segunda-feira, 31 de maio de 2010

Aperto

Faz como rito, repete os mesmos passos como se o chão já fosse marcado por pegadas do hábito. Toda noite, toda quase manhã. Tranca a porta, fecha o gás, tira as coisas mais fáceis da tomada, e se for o caso, liga o computador só pra ter algum eletrônico pra desligar. É como se tudo isso fosse chave pra deixar o sossego passear pela sua cabeça, abrisse a porta mansa que embala as vozes que vão chegando alguns minutos antes do sono. Deitar sem isso é tortura, é revirar forçosamente todo centímetro quadrado de travesseiro e dormir, apenas dormir sem sonhar. No mais, vai indo orgulhoso e de luzes apagadas, pelo próprio prazer de desafiar as canelas entre os móveis que parecem se mexer na escuridão. Nem liga a TV, nem puxa o lençol; só ele e as coisas que pensa sem ao menos saber que realmente sabe.

Deita fundo, respira de lado, e não sabe o porquê de fazer tudo diferente. O que queria poder dizer ao invés de apenas sonhar e não lembrar, é que tudo fica claro nessas horas; que as idéias que as vezes não são nem idéias nesse tempo incontável, parecem sorriso pra tudo que chega como aquele jeito. É inevitável como o gosto do pinhão estragado na boca, como a paixão de querer descrever as coisas que não querem nada a não ser o fato consumado; do silêncio da respiração abafada que de olhos fechados esconde aquele sorriso leve, simples, sem cor definida.

Se abrir os olhos no meio da noite, sabe que ainda é só o começo, e que o dia que começa nos braços da dona da lua não trará idéias novas ou coisas diferentes. Basta sorrir, sorrir e tentar ver de olhos fechados a cor que foge ainda nos sonhos, que não existirá nem quando o próprio nariz beijar o outro, quando a própria boca respirar as palavras contadas e simples da outra; nessas horas o perto é mais detalhe que a cor da fronha, que a estampa do lençol amarrotado ao pé da cama.

É assim. É comum. É como um qualquer.

De tarde, quase no começo do fim da próxima tarde, não vai lembrar-se de nada. Vai sorrir sem saber pra quem, e não perceber que mais do que do outro lado, encontra na própria calçada o caminho pra tranqüilidade que talvez não seja destino, mas passagem pra qualquer que for a chegada inimaginável por medo da incerteza. Pega carona nos próprios sonhos, nos próprios devaneios que se demoram pra deixar o fim do fim lá pro final da história.

É assim. É incomum. É como nenhum outro qualquer.



''We were sure we'd never see an end to it all.''

1979 - The Smashing Pumpkins


sexta-feira, 21 de maio de 2010

Are You Here

E que tivesse lhe pulado aos olhos antes, já que aceitar o tempo do tempo, já que aceitar o tempo de sua pequena, nunca será item da lista que ouvirá compadecido e de cabeça baixa em um dos seus paraísos. Poupa os adjetivos e a boa vontade de quem ainda é alvo de seus tiros escritos, e diz apenas que tudo se encaixou, que ninguém tem culpa e nem haverá de ter queixa registrada em cartório de confidências como responsável por tudo. Da injustiça que sente ao ver o que percebe, acha errado não haver cartório para os beijos nada românticos, delegacia para a mágica de terem sido um contra a parede, e de nuca de costas pro chão, reivindica os bons momentos que normalmente chegam mais quietos do que quando se vão. Se pudesse apenas deixar tudo passar, se cobraria com a mesma inocência de quem esconde a chave no bolso de trás, prendendo o que ainda não sabe nem para onde precisa ir.

Dá risada quando percebe que o tempo não abre mão das coisas acontecerem pelo próprio relógio, e sente que, mais do que nunca, o vazio de uma ausência premeditada realmente deixa um que que não se sabe. Ela conhece seus medos, sabe que foi e continuará sendo o repouso pra tudo que só chega quando a única cama acesa é a de dois travesseiros; mas não pode fazer nada, não pode deixá-la ao lado se atrás da porta que encara tiver espaço só pra um, ou se o que tiver atrás da porta for mais do que fica escondido atrás do espelho. Não sabe, e se não saber fosse realmente o melhor, desligaria a cabeça, sentaria na primeira escadaria que visse, e voltaria pra sua antiga metade.

