quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Estrelas

Você tomou as duas cervejas de sempre. Deixou tua fila ébria de garrafas vazias ao lado do sofá, que te fazem tanto sentido quanto a desordem ordenada dos meus sapatos, calçados um a um nos pés parados do guarda roupa. O desgosto que sente quando goza é a confusão das minhas mãos fechando tua camisa em mim pela manhã, tropeçando nos cacos da tua ressaca que ainda será nossa amante por tantos e tantos anos. Sempre quis ter essas janelas da altura do pé direito, ter a falsa liberdade de um suicídio instantâneo a qualquer momento, gravado apenas pelos olhos cerrados do cara do prédio da frente. Ele bem sabe que eu sei que me olha, bem sabe que eu me deixo ser vista nestes sábados nublados, com meus cigarros de fora e pernas acesas. Lá de longe mal vê meus olhos, mal sabe como fica transparente em mim esse linho branco; sei que gosta de imaginar, de me imaginar imaginando o jeito que desenho o turvo do teu rosto distante.

Culpa das músicas de voz e violão, de guitarra leve acompanhada das minhas bebidas vermelhas de doce forte. Fui exposta a tudo isso muito cedo, me deram de ler sem chance de escolha umas linhas traçadas demais pros meus alvos pensamentos. Fiquei assim, fiz tudo que não era ser pros meus olhos vastos; claros de tanto esperar tantos no meu apartamento com cara de sábado nublado. Vou deixando esse meu jeito por todas minhas xícaras, meus chás de gostos engraçados. O simples mente toda essa simplicidade. É confuso, não me acostumo com o fuso dos meus sentimentos que acordam quando durmo, que dormem quando você me acorda com o susto que já foi arrepio; mas não culpo os mesmos por serem o mesmo, por não terem me feito inveja dos seus passos lentos de conformados.

Nessas horas encho minhas mãos com meus braços, meus braços de meus abraços. Minha cabeça vazia da música de ontem à noite, minha saudade de repente do meu repente. Tudo repentino. Preciso que tudo seja repentino, mesmo estes dois últimos anos. Mas a semana já começa devagar, quase sem tempo de terminar. Faço minhas contas, nos dou a conta sem que haja troco algum pra qualquer um de nós.

Termino tudo daqui, cinco ou dez minutos antes de levantar pra fazer teu café. Pro armário da cozinha fico na ponta dos pés, lembro do cheiro da tua caneca e já não acho pires meu que te combine. Tanto faz. Das quatro colheres vejo que pouco fiz no coador, e minha curiosidade de saber como é que a água esquenta tão rápido era a mesma de dentro do teu carro velho com cheiro de velho. Já você acorda, acorda junto o mundo com teu berro de bom dia, e bate os pés com força no caminho até o banheiro pra saber se lembra de algum sonho; se lembra de rir pra tua graça de me trocar o nome por algum outro de sotaque estranho. Sim, tu já vai vir. Se não vir eu vou, te puxo a coberta pra te puxar o pijama, pra tu me puxar pra ti e me puxar de uma vez de mim; me tirar da tua camisa amassada, do sofá virado pro prédio verde da frente.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Sexta

Não tem muito que ficar lembrando, já que não tem nem pouco. Não houve, você não ouve. O que incomoda no banho é a falta do que pensar. Talvez tenha todos os motivos do mundo pra me demorar ali de baixo com a água gelada na nuca, mas acabo sem saber de nada, sem motivos, sem roupa e de toalha fazendo desenho no embaçado do espelho, limpando aos poucos pra ver se ali atrás acho alguma coisa pra lembrar, pra fazer desta coisa qualquer falta pra mim e pra ninguém mais. Acabo no costume de ter sido sempre o mesmo, de ter feito sempre coisas iguais intercalando as mesmas pessoas em uma ordem conhecida. Não se muda assim. Não vou me enganar pra não correr o risco de ver teus olhos baixos qualquer dia destes, pra não ter que explicar todas as minhas risadas pro teu sorriso curioso de voz desafinada.

