resquício de sonho havia ido embora.

Enquanto tropeçava em direção ao banheiro, ia escolhendo suas reclamações do dia e certificando-se de hoje investir sua raiva em algo real, e não num pesadelo qualquer que se manteve esquecido. Antes de olhar-se no espelho, apoiava os braços na pia manchada e forçava-os para fazer o primeiro e último reflexo retrato falso de si. Enquanto brincava de limpar suas manchas na privada, pensava consigo que tamanho não importava e que ‘’ela’’ seria relevante com todos seus fantasmas, por menores que estes fossem.

Ele era assim. Pegava a xícara, e com uma mão na porta do armário e outra na porcelana de grãos, lembrava que ninguém tinha feito café, que ninguém acordara mais cedo pra deixar as coisas em ordem. E depois só restava guardar aquela caneca inédita há quase dois anos que devia ter um raro poder de tornar mágicos os cafés normais. Nunca tinha louça pra lavar, e tinha uma inocente curiosidade de ouvir o som da água batendo na pia. Mas a rotina sempre lhe puxava, e aos tropeços voltava ao banheiro pensando se a água respingaria na sua barriga, ou morreria dançando em círculos no ralo mais infeliz do seu prédio.

Da mesma forma que entrava no banheiro saía; ele não se dá conta, mas todo dia faz a mesma coisa e nem se pergunta, e nem sequer pensa nisso. Camundongo miserável! E volta pra sua cama, agora mais acordado do que nunca, agora sentindo os cabelos na nuca mais do que nunca. Revira a cômoda do lado esquerdo, e procura o que já sabe estar entre os lençóis emaranhados. Fica irritado por não achar, senta na cama e abre a gaveta pra procurar melhor o que já sabe estar entre os travesseiros amontoados; depois respira fundo, solta o ar olhando para os pés de veias saltadas, e se apóia nos travesseiros com a angústia de não ter nada pra procurar em parte alguma. Depois, com a certeza de continuar sem saber o som da campainha de seu telefone, enfia a mão no reboliço de tecidos e pega aquela foto velha e manchada. Ainda alisa o sorriso sem saber ao certo o que é o que, e só para quando sente uma espécie de saudade com gosto de tristeza escorrendo entre seus dedos, molhando suas pernas, desfazendo o sorriso cada vez mais, e manchando as velhas manchas de seus lençóis amarelos.

Depois não sorri mais durante o dia. Toma banho, e faz tudo com tanto arrependimento que por vezes deixa até de fazer. Liga o computador e fica procurando pessoas como quem anda numa calçada movimentada. Então se arruma, até demais pra alguém que não tem problemas de encontrar conhecidos na rua, e fica andando em calçadas movimentadas como quem tem vontade de desligar logo o computador e ir pra cama. Quando sentava na praça como quem estagna na foto de alguém que parece ser legal, perdia a vontade de fumar assim que a ponta do cigarro ficava vermelha; depois era por pura obrigação, como tudo na sua vida era só pra fazer valer o destino de um filtro.

Chegava na porta do prédio, e era quase fim de vida na cidade. A sua casa continuava igual, mas olhava tudo com calma na esperança de achar a pia meio molhada e algum livro fora do lugar. Não queria ficar sozinho, mas sabia mais do que ninguém que a companhia de qualquer pessoa seria a pior coisa do mundo. Tirava a roupa, e nu encarava a própria sombra no chão, talhada pela luz do poste na janela. E nessa hora, mais do que ninguém no bairro todo, sentia frio; ia como um doente nos corredores do hospital até a sua cama, e jogava aquele monte de tecido gelado sobre o corpo. Demorava alguns minutos pra se sentir seguro o suficiente e poder sonhar, e de olhos abertos não se dava conta que tudo tinha se repetido pela primeira vez.


‘’And so it’s

Just like you Said it would be.

Life goes easy on me,

Most of the time.’’

The Blower’s Daughter – Damien Rice

domingo, 10 de janeiro de 2010

Obra

E naquele dia ele acordou antes mesmo de dormir, com a cara marcada de almofadas e com os olhos pesados do sono mais forte que se pode imaginar. Mas mesmo assim levantou, tinha que levantar e fazer o dia ser apenas deles dois.

Fez a barba do seu rosto liso sem se olhar no espelho, tomou banho sem parar de encarar as flores do azulejo, e secou-se com braços que não eram parte de si. Os ouvidos que sentiam os pés descalços no chão não eram dele, e apenas deixou que aquelas pernas estranhas entrassem nas calças, e que os pés dormentes se acomodassem dentro do tênis verde escuro. Só fez questão de ser ele quando se viu parado diante de um espelho com escovas, perfumes e fotografias manchadas. Mais que pegar o perfume que não usava, pegou o perfume que não conhecia o cheiro; hoje queria andar de um jeito diferente, baixar os olhos de um jeito diferente, e ser respirado como se fosse uma novidade pelos outros narizes. Depois disso colocou a carteira no bolso de trás da calça apertada, encheu o peito para sentir os cigarros no bolso da camisa, e ainda encarou-lhe alguns instantes antes de tomá-la pela mão esquerda e fechar a porta com um gesto lento.

