E quem o vê de sobretudo puído, carregado de falta de cor e de recibos já sem tinta, se quer imagina alguma coisa; bate o olho com mais indiferença do que aquele que vê com os olhos lá longe, do que aquele que acompanha com o olhar só pra disfarçar o desinteresse que sente por aquele que o enche os ouvidos de coisas que não lhe importam. A coluna já não tão reta pelo peso da sujeira da roupa, da barba por fazer, dos pontos brancos de irresponsabilidade que lhe decoram os ombros e a alma. Senta no chão, tira o jornal amassado da concorrência de baixo do braço esquerdo, e quem dera se ao invés do vazio de uma mão esquerda sem companhia, ouvisse o toque sem graça e alto de uma esposa de voz mansa pedindo pra não se atrasar pro almoço, pedindo pra que não demore muito na feira porque não quer chatear a irmã que veio de longe, pedindo pra fazer o que quiser em troca da noite muito bem não dormida de ontem. Sei que queria ao menos acordar de manhã, se afogar no travesseiro vazio e gelado pouco antes da realidade lhe tirar calmamente dos braços dos sonhos; mas já não dorme, já não sonha.
Sem ambição, sem compromisso, sem fígado. Quase um qualquer, se não fosse pelo esvaído prazer de aleatórias duas ou três das muitas tragadas dos cigarros que vai achando na capa verde escuro que o protege do mundo. Só não sabe mais o que é novo, e assim não tem parâmetro pra julgar tudo de velho que carrega na falta de expressão, enquanto vai se lavando com um alvejante lento e irremediável que carrega sem polir no pulso esquerdo. Quase um qualquer de verdade, se não fosse pelo sentimento que coloca, mesmo que automatizado, nos textos médios que escreve para um jornal tão regular quanto sua vida que leva a dor de ser comum. Anda pela Cândido de Abreu todo dia, e se antes reclamava das caminhadas sem cigarro, hoje lhe buzinam com razão nas horas em que anda de corcunda erguida com o que joga fora apagado quase sem perceber entre sinais abertos.
Quando saía jovem pelas madrugadas advertidas por uma mãe repleta de certeza, não imaginava o rumo. Pegava a garrafa da mão do amigo da vez e com a boca no gargalo nunca conseguiu pensar em nada, nunca quis pensar em nada por achar que tudo já tinha sido definitivamente traçado; se apoiava nos corrimãos do quarto andar e nas certezas sem sentido que iam se apresentando sem muitas delongas, para aí então dormir feliz, com o mundo girando ao redor da sua cama de dois travesseiros. Quando acordava um dia menos jovem pelas tardes compreendidas por um pai que aparentava ser menos do que é, mas que via o mesmo mundo do filho, já sabia de tudo; ria no começo pra mais tarde calar a certeza daqueles olhares repetidos, que eram apenas a banda de abertura do show de sentimentos esgotados por todas as combinações de frases e reações. E entre as noites cheias de sono e medo, dentre as incertezas daquele olhar que não teve culpa de nada, em volta da ajuda que procurou de fora pra dentro, conseguiu entender que se convencer é mais do que ser, e quieto passou a ser a convicção em forma de ovelha que precisa do pastor pra não pensar em todos os seus lobos simples e mansos.
Agora, como um vaso novo com flores de outra cor, é alguém que levará um susto se entrar no banheiro com a cabeça erguida para o espelho, se ler os livros que não terminou entre cervejas e amores ainda jovem, e perceber que não há souvenir que mude a cara da mesa velha da sala empoeirada. Talvez o triste mais feliz, quem sabe o desajustado mais perto do trilho por saber que não saber não faz bem, e que não fazer bem é mais leve que fazer mal e mais digno para quem não tem coragem. Que bom que é quase um qualquer, que bom que sua consciência não faz nada além de fazer sentir fome, frio, passividade diante de tudo que um dia já lhe emocionou, de todos que um dia já emocionou mais do que deveria. Se ainda sentisse o prazer de usar as camisetas das bandas que no seu tempo eram desconhecidas, de ouvir as músicas que foram inspiração para os roteiros de todos os seus dilemas; mas ele e nem ninguém parecem se importar, e entortado assim, pegou a estrada e resolveu parar logo no acostamento.
Só acho que quem o vê de roupa esgarçada e quase sem cor só percebe o que ele se esqueceu de esconder, deixa passar exemplo quieto de quem conseguiu com sucesso calar seus anseios, de quem desfila anônimo com os louros da solidão atrás da orelha. De qualquer forma, ainda é quase um qualquer, e não me importa saber se ele foi embora por estar fazendo o certo para os dias em que foi dois de todo coração, para os domingos em que foram um no almoço de família, para as verdades que carregam o peso de todos seus atos inconseqüentes.