Foi tempo, é momento. De repente não tenho mais as horas certas no tudo que me era certo, e vai ficando tudo por aí. Volto no que dá, e me seguro te segurando pra ver se assim vejo os olhos abertos de atitudes fechadas, os por de todos os quês juntos ou separados; pra ver de uma vez por todas que assim não deu, que ser único mais de uma vez não é ser mais do que comum, ser como um qualquer.

Até que foi, mesmo que o até seja o tênis apertado, a parte amarga da melancia. Ausente assim é quem eu conheço faz tanto tempo, ainda que não saiba quanto tempo faz. Esgotei teus detalhes por não saber nada de novo. Cá dentro? Ah, se soubesse de cá de dentro... Tua surpresa não seria não ser você, muito menos não serem os meus detalhes as coisas a serem detalhes. Seria você tão de perto que meu eu iria lá pra longe, lá pra perto de onde imagino ser teu repouso, teu refúgio quando até as coisas que não fazem sentido resolvem se resolver pela contramão. Por fim diferente por não ter o peso que todo o resto teve, por não ter vontade de ser nada que não continuar o que ainda será mesmo que não mais sejamos.

Depois disso me visto, e ainda de costas molhadas sento no primeiro sofá que aparecer pela minha sala. Mais inspiro do que solto, e percebo ser assim tudo que me cerca de dentro pra fora. Penso em parar por um tempo, deixar tudo voltar pro sentido que tinha antes; mas não vou. Vou é ficar por aqui, bem perto daí. Quem sabe assim.


‘’E se ela morrer, por mim podem fechar este espetáculo que é o mundo. Podem desmontá-lo, retirar as estrelas, enrolar o céu e meter num caminhão. Podem desligar o sol, belíssimo sol que eu gosto tanto, tanto. Você sabe por que eu gosto tanto? Porque a amo quando o sol brilha nela. Podem levar tudo: os carpetes, colunas, esta casa, areia, vento, sapos, as melancias, a saraiva, as 7 da manhã, maio, junho, julho, o basílico, as abelhas, o mar, o alho..., o alho’’.

O Tigre e a Neve – Roberto Benigni

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Lugar

Até tento ignorar, mas literalmente ele não para. Talvez todas as minhas reclamações sobre sua pressa sejam o motivo para que fique ali: estático, indo parado. Se bem que agora não me importa. Sei que cedo economizo as preocupações do agora pra adiantar as de depois, e sentado na minha cadeira penso no caminho com menos cruzamentos só pra tentar adivinhar que horas levanto amanhã pela manhã. Vou trocando os pratos, mudando os caminhos, e vejo tudo ter exatamente tudo igual nas coisas que são tão diferentes. O tempo é um daqueles patrões chatos. Vai se escondendo por trás de seus empregados, não dando folga para os relógios nos darem folga. Comprou as coincidências, e agora administra os acasos com mão de ferro pelo quanto quiser. É tudo seu, e se ainda não é, provavelmente seja só questão de tempo, seja só questão sua e de ninguém mais.

Nessas dúvidas normalmente engato a quinta. O motor a setenta fala baixo pra não acordar o asfalto vazio, e a música que quero nunca é a que o rádio toca. Vou indo pra casa, e o que me encanta de noite é esse som de carro fechado que escancara minha cabeça. Tenho certeza que nada irrita mais o tempo do que não sabermos ao certo quando tempo as coisas têm; não consegue ignorar, e sei que atrasa meu despertador no outro dia só pra encher o saco. Se nem pra ele as coisas são eternas, acho engraçada essa sensação de quero mais em todo frangalho de arrepio que se ouve por aqui, que se cata por ali.

Reparo em tudo que andei antes de meus pés serem 42, e é estranho pensar que daqui pra frente serão vários sapatos para as mesmas pegadas de sempre. De vez em quando reparo que a maior parte dos culpados pelas minhas dúvidas foram inocentados, que as lacunas dos meus pensamentos já foram ocupadas há tempos por tantas coisas que já nem me lembro mais. Tudo vai tendo que ser ao tempo do tempo, e deixo estar às suas custas já que provavelmente ainda não seja minha vez.

Daqui da outra cadeira fica tudo diferente.