Só quer que ela respeite sua leveza, que respeite a calma que há muito tempo não vinha embalada pelas músicas que chegam com outra cara. Não é de todo mal meu amor, diria ele se roubassem sua consciência por alguns minutos e pudesse colocar aqueles cabelos pretos por de trás das orelhas nada inocentes. Não é de todo mal, e se pudesse vê-la sofrer todos os dias – diria ele – sentir em forma de arrepio cada suspiro que o vazio de agora lhe provoca nas costas, sentaria na primeira fila e pediria pro operador do cinema fechar bem nos olhos. Só não é de todo mal, não é de vingança ou do egoísmo que levou culpa por todas as coisas que não soube lhe dizer. Não é de todo mal, você sabe que não é, e me perdoa se te ver mal consegue me derrubar; me perdoa se me derrubar é o mais perto de ser justo nessa história toda, fazer o vazio que sinto em você ser compatível com a raiva que sinto de mim. Não é de todo mal meu amor, não é de toda insensatez que ainda quero te olhar por muito tempo.

Diria ele nada destas coisas. Se o momento que a luz da explicação é claridade na escuridão, tem medo que o clarão da verdade lhe deixe cego de uma vez por todas das coisas pela qual ainda se sente responsável. Se ainda se lembra de todas as promessas que fez, do gosto que as coisas de verdade deixam nas lembranças que de forma alguma chegam sem risada ou arrepio, é porque sorri e se sente o maior sincero diante das verdades que viveu junto dela. Se pudesse não ser a única mão a tentar desfazer os laços dados com tanta precisão, escreveria agora para dois olhos que não precisariam de tempo pra entender tais palavras, pra caninos que não precisariam de tempo pra voltar a sorrir sem a dor do que passou.

Diria ele, claro que diria ele que o tom de fim que dá nas coisas não significa ponto final. Acredita que no fundo ela entende tudo, que subestimar risadas infantis e pensamentos mansos foi necessidade de surpreender-se com quem jamais foi apenas uma; mas se as dores não são iguais, talvez também seja injusto querer cobrar as mesmas certezas, cobrar a mesma percepção para um mesmo caso com tantos olhares diferentes. E por saber as coisas que diria, provavelmente se calará pro mundo de fora na primeira oportunidade que tiver. Receberá no silêncio profundo os primeiros olhares tristes, e desconfiará que as risadas, que a princípio saíram cheias de orgulho e vaidade, doeram bem mais por não serem mais irmãs de todas as outras que um dia sussurraram ao tênis do seu ouvido.

Não foi só pra mim, diria ele entre sorrisos e lágrimas, e se pudesse levaria de ti toda e qualquer lembrança boa que possa um dia, quem sabe, lembrar de todas as lágrimas, de todas as traições, de todas as coisas que lhe fizeram buscar no amor incondicional motivo pra não dar fim. Talvez até gritaria a graça que sente em não se sentir responsável pela tua dor, faria figa com o braço esquerdo pra trás do corpo se assim, sob um céu cinza ou azul, o acaso resolvesse intervir no que passou e jogar o peso de lembrar-se de tudo que é bom para os já quase escassos cachos. Encheria o chafariz de hora marcada com preces para que os primeiros olhos que por este texto passassem fossem solteiros de dor, singulares de mágoas, únicos de alguma coisa sem explicação.

Não dirá nada disso na bem da verdade, e talvez duvidar que o acaso realmente queira ajudar possa ser uma espécie de provocação. Se fosse tudo fácil, dizer que os dois não precisavam daquilo seria extremo, e não banal e repetitivo. De qualquer forma, se pergunta como dar fim ao que ainda pulsa, ao que ainda é razão de existência para os próximos difíceis olhares trocados. Não sei o que fazer, dirá ele na primeira oportunidade, e depois de se certificar que tudo está bem, que as coisas não saíram do jeito que ela pensava quando pediu prazo, não saberá o que sentir, o que pensar, o que por no ouvido pra fazer piorar o que é justo para toda a injustiça que demorará pra fazer sentido.

