para D.R., que de bailaora que é me faz dançar os sonhos.
Tuca, Sandra e Barnabé,
tios e pais.
Pablo, primos e todas as crianças que naqueles dias foram
amadas. Inclusive eu.
a casa de tia Tuca ficava num longe pra lá dele mesmo. era
só amor, e talvez disso tanto não perceba sinônimos ao meu redor. pegávamos
dois ônibus e eu já pequeno sentia na espera da condução o ritmo lento de
Cachoeiro, a calmaria dessabida que a gente de cidade grande não sabe saber. naquele
tempo ainda não dava às mangueiras o carinho do Braga do Teatro Municipal, a
mania de pintar histórias das tintas transmutadas de saudades. descíamos eu e
meus primos e tia Binha pela Avenida Beira Rio. as pessoas de lá vestidas
sempre de sol na pele morena, o Itapemirim brincando nas pedras sem que o
murmúrio do jogo fluído fosse diferente desse pensar em silêncio de cada um que
ali espera a vida. se bem me lembro as pessoas do centro de Cachoeiro tem olhos
de céu e cor de Itapemirim, e isso a gente que é gente de cidade grande não
pode poder.
chegava esgarçado ao pé do morro: tia Binha me estancava no
pulso o sangue do braço pelas recomendações de mamãe que bem sabia minhas
maldades. dureza em carinho numa responsabilidade de irmã mais nova aos
conselhos de minha mãe que à tia era irmã e tempo. estranhava subir no
Flecha Branca pela porta de trás, as distâncias curtas cortadas pela aparente
única rua daquela cidade em vale. eram ladeiras onde a chuva dançava em
vertiginoso escorrer, montanhas cravadas de casas e de mármores assaltados que
por lá nascem até das flores. a subida era alegria: corríamos eu e Pablo pelas
escadas de curtos degraus na certeza de que o primeiro a chegar teria o carinho
de Deus, a sorte das carambolas mais doces no pé da casa de nossa Vó. tia Binha
nos seguia na cadência dos fumantes, hora ou outra um grito enfumaçado pra que
cuidássemos com os carros desembestados que despencavam num consciente ir sem
freio. Pablo já naquele tempo trazia em si um gosto de desconforto, um bem
estar presente apenas nas mudanças que promovia todo o tempo. comia leite
condensado, andava pelo BNH e sabia o número de todas as ruas, os pés de frutas
desprotegidos de cachorros bravos que em Cachoeiro tanto latem. lá se fala alto
num canto meio baixo, e talvez essas coisas sejam doença de calor. Pablo. não
sabia poder sentir o tamanho das coisas, e quando saíamos de carro com meu pai
e meu irmão, acompanhava o asfalto das estradas estreitas na certeza do seu
lugar ser em toda parte.
chegávamos. montes de areia e tijolos indicavam sempre um
cômodo por aumentar, um vergalhão exposto por vestir de cimento e pra sempre. a
casa de tia Tuca era a casa mais populosa do meu censo moleque, e muito me
espantava a quantidade de comida que todo almoço e janta demandava. às dez
horas da manhã, com o olhos ainda empedrados de sonhos remelosos, tomava
chocolate e via desenho numa casa já temperada de alho, de fios de óleo e
catares de feijão rajado. tio Altar, irmão de minha mãe e companheiro da dona
da casa, comia sempre numa panela que talvez servisse todas as crianças que por
lá eram tantas. era padeiro e amor, e acordava cedo pra voltar no meio da tarde
com tatus ou tartarugas feitas de broas de milho. em cortes de precisão
cirúrgica desmembrávamos os animais, eu e Pablo, saboreando patas e olhos de
grãos num gosto de aventura. tio Altar era forte e falava rápido. comia
melancia com semente e escandalizava minha fé de acreditar nas árvores que
nascem nas barrigas desses gulosos. tinha os olhos floridos e um coração
desmedido. tia Tuca e ele traziam pra dentro de casa e do peito quem quer
fosse, quem quer que quisesse ou mesmo não carinho, teto e confidência.
nos seus vozerios a casa ganhava vida. entravam meninos descalços
e meninas sem camisa, um frescor infante que blindava aquelas peles de leite do
sol forte de todo dia. os tijolos da casa eram morenos, os rejuntes rangiam de
insolação. tia Binha sentava numa cadeira à beira da porta, e numa maestria
sabida só por ela, domava a fumaça dos seus cigarros que dançavam apenas da
porta pra fora. ela sempre cheirou doce, e nada no mundo é maior que seu abraço
amolecido de manha. não lembro o que tia Tuca gostava de fazer. muito
entrançava meus cabelos, contava histórias da adolescência de minha mãe que
reforçava o carinho mútuo entre elas. ô, tia Tuca; meu peito pequeno que não
conseguia guardar saudade hoje fica muxoxo de lembrar.
poucas vezes meus pais ficavam por lá. maior liberdade não
sabia saber, e o alto daquele morro mostrava os desenhos de Castelo e o cheiro
doce do mar de Piúma. o pico do Itabira, riscado em frente às janelas daquele
morro, deixava a textura de suas pedras grudadas aos olhos de quem nele
sonhava. crianças e vendedores de sorvete e cachorros lentos tinham os castanhos
dos olhos num mármore rugoso: “O dedo de Deus”, dizia meu irmão que tanto
àquela época já sabia de tudo. lembro de um dia em que sentamos na laje da
casa, eu e Pablo e meu pai numa infância dividida igualitariamente entre nossas
pernas soltas no ar. olhávamos o Itabira vestido de nuvens: era longe e chuvoso
e parecia mesmo o indicador de alguém de voz ecoante. Pablo e meu pai se riam
de mim por não conseguir perceber a chuva que caia pelo alto de lá, me fazendo
chover os próprios olhos pela inveja de não dividir as gotas daquelas duas
crianças.
a casa já não existe e do bairro já pouca coisa me lembro. o
coração de tia Tuca parou meses atrás de tanto ter batido pelos outros, e hoje
bate o meu por ela quando Drummond conta da Itabira dele, quando lembro como
era ela a negra do sorriso mais branco, da pele mais sorridente que me
acarinhava os cachos de seus cosméticos amorangados, acarambolados, jaqueados
naquela baba jocosa que a jaca solta na mão e gruda na alma.
descíamos depois de dois, às vezes três dias em que nada
fazíamos que não sentir todo o amor do mundo. ao contrário da pressa da subida,
eu e Pablo íamos numa cadência própria das fumaças de tia Binha. parecia mesmo fumar
mais lento, que as pernas se jogavam numa vontade de não descer. carros de
freios de mão estragados dormiam sobre pedras e tocos de pau, e tanto doía não
estarmos inúteis assim. hoje sei que lá ficávamos, que sou doente
daquele calor, doente do Itabira vestido de nuvens e sol. tia Tuca, a mulher
que tinha a casa aos cuidados do dedo de Deus, ensinava amor ao peito de quem
por lá sonhava e dormia e era amado. de lá não sei acordar. de lá só saio pro
cafuné doce de tia Tuca que hoje acarinha as unhas divinas.