sexta-feira, 26 de setembro de 2014

tia Tuca

para D.R., que de bailaora que é me faz dançar os sonhos.

Tuca, Sandra e Barnabé,
tios e pais.

Pablo, primos e todas as crianças que naqueles dias foram amadas. Inclusive eu.

a casa de tia Tuca ficava num longe pra lá dele mesmo. era só amor, e talvez disso tanto não perceba sinônimos ao meu redor. pegávamos dois ônibus e eu já pequeno sentia na espera da condução o ritmo lento de Cachoeiro, a calmaria dessabida que a gente de cidade grande não sabe saber. naquele tempo ainda não dava às mangueiras o carinho do Braga do Teatro Municipal, a mania de pintar histórias das tintas transmutadas de saudades. descíamos eu e meus primos e tia Binha pela Avenida Beira Rio. as pessoas de lá vestidas sempre de sol na pele morena, o Itapemirim brincando nas pedras sem que o murmúrio do jogo fluído fosse diferente desse pensar em silêncio de cada um que ali espera a vida. se bem me lembro as pessoas do centro de Cachoeiro tem olhos de céu e cor de Itapemirim, e isso a gente que é gente de cidade grande não pode poder.

chegava esgarçado ao pé do morro: tia Binha me estancava no pulso o sangue do braço pelas recomendações de mamãe que bem sabia minhas maldades. dureza em carinho numa responsabilidade de irmã mais nova aos conselhos de minha mãe que à tia era irmã e tempo. estranhava subir no Flecha Branca pela porta de trás, as distâncias curtas cortadas pela aparente única rua daquela cidade em vale. eram ladeiras onde a chuva dançava em vertiginoso escorrer, montanhas cravadas de casas e de mármores assaltados que por lá nascem até das flores. a subida era alegria: corríamos eu e Pablo pelas escadas de curtos degraus na certeza de que o primeiro a chegar teria o carinho de Deus, a sorte das carambolas mais doces no pé da casa de nossa Vó. tia Binha nos seguia na cadência dos fumantes, hora ou outra um grito enfumaçado pra que cuidássemos com os carros desembestados que despencavam num consciente ir sem freio. Pablo já naquele tempo trazia em si um gosto de desconforto, um bem estar presente apenas nas mudanças que promovia todo o tempo. comia leite condensado, andava pelo BNH e sabia o número de todas as ruas, os pés de frutas desprotegidos de cachorros bravos que em Cachoeiro tanto latem. lá se fala alto num canto meio baixo, e talvez essas coisas sejam doença de calor. Pablo. não sabia poder sentir o tamanho das coisas, e quando saíamos de carro com meu pai e meu irmão, acompanhava o asfalto das estradas estreitas na certeza do seu lugar ser em toda parte.

chegávamos. montes de areia e tijolos indicavam sempre um cômodo por aumentar, um vergalhão exposto por vestir de cimento e pra sempre. a casa de tia Tuca era a casa mais populosa do meu censo moleque, e muito me espantava a quantidade de comida que todo almoço e janta demandava. às dez horas da manhã, com o olhos ainda empedrados de sonhos remelosos, tomava chocolate e via desenho numa casa já temperada de alho, de fios de óleo e catares de feijão rajado. tio Altar, irmão de minha mãe e companheiro da dona da casa, comia sempre numa panela que talvez servisse todas as crianças que por lá eram tantas. era padeiro e amor, e acordava cedo pra voltar no meio da tarde com tatus ou tartarugas feitas de broas de milho. em cortes de precisão cirúrgica desmembrávamos os animais, eu e Pablo, saboreando patas e olhos de grãos num gosto de aventura. tio Altar era forte e falava rápido. comia melancia com semente e escandalizava minha fé de acreditar nas árvores que nascem nas barrigas desses gulosos. tinha os olhos floridos e um coração desmedido. tia Tuca e ele traziam pra dentro de casa e do peito quem quer fosse, quem quer que quisesse ou mesmo não carinho, teto e confidência.

nos seus vozerios a casa ganhava vida. entravam meninos descalços e meninas sem camisa, um frescor infante que blindava aquelas peles de leite do sol forte de todo dia. os tijolos da casa eram morenos, os rejuntes rangiam de insolação. tia Binha sentava numa cadeira à beira da porta, e numa maestria sabida só por ela, domava a fumaça dos seus cigarros que dançavam apenas da porta pra fora. ela sempre cheirou doce, e nada no mundo é maior que seu abraço amolecido de manha. não lembro o que tia Tuca gostava de fazer. muito entrançava meus cabelos, contava histórias da adolescência de minha mãe que reforçava o carinho mútuo entre elas. ô, tia Tuca; meu peito pequeno que não conseguia guardar saudade hoje fica muxoxo de lembrar.

poucas vezes meus pais ficavam por lá. maior liberdade não sabia saber, e o alto daquele morro mostrava os desenhos de Castelo e o cheiro doce do mar de Piúma. o pico do Itabira, riscado em frente às janelas daquele morro, deixava a textura de suas pedras grudadas aos olhos de quem nele sonhava. crianças e vendedores de sorvete e cachorros lentos tinham os castanhos dos olhos num mármore rugoso: “O dedo de Deus”, dizia meu irmão que tanto àquela época já sabia de tudo. lembro de um dia em que sentamos na laje da casa, eu e Pablo e meu pai numa infância dividida igualitariamente entre nossas pernas soltas no ar. olhávamos o Itabira vestido de nuvens: era longe e chuvoso e parecia mesmo o indicador de alguém de voz ecoante. Pablo e meu pai se riam de mim por não conseguir perceber a chuva que caia pelo alto de lá, me fazendo chover os próprios olhos pela inveja de não dividir as gotas daquelas duas crianças.

a casa já não existe e do bairro já pouca coisa me lembro. o coração de tia Tuca parou meses atrás de tanto ter batido pelos outros, e hoje bate o meu por ela quando Drummond conta da Itabira dele, quando lembro como era ela a negra do sorriso mais branco, da pele mais sorridente que me acarinhava os cachos de seus cosméticos amorangados, acarambolados, jaqueados naquela baba jocosa que a jaca solta na mão e gruda na alma.

descíamos depois de dois, às vezes três dias em que nada fazíamos que não sentir todo o amor do mundo. ao contrário da pressa da subida, eu e Pablo íamos numa cadência própria das fumaças de tia Binha. parecia mesmo fumar mais lento, que as pernas se jogavam numa vontade de não descer. carros de freios de mão estragados dormiam sobre pedras e tocos de pau, e tanto doía não estarmos inúteis assim. hoje sei que lá ficávamos, que sou doente daquele calor, doente do Itabira vestido de nuvens e sol. tia Tuca, a mulher que tinha a casa aos cuidados do dedo de Deus, ensinava amor ao peito de quem por lá sonhava e dormia e era amado. de lá não sei acordar. de lá só saio pro cafuné doce de tia Tuca que hoje acarinha as unhas divinas.