Diria que não sobra nada, porque do que se é inteiro a sobra não existe. Quando se perguntar o porquê de valorizar tanto, o porquê de insistir que tudo foi de verdade, será justo; vai dizer que até as partes ruins foram de verdade, foram sinceras. E pedir vai ser luxo, vai ser inerte frente ao silêncio que não vai vir, à calma que vai ficar por entre as linhas junto de tudo que diria ele. Na bem da verdade, a culpa é minha até quando não quero estar errado nos meus erros, e se te pede pra entender o que ele ainda não consegue, é na esperança de continuar lhe vendo como mais do que teu desenho nos meus olhos fechados.

terça-feira, 18 de maio de 2010

Qualquer

E quem o vê de sobretudo puído, carregado de falta de cor e de recibos já sem tinta, se quer imagina alguma coisa; bate o olho com mais indiferença do que aquele que vê com os olhos lá longe, do que aquele que acompanha com o olhar só pra disfarçar o desinteresse que sente por aquele que o enche os ouvidos de coisas que não lhe importam. A coluna já não tão reta pelo peso da sujeira da roupa, da barba por fazer, dos pontos brancos de irresponsabilidade que lhe decoram os ombros e a alma. Senta no chão, tira o jornal amassado da concorrência de baixo do braço esquerdo, e quem dera se ao invés do vazio de uma mão esquerda sem companhia, ouvisse o toque sem graça e alto de uma esposa de voz mansa pedindo pra não se atrasar pro almoço, pedindo pra que não demore muito na feira porque não quer chatear a irmã que veio de longe, pedindo pra fazer o que quiser em troca da noite muito bem não dormida de ontem. Sei que queria ao menos acordar de manhã, se afogar no travesseiro vazio e gelado pouco antes da realidade lhe tirar calmamente dos braços dos sonhos; mas já não dorme, já não sonha.

Sem ambição, sem compromisso, sem fígado. Quase um qualquer, se não fosse pelo esvaído prazer de aleatórias duas ou três das muitas tragadas dos cigarros que vai achando na capa verde escuro que o protege do mundo. Só não sabe mais o que é novo, e assim não tem parâmetro pra julgar tudo de velho que carrega na falta de expressão, enquanto vai se lavando com um alvejante lento e irremediável que carrega sem polir no pulso esquerdo. Quase um qualquer de verdade, se não fosse pelo sentimento que coloca, mesmo que automatizado, nos textos médios que escreve para um jornal tão regular quanto sua vida que leva a dor de ser comum. Anda pela Cândido de Abreu todo dia, e se antes reclamava das caminhadas sem cigarro, hoje lhe buzinam com razão nas horas em que anda de corcunda erguida com o que joga fora apagado quase sem perceber entre sinais abertos.

Quando saía jovem pelas madrugadas advertidas por uma mãe repleta de certeza, não imaginava o rumo. Pegava a garrafa da mão do amigo da vez e com a boca no gargalo nunca conseguiu pensar em nada, nunca quis pensar em nada por achar que tudo já tinha sido definitivamente traçado; se apoiava nos corrimãos do quarto andar e nas certezas sem sentido que iam se apresentando sem muitas delongas, para aí então dormir feliz, com o mundo girando ao redor da sua cama de dois travesseiros. Quando acordava um dia menos jovem pelas tardes compreendidas por um pai que aparentava ser menos do que é, mas que via o mesmo mundo do filho, já sabia de tudo; ria no começo pra mais tarde calar a certeza daqueles olhares repetidos, que eram apenas a banda de abertura do show de sentimentos esgotados por todas as combinações de frases e reações. E entre as noites cheias de sono e medo, dentre as incertezas daquele olhar que não teve culpa de nada, em volta da ajuda que procurou de fora pra dentro, conseguiu entender que se convencer é mais do que ser, e quieto passou a ser a convicção em forma de ovelha que precisa do pastor pra não pensar em todos os seus lobos simples e mansos.

