sexta-feira, 25 de abril de 2014

pitanga

Meu Deus, venho pedir perdão de meus pecados. Imploro vossa Misericórdia e vossa graça para aceitar a pequenez de Tua cria indigna de paz. Meu Senhor e meu Deus, dá-me luz para conhecer os meus pecados, e graça para deles me arrepender. Minha Mãe imaculada, São José, meu pai e senhor, meu anjo da guarda, intercedei pela pobreza de minha vaidade que nem ao menos vangloria de forma suficiente esta carcaça que se desfaz em pó e silêncio, sem que muito se perceba ou se diga qualquer coisa nesse silêncio cruel de Tuas vontades errôneas e não confessas. Entoo num fôlego só. Em suas vestimentas lisas é pouco o dourado ao branco do tempo pascal que em estola lhe veste do pescoço aos joelhos: uma pomba que voa em gotas de ouro, e o brilho do olhar indiferente de quem parece ouvir numa ausência santa, fidedigno retrato de Deus para conosco, filhos tortos diletantes do caminho sem resposta. Faz-se ali a remição Dele para Ele, em que se obriga a perdoar-se pela obra mal feita capaz inclusive de ver na imagem indiferente do homem trajado de panos claros a sintonia alva do acolhimento divino, transmutar o reflexo de nossa imperfeição na esperança do amor que ama de jeitos tão impossíveis aos nossos peitos desertos. Faz tempo, padre, e duvido muito que de fato perceba que àquela sala divide agora outra quietude que não apenas seu silêncio. Não me ajoelho pelo desejo de não despertar mais desgosto aos olhos de Deus, e acredito realmente que a estátua de carne e osso e pecado que me ignora é a personificação fiel do encontro que sonho com meu Pai. Faz tempo, meu Pai. Já não mais lhe aborreço com discursos ensaiados pela hora de dormir. Acredito que ainda na infância dispensei em carinho o cuidado de Teus anjos, julguei-me pronto a encarar madrugadas sem camisa, minha mãe dizendo Filho, se dormir sem camisa o anjo da guarda não vem, eu ensaiando inconsciente o sono sem sonho que é o caminho de todo homem que é pó por Ti moldado. Meu Deus, toda graça pela criatividade infinita e alheia às nossas perguntas. Reconheço Tua grandiosidade e fortaleza, Tua forma incomparável nos chega apenas como arrepio pela incapacidade humana de nomear desígnios perfeitos. Fez-nos à imagem e semelhança de uma forma sem reflexo, e pobres são nossas intenções de partilhar tua completude. Ris, e infinitamente belo me parece tal riso. O padre coça o nariz e por um instante toma a forma de homem, vestes que não condizem aos gestos animalescos que nossa candura e silêncio tanto externam. Sinto pena de mim pela infinito dom humano de ter ao redor diferentes formas de idênticos moldes de vazio e pequenez, e ao que parece Deus logo cansa desses nossos dramalhões tipicamente nossos e toma as rédeas da atenção do corpo ornamentado em pouco dourado. Saibas que não é desafio, que não exijo provas e acho graça ter tido um peito de criança que batia demais e agora soa quieto pelos quartos escuros que tanto um dia nos dirão sem dizer. Hoje é a cabeça que incomoda, uma dor que paira o patológico e o silêncio transposto de nosso músculo cardíaco à massa cerebral. Ao peito as coisas parecem mais vivas, Senhor, e Tu bem sabes disso e de tudo que um dia jamais chegaremos à sequer poder entender pelos recados luminosos que deixa à vastidão de cegos daqui. Na cabeça fica tudo confuso e cético, sem a cadência do peito que entoa fantasias às perguntas sem respostas que entre miocárdios por vezes travam e nos escurecem da ilusão da vida os olhos fechados ao Teus planos impossíveis a nós. É que a vida nos dá cigarros e garrafas que por vezes escondem o amargo do gosto numa lembrança azeda de pitanga madura, e isso nada lhe diz. Uma vida que esconde o agora pelo preso da alma ao que se diz lembrança e necessária, sendo o tempo mistério em nossas teorias frente Tua existência que desconhece lacunas. Parece cruel de nossa parte querer de Teu plano qualquer coisa, já que não nos pertencemos, somos uma relação causal que engatinha sem perspectiva de quando saberemos caminhar, se quiçá poderemos um dia ser guiados a qualquer lugar que não nosso próprio vazio. É mais pra fugir das magias do sono, pra esquecer das tempestades da cabeça que já não voltam mais ao peito. Esvazio, e não sei o motivo de tanto tardar Deus em largar os olhos agora já não dourados do Padre. Assente quase calmo. A juventude é incerta, diz. Sorrio. Meu Senhor e meu Deus, eu me arrependo de todo coração por vos ter ofendido, pois sois tão bom e amável. Prometo com a vossa graça nunca mais pecar. Meu Jesus, misericórdia de nossa ignorância. Perdoa sermos transparentes à sua imagem e semelhança que não nos é suportada, que não nos é nada que não indigna. Perdão, sabendo que já é pedir demais.