Demorou algum tempo pra perceber como doía o jeito que ela lhe apertava a mão. Talvez porque no caminho até o museu ele quis de novo se desfazer de partes do seu corpo, e apenas olhar aqueles braços que sustentavam tantos olhares estáticos dentro de um ônibus; olhares estes que seus próprios olhos encaravam de forma quieta e desinteressada; um por um, uma única vez. Tomou as rédeas das suas atitudes, e mesmo tendo acabado de trocá-la de mão, já sentia que ela apertava cada vez mais forte; foi quando se convenceu que ela queria apenas chamar atenção.

Desceu um ponto antes, olhou o motorista nos olhos pelo espelho trêmulo, e não sentiu vontade de cumprimentá-lo. No caminho até o museu perguntou a ela porque as pessoas fazem cara feia para engolir o café, dizem que está horroroso, mas logo em seguida dão outro longo trago. Ela não respondeu, e na verdade ele não se importava em saber o que ela pensava. A funcionária não deixou que entrassem de mãos dadas, então se deram os olhos e esperaram a mulher de terno azul validar aquela única entrada. Não agradeceu, muito menos olhou o rosto daquela mulher que mais parecia aeromoça, e veio como um frio tê-la de novo nas mãos.

Fones nos ouvidos, e carnaval.

À medida que ia se perdendo entre rabiscos de pincéis ou formas – para ele incertas – em enormes molduras, cantarolava. Parava na frente de males causados pelo amor, e a apertava tão forte que a sentia entrando na sua palma, como se ela quisesse, a partir dali, ser alvo de todos os seus aplausos. Parava algumas vezes nos salões vazios, olhava para os lados, e sorria ao pensar em como estariam se beijando, e o que responderiam pro segurança mal amado quando o ouvissem afirmando que aquilo não era a casa da mãe joana. Aí ele saía de uma exposição e corria, corria para alcançar aquele sorriso vestido de cinza com os cabelos molhados que iam deixando um rastro de cheiro inocente. Creio que foi indo assim, até as músicas acabarem e ele achar a saída.

Depois fez hora, queria que a chuva passasse pra sentar com ela em algum banco e fumar um cigarro ou dois. Mas a chuva não passou, e o que lhe sobrou foi a ironia do acaso em forma de escada. Contou o número de degraus e sentou bem na metade pra tentar ser justo. Acendeu o primeiro, e olhar aquela garoa dançando na sua frente o fez lembrar-se dela só quando acendia o segundo. Ela não estava ali, ela nunca esteve ali, e lhe irritava no fundo da alma ter acordado achando que um rabicó de cabelo poderia ser alguma coisa, poderia ser alguém; que o cigarro que ele acendia para ela e deixava queimar na escada faria as coisas dançarem em outro ritmo, em outra música.

E daí pra frente eu já não sei. Se pudesse, apostaria minhas fichas na possibilidade de encontrá-lo sentado de pernas cruzadas em uma praça, mas nunca se sabe. O que sei é que ele não foi atrás dela, e nem sequer ligou. Das coisas nunca se sabe, mas ele é previsível demais pra fazer qualquer coisa assim. No máximo, pegou no telefone e discou o número dela para desligar ao ouvir aquela voz doce; no máximo, pegou um ônibus e foi para casa dormir o que a noite passada não lhe havia permitido.


‘’Não solta da minha mão,

não solta da minha mão.’’

De Onde Vem A Calma - Los Hermanos

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Um ano, cara!

E ele ligaria pra ela, como quem não quer nada. Iria perguntar como as coisas estão indo, disfarçaria muito bem antes de chegar onde há tempos não se encontram. Nisso eu estaria em casa, ouvindo o que ela já conhecia de outras bandas, de outros fantasmas. Ele romperia a risada estranha que ela tem, respiraria fundo pra fazê-la entender o que já sabiam desde antes mesmo o telefone ter tocado; acho que ela se afundaria mais naquele mundo de almofadas, de relance pensaria em mim, e suspirando responderia o que eles já sabiam antes mesmo de pegarem no telefone. Eu? Estaria como que calmo, alguém que vai de cidadão em cidadão na própria casa.

Creio que não se veriam, mas ele aproveitaria o silêncio pra imaginar um possível reencontro; ela já estaria de olhos fechados, sem sono. Sei lá como seria! Não tenho a mínima idéia da cara do sujeito; não tenho a mínima idéia da cara que ela faz quando sua metade é ele; como ri quando ouve as piadas de alguém que nem sei se é engraçado; como beija quando beija alguém que não sei se ainda existe. É assim na verdade.

Depois não me parece algo fadado. Sei que ele não desligaria, mas a atitude dela me parece tão incerta como a incerteza do cheiro do novo sabonete na pele, ou de como fica o perfume de sair na nova camisa de gola. Acho que levaria em conta a possibilidade de outro alguém ligar, aí faria voz de quem tem compromisso, e ele inventaria voz de quem por pouco não perde a hora pra fazer nada. Um ‘’até mais’’ meio seco e meio molhado, e acho que só. Registro no celular como beijo de despedida, e acho que só.

Dali a pouco ela chega à tristeza. A novela fica sem cor e de novo lhe sobra a cama, mas dessa vez sem ninguém. Eu? Eu parado, eu longe de muita coisa, longe do perigo maior; eu do outro lado esperando a minha hora pra ligar.


‘’E no final assim calado, eu sei

que vou ser coroado rei de mim. ’’

De Onde Vem A Calma – Los Hermanos