É de um tão pouco sem tamanho, meu irmão: vai em partes do
que sinto ser tua cabeça, um tanto quase muito de silêncio. Acaba o expediente
por hoje e deixa as coisas pelos armários daí. Esquece que usa carteira e
amassa no peito da camisa o registro geral e comum, algumas notas como embrulho
de poucas moedas. Sai assim, seis horas no pulso e mão esquerda no bolso da
calça. Sei que não é de usar paletó e a gravata aperta o pescoço apertado do
não dito, mas empresta do colega da mesa da frente, diz que tem um compromisso
na outra repartição e por lá as coisas são mais sérias. Daquela moça enviesada
ao canto esquerdo do teu olho, chega manso e pede um cigarro daqueles bonitos,
filtro curto e corpo enxugado; pensa nela com a toalha enrolada na cabeça e nos
pingos estáticos em seus ombros e orelhas, tais quais como brincos prismáticos.
Depois sai, meu irmão. Abre a porta do edifício e atravessa as ruas antes de
seguir pela esquerda e dobrar a primeira à direita.
A sexta casaria melhor. Tu bem sabe dos passos alegres da
sexta-feira, das mãos ansiosas dos corpos por fim livres daquilo que não lhes
é. Quinta é bonito, assumo. Tudo vai já tranquilo num ar de pra quem esperou a semana toda o que é mais
um dia? e sinto vivermos essa busca de um fim de semana que nunca chega,
que aporta já indo embora. Mas você dobrou a direita e agora afrouxa a gravata
depois de pedir consentimento aos céus. É quarta e tem tudo um azul pouco
anuviado. Deus parece de uma simpatia, de uma piedade para consigo como quem
aceita a obra torta. Saca o paletó e engancha dois dedos por sobre o ombro
direito, sendo tuas costas o guarda roupa pra tua mão de cabide. Sua calça
riscada de giz, teu riso sublinhado do escárnio de quem procura propósito, de
quem dança sem saber pra quais pés. Mas tem a relação do dever, a crença
daquele que faz por aquele que pede: confia, meu irmão. És meu compadre já.
Pensei certa vez no segundo rebento que há de vir desavisado e combinei os
passos e os olhares e o silêncio ao teu nome. Quando perguntasse diríamos que
foi coincidência, que teu pai não quis, filho; que teu padrinho não soube,
moleque. Deixemos que encontre as próprias inquietações sem influências de
nomes, sem sonhos transmutados. Caminha, homem.
Tua imaginação é andar às beiras dessa nossa rua de homens
fazendo-as orlas de brisa fresca; cruza praças e largos num risco diagonal e
habita na tua mente aqueles que vendem algodão doce, os casais de sacolas e
beijos que tanto atrasam a condução da volta na companhia dos lábios morenos
deles, dos raios de sol dos olhos delas. Saca de trás da orelha esquerda o
cigarro curto da moça sempre úmida de banho. Sente aos dedos o doce das loções
e perfumes que não competem ao cheiro próprio que toda pele tem, que infesta o
alvo de todo toque, o refém do jogo de espelhos do elevador que se perde nas
rajadas de silêncio. Risca o fósforo, meu irmão. Pensa nela e de risada
transforma a fumaça do teu peito no vapor do banho lento. Segue. Mantém impecável a camisa por de dentro da
calça, o cinto centralizado que não mexe aos teus passos descontraídos no
sapato bonito. Ao que calculo você já vai mais acreditado, baixa os olhos numa
calma de silêncio que esquece a brasa acesa aos dedos trêmulos. Acredito que
nessas horas em que se desliga a cabeça cessa o tilintar de suas falanges, o carnaval em
seus ossos quieta e teus dedos ganham ar de quarta feira de cinzas. Segue, meu
irmão.
Brademos em paz a fortuna dos funcionários públicos. Digo
que acredito na desordem burocrática de nossos órgãos estatais, na vida de
calça e camisa social dos funcionários públicos que tão bem transmutam ao
trabalho a incerteza das próprias vidas. Sinto o caos das secretarias como
reflexo do caos da vida de todas as Carmens e Alfredos, concursados numa
segurança eterna que a morte não ameaça, que novos concursos realocam Judites e
Augustos aos semblantes diferentes de vazios idênticos. Caminha, homem; seja o
funcionário público de depois do expediente que segue cansado da mesmice de que
tanto é refém. O trabalho é motivo pra ajeitar o despertador, razão pra
continuar rumo ao fim que a gente sempre tanto sabe. Faz o que eu não posso,
meu irmão.
Esquece agora daquelas de Atenas, daquelas outras que são
tidas como de verdade. Chega até a praça do fim da nossa rua de homens e
procura Lígia, sonha Lígia sentado no balcão da lanchonete à tua direita
enquanto pede pastel e enche o copo americano à cada trago numa pressa calma.
Tua pressa calma é coisa tão tua, meu irmão. Sou de me perder nessas morenas
que você tanto sabe. Não sou inclinado às histerias e sigo num suportar quieto
que enaltece a vida do funcionário público de horário regrado e obrigações
maleáveis. Finge hoje tua vida ser assim, finge amor eterno aos olhos morenos
de Lígia que daqui parece tudo justificável.
Agradeço. Larga o paletó onde bem entender e joga a gravata
no bolso mais fundo que lhe oferecem as roupas. Pega tua condução e esquece
disso tudo, meu compadre. Essas coisas vem do fundo da cabeça e emergem mimadas
de atenção. Tenho por elas um carinho grande que um diabo de formiga. É ideia
de Lígia, sabe? Nome bonito que um diabo.