tinha pessoas de todo o jeito por lá e eu gostava de todos, e acho muito difícil que alguém não fosse com minha cara; indiferente pode ter havido um ou outro, mas no mais aposto que gostavam de mim. pra falar a verdade, tinha um senhor muito sisudo - se não me engano era mecânico como meu pai - que eu não gostava muito. ele nunca sentava; ficava vezes na ponta esquerda e vezes no meio do balcão, mas sempre com uma perna apoiando o corpo enquanto a outra esperava a irmã cansar. não que só ele fumasse, mas se havia cheiro de cigarro naquele bar, boa parte era culpa dele. talvez eu só tenha reparado nele pelo jeito engraçado que fumava, já que antes tomava um trago de alguma coisa escura num copo de cachaça, fazia careta e começava uma frase cerrando os olhos e olhando pros quadros de futebol que ficavam na parede em frente ao balcão; finalmente levava o cigarro entre o indicador e o médio direito à boca, puxava forte inclinando a cabeça pra trás e tragava com o prazer de ver sua paixão tirar a roupa depois de 10 anos longe de casa. enquanto segurava a fumaça, mexia o pescoço de um jeito engraçado, acho que um tique nervoso. nunca ri, mas sempre que me pegava olhando sabia que, antes da próxima tragada, ia usar sua frase pra me chamar de pivete ou enxerido.
hoje, com um pouco mais de maldade - digo, experiência - , penso ter sido mimado por tantos senhores naquele bar por ser uma espécie de ''segunda chance de fazer certo à qualquer criança o que tão grave erraram com seus filhos.'' ganhei vários sorvetes depois de dizer que era atleticano e ter balançado os pés sem jeito olhando pro chão (sempre funcionava!); e algumas cocas de outros que, na época, pareciam pra mim só querer alguém tentando achar palavras entre um bafo de todas as bebidas e um sentimento entre várias caras feias. admito que nunca consegui, mas se nunca deixei de ganhar a coca, ao menos fui convincente.
o mesmo Ivo que quebrava gelos e ria de ver como eu fugia dos pedacinhos, foi um dos melhores amigos que tive até hoje. não só porque me ensinou a cobrar por metro e não por dose, ou por várias vezes ter pedido pra eu colocar 3 copinhos de amendoim no pacote ao invés dos 2 anotados, mas porque realmente me ouvia e realmente me fazia querer saber mais que tudo o que iria falar. eu não entendia muito bem porque não morava mais com a mulher, mas gostava de ver como sorria quando falava: ''meu piá deve ser da sua idade, uns 2 ou 3 anos mais velho, mas da sua idade sabe? comprei um computador pra ele esses tempos e o fia da puta só sabe jogar agora... semana que vem aí e vocês jogam uma sinuquinha.'' ele me deve ter dito essa frase mais de 10 vezes, mas poucas foram as que realmente vi seu ''piá''; ele realmente era uns 2 ou 3 anos mais velho e não saía do computador. eu ficava irritado quando ficávamos até mais tarde no bar só pra deixar o Ivo em casa, queria ir embora. muitos foram os dias em que eu quis ir pra casa mais cedo, e é certo dizer que quanto mais velho ficava, mais comuns eram estes dias. se não disse, o Ivo ao menos pensou em me dizer pra sempre ser humilde na vida. se eu não sou, ao menos lembro que ele um dia pode ter me falado.
sinto sua falta Ivo.
pra quem já leu alguma história sobre Rollmops, vá pro próximo parágrafo que não vai perder muita coisa.
aquela coisa que fica em um vidro escuro, e que parece um arame preso por um palito ao redor de um olho, na verdade é uma cebola enrolada por uma tira de sardinha (ao menos parece). leitor Rollmops, Rollmops leitor. um dia, perguntei pela décima vez ao meu pai o que era, e sempre de bom humor me respondeu que se eu quisesse saber, precisaria pedir um. pela décima vez ri e fiz cara de bunda, mas quando virei pro Ivo, pela primeira vez vi ele pegar aquela pote escuro, tirar uma coisa que mais parecia escorrer do que pingar, e colocar em um prato na minha frente. todo mundo em volta riu, até meu pai, e fiquei meio envergonhado. mesmo assim resolvi encarar, e depois de tirar o palito e deixar o pedaço de peixe estirado no prato, comi aquela cebola roxa pedaço por pedaço (quero dizer gole de coca por gole de coca) querendo mostrar pra todo mundo que gostava de cebola e chorava apenas por prazer. quando acabei e me virei orgulhoso todo mundo conversava, e meu pai fez um ''aham'' enquanto discutia algo com alguém. mastigando ao meu ouvido, o seu Valdir diz: ''sou mais velho então eu posso, né?''. devo ter arrotado cebola uma semana pra ver um velho comer a sardinha do meu Rollmops? admito, novamente, que na hora não me pareceu muito justo. até pensei em pedir outro, mas as pessoas começavam a se afastar de mim. nunca mais comi Rollmops.
seu Valdir era um senhor que morava bem perto do bar e fumava um cigarro comprido de embalagem azul. ele sempre me pedia para ir até o balcão comprar, porque estava ocupado demais sentado na porta do bar com um copo de caipirinha e a barriga esticada sobre o saco. sinto falta do seu Valdir, acho que foi como um vô pra mim. sinto mesmo falta do seu Valdir.
eu cresci nesse bar e me orgulho muito disso, porque lá vi que existem pessoas muito boas (com exceção dos dias de domingos. aquele bar ficava entupido e sempre haviam mais crianças pra me tirar de cima da geladeira e escolher algum sorvete que, por direito, deveria ser meu. além de uma senhora com a cara meio puxada que ficava pedindo dinheiro pra comprar um frango com farofa. não entendia porque todos pagavam mas só ela comia...); e me orgulho disso porque conheci meu pai lá dentro de uma forma que nunca teria conhecido: vi ele ser legal me explicando tudo que perguntava mais de uma vez, vi ele aumentar histórias e inventar diálogos quando bebia um pouco a mais, vi ele ser sincero e quase chorar quando disse pra alguém que entre mim e meu irmão eu fui o que tive menos por acasos da vida. vi meu pai sendo mais pai do os outros pais que nem os filhos levavam ao bar.
a pouco tempo atrás saí com meu pai pra jantar com alguns amigos do antigo bar; todo mundo envelheceu, eu envelheci. não sei se teria coragem de ir outra vez no bar que fica em frente a praça e ver que as cadeiras ainda tem acento verde e ficam embaixo do balcão, mas meus pés agora ficam apoiados no chão e não suspensos no ar; saber que boa parte das pessoas que iam por lá ou já morreram ou se mudaram pra algum lugar perto do céu; ter que fazer novos amigos, e enquanto não me acostumar, ficar lembrando de como era bom quando o Ivo ria descaradamente de alguma coisa que eu falava.
é difícil aceitar que as coisas mudam e que alguns vão embora. queria mesmo um dia poder sair com meu pai e com o filho dele de alguns anos atrás, ver como era andar de mãos dadas e sorrindo pra tudo quando fosse bobeira. muitos dizem que se precisa de pouco pra ser feliz, mas eu preciso de mais. eu preciso voltar oito anos, andar cinco minutos de carro, comprar duas cervejas e duas cocas; paro no tempo, puxo uma cadeira na porta daquele bar e fico ali, olhando pro meu pai com sua cara de despreocupado, e pra mim querendo saber o que vou ser quando crescer.
Parabéns Pai.