à fé de minha Mãe

quarta-feira, 9 de abril de 2014

pulso

A gaveta de meu pai é mar onde não navego. Confia lembranças de meu avô, fotos onde eram pai e filho pescando pelos infinitos rios do Amazonas. Não reconheço as pessoas pelos papéis envelhecidos, e como se fizesse parte de algo que não lembro, tranco a gaveta ao criado e saio inundado desse cheiro do há muito não lembrado. O que mais me chama atenção é o relógio que um dia de meu avô tornou-se hoje de meu pai: deitado em um estojo preto e simples, o dourado oxidado de sua pulseira de metal envolve o corpo de vidro fosco e ponteiros há muito parados. Traz o mesmo cheiro das fotografias, o mesmo ritmo daquele passado.

Personifico meus ideais de tempo pelos relógios antigos que encontro aos pulsos descobertos. Não revirar memórias ou deixar de aceitar que os cigarros de meus dedos guardem o cheiro passado daquelas fotos e papéis e tempo é entender ainda verde a madeira de meu escalé, a necessidade pelos remos que tão longe me deixam de ser mestre de meu saveiro ou presente naquilo que faço sem estar. Talvez por isso não desvende tanto a porta de seu quarto, evite afagar o nariz com os dedos enfumaçados de minha mão direita enquanto caminho pelos mares de gente num rosto ensaiado que não diz muito à estas ondas; sem nunca entender do tempo e da pressa e das coisas que apenas os relógios no pulso trazem a homens e mulheres de coragem. Se por uma ventura me contraio num sorriso enrijecido, tenho nas bolsas de sob meus olhos esse tudo aquilo que não sei, um mar morto por onde navego sem saber usar os remos.

Por uma dessas últimas noites ganhei dois relógios. Disse-me quem me deu que seu pai já não os usava tanto e o cheiro antigo do couro das pulseiras saltou entre ponteiros minha lembrança despreocupada. Levei-os até Gilberto. Trabalha moldado em sua pequena loja de centro de cidade grande por entre uma infinidade de apetrechos destinados à vigilância desse livre correr do tempo. Sentenciou-me o preço antes do trabalho feito de sob meus olhos, as ferramentas calmas num manejo estanque e decidido por mãos levemente entregues ao balanço daqueles que já muito viveram. Gilberto e suas peças sobressalientes. Por entre colas e baterias maneja o corpo num cheiro de lugar pequeno com coisas demais. Agradeci levando ao pulso o tempo marcado por ele, cru agora na sua figura reclinada sob luzes aos olhos de sua estante decorada por sua esposa em retrato.

Antecipo certo anseio pelo por vir, e isso já diz. Carrego pela segunda os passos da semana sem que haja jeito de outro jeito ser, e assim espero pela confusão que mistura noites de domingo com o clarear que logo chega por ser regrado. Tudo sem muito por sobrar, e às vezes a gente parece se ver com pressa do outro lado da calçada num ritmo que não nos permite cumprimento, não nos deixa nos dizer que parece justo pelo tempo que faz; nesses nossos dias em que vamos em máscaras aos próprios olhos parados daquilo que não é, que não podemos. Pareço-me bem de lá, dourado no pulso e destinado pelos pés.

Pelo em diante as coisas soam ritmadas. Os segundos de Gilberto moldam meu tempo num cheiro de gaveta. Penso por meu pai e suas heranças chegam ritmadas num colorir de sorrisos amarelos ao saudoso de quem há muito foi. É o meu querer pelo regrado, o anseio por mudar numa constância de sempre.