Agora, como um vaso novo com flores de outra cor, é alguém que levará um susto se entrar no banheiro com a cabeça erguida para o espelho, se ler os livros que não terminou entre cervejas e amores ainda jovem, e perceber que não há souvenir que mude a cara da mesa velha da sala empoeirada. Talvez o triste mais feliz, quem sabe o desajustado mais perto do trilho por saber que não saber não faz bem, e que não fazer bem é mais leve que fazer mal e mais digno para quem não tem coragem. Que bom que é quase um qualquer, que bom que sua consciência não faz nada além de fazer sentir fome, frio, passividade diante de tudo que um dia já lhe emocionou, de todos que um dia já emocionou mais do que deveria. Se ainda sentisse o prazer de usar as camisetas das bandas que no seu tempo eram desconhecidas, de ouvir as músicas que foram inspiração para os roteiros de todos os seus dilemas; mas ele e nem ninguém parecem se importar, e entortado assim, pegou a estrada e resolveu parar logo no acostamento.

Só acho que quem o vê de roupa esgarçada e quase sem cor só percebe o que ele se esqueceu de esconder, deixa passar exemplo quieto de quem conseguiu com sucesso calar seus anseios, de quem desfila anônimo com os louros da solidão atrás da orelha. De qualquer forma, ainda é quase um qualquer, e não me importa saber se ele foi embora por estar fazendo o certo para os dias em que foi dois de todo coração, para os domingos em que foram um no almoço de família, para as verdades que carregam o peso de todos seus atos inconseqüentes.

domingo, 9 de maio de 2010

Espaço

A questão não é o desapego, não é gostar de mais ou gostar demais de gostar de menos, mas é que às vezes vou sem querer explicar, e não é só porque o ponto de partida das minhas viagens são teus abraços perdidos e olhares apertados que eu te devo alguma explicação, que devo aceitar sua cara deslavada aprendida em algumas aulas experimentais de teatro; me deixa ir sem ter que explicar pro teu silêncio o que tanto me faz quieto, sem ter que achar nos meus erros adormecidos dose sem fim pra esse teu vício de querer saber de mais das coisas que pra mim já são de menos.

Passa, é claro que tudo isso passa. Se o erro da humanidade é querer ver o fim das coisas boas antes da hora, tiro teu sutiã e te deixo a camiseta pra sentir as luzes do teu segredo toda vez que o fim for deixado pra lá mais uma vez, mais de uma vez. Encontro na dor das minhas costas a assinatura da tua cama de solteiro, e da falta de jeito dos meus braços em dormir como um C em cima do cobertor rosa de mulher estreita. Só me resta acordar de madrugada, amarrar o cadarço no escuro com a mesma boa vontade de filho desobediente, acenar para o porteiro com a mão calejada de quem faz do gesto simples orgulho carente, e rumar pra minha cama solteira de mim, conhecedora dos sonhos que vou insistindo esquecer em todas as manhãs que chego em casa.

Do mais, é bem pouco. Talvez se soubesse que o descaso da falta dos meus comentários vem da mesma fonte onde nascem teus sorrisos, fosse um pouco mais simples pro lado de nós dois. A questão não é me dizer o que há de errado em ser sincero, mas sim, o que há de errado em acreditar que se é sincero; o que há de errado em descontar nas surpresas os segredos dos meus maus pensamentos.

No fundo, tudo é bem raso, e na colcha da tua mão leve carrega minhas idéias ruins, meus cabelos soltos, meu descaso em dormir, as caspas que pesam meus ombros carregados de irresponsabilidade e incerteza. Ser solto pra andar nas tuas algemas, ser teu pra sentir falta do dia em que fui só pensamento; que não seja como nostalgia o que não marco mais no calendário, mas que venha a mim como tal guria que dá um tipo de paz sem sono em toda semana dos meus dias.



Nescafé – Apanhador Só