terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

O Imperador

Ainda acha que nunca deveriam ter varrido seu pé. Daquele dia que não se lembra bem ao certo em diante, tudo ficou pela metade: pisava só com meia sola, enchia só meio pulmão, só meia boca era beijada. Já tinha tão bem se habituado com estas coisas que as meias verdades ditas pela boca entre aberta só levavam metade da culpa. Doía sempre pela metade em algum lado aleatório da cabeça, mas quando vinha por inteiro, tirava o sono tanto pelo caráter despedaçando, quanto pelo descostume de lidar com uma dor qualquer por inteiro. Só não saia correndo porque, de uns dias pra cá, sentia o joelho como que se dividindo em duas partes iguais.

Queria mesmo era voltar no tempo e tirar os pés do caminho daquela vassoura; quebraria com o dobro de culpa os espelhos que já havia quebrado meio sem querer, faria amor com gato preto pelas vezes em que olhava com um só olho o bixano sumir entre galhos. Se pudesse mesmo, colocaria com as mãos aqueles três palmos e meio de terra que tirou usando meias verdades ao invés de pá, da sua tão bem feita pela metade cova auto preparada. Que mundo injusto contigo, meu caro! Sem meio amigo pra dividir meia culpa, sem quase colega pra balançar a cabeça com cara de meio termo.

Por mais difícil que seja, consegue imaginar um perdão por completo daqueles que estima, se um dia assim, por acaso, resolver entregar a alma gêmea de seus silêncios não tão quietos. Vê um abraço sincero, sente a sensação da perfeição sem sombra nem sol de culpa, mas ainda fica meio assim por dentro; se imagina olhando em outros olhos os próprios erros, sente a dor da mordida se pensa estar olhando para aqueles caninos muito menos imperfeitos que ele. Talvez tudo se resuma em ser perfeito, tudo se resenhe na teoria de deixar de ser o que não somos nem em sussurro no pé do ouvido.

Do medo e do egoísmo nunca houve dúvida, nunca sentiu que o levassem pela mão de algum jeito que não por inteiro. E o levavam por entre os braços opostos como pais em domingo meio ensolarado no parque, como meio adultos com um acidente de estatura pequena na fila do postinho. O medo cheio de traços de mãe, sempre pronto pra niná-lo com temeridades nas noites que não dormir não assustava; o egoísmo como pai severo de coração mole se impondo nas horas que quer, e baixando a cabeça com sorriso quando não pensar é conseqüência do cheiro daqueles cabelos.

Quem diria que a idéia de não achar a outra metade por culpa de uma faxina seria mais presente que castigo? Nessas horas não tem nem Mônica, Eduardo, ou mesmo Renato pra dizer que o fim só não é mais certo por falta de óculos, por falta de aparelho auditivo. Fica pela metade mesmo meu caro, fica pela metade que é o melhor pro teu encaixe.


‘’Pode ser que o mundo gire e tudo fique pelo chão,

pode ser que não.’’

Nevilton – Do Que Não Deu Certo

sábado, 13 de fevereiro de 2010

Dor de Cabeça

Pra quem sempre viveu com medo, encarar um novo não era muita novidade. No fundo ele não sabia do tamanho da própria coragem, da força extraordinária que tinha ao chamar a próxima fobia, a próxima dor, o próximo sintoma, sem nem ao menos arrepiar-se ou sentir vontade de abraçar alguém. É engraçado pensar que a pessoa mais corajosa do mundo ainda tinha outro mundo de medos pra desbravar, apesar de que a idéia de velejar em um lugar desconhecido aumentava um pouco sua mais nova dor de cabeça.

Ele realmente não se dava conta do que era. Quando começava a pensar sobre ser o ser diferente do grupo dos seres diferentes que habitavam a Terra, achava que estava sendo arrogante demais, e voltava apenas a sentir seus velhos e novos sintomas. E como os sentiu, como tem saudade do tempo que não sentir nada não era opção ou dia bom, mas cotidiano comum com clima de fim de férias; como tem saudade de conseguir imaginar o tempo roubando a cor de seus cabelos, das escadas roubando o bem-estar de suas pernas, dos banhos em que imaginar o dia do seu casamento era muito mais importante do que o sabonete.

Aquele cara quis ser diferente, se convenceu de que era o único que fazia os prédios dançarem com um simples piscar de olhos. Agora ele tenta agüentar, tenta entender que ser único talvez seja ser sozinho nos risos e nas dores, e que se bastar nunca foi uma saída; que ter saída é tudo que falta naquelas portas que fazem o coração bater mais forte, naquelas janelas que alfinetam o peito, naquele sorriso que faz sua dor de cabeça não achar lugar pra doer.

No fundo eu acho que ele perde tempo, e que ele se ilude demais pensando que o acaso daria dois Manuel Bandeira para um só mundo. Vai escrever meu filho! Faz da tua dor de cabeça título, faz de quem lhe tira os medos dedicatória, faz das batidas sem parâmetro do seu coração o espaçamento das linhas que só vão se calar quando teus sintomas resolverem andar em outra vizinhança.

Vai viver meu filho, vai viver!


‘’Se o futuro assim permitir,

não pretendo viver em vão.’’

Seu Jorge – Life On Mars

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Seu Zé

Seu Zé, homem sensato e quase sem tato por culpa da cal virgem. Era exemplo de filho prematuro, pai desavisado, avô surpreendido, e de trabalhador brasileiro; passava o aniversário em casa e sozinho só pra deixar mais para os outros. Ô seu Zé, que saudade que você sente...

E quando muleque desapegado de sonhos, queria mesmo bater laje dia de domingo pra depois, lá no boteco da esquina, lixar os tacos e as cartas com as mãos pretas mais pálidas que assombração de dia santo. É seu Zé, você não queria muito da vida mesmo, mas via no seu pouco bem mais do que muita gente nessa favela cheia de Deus e de pecado inocente. Gostava mesmo de chamar a loira de Pretinha quando ela lavava roupa no tanque, e beijava aquele pescoço com cheiro de alvejante com tanto amor que o cinco do tal do Chanel ficava pra lá do negativo.

Já homem moço ficou doente, e lhe despertava por inteiro quando a certeza sussurrava em seu ouvido que casado ou amontoado, filho ou saudoso, não seria mais só. Naquele morro de um tal de Craque que não jogava bola, e de uma certa HIV que não se lia ‘’riv’’, seu Zé ficou justamente doente de samba; e não houve de haver e muito menos haverá de ter carnaval ou sexta-feira que lhe tire o choro do alma, que lhe seque a lágrima da voz rouca ou que lhe tire olhos do chão. É seu Zé, se o cavaco soubesse que ninguém nunca o fará chorar tanto quanto o senhor, se escondia dentro das cordas e começava a rezar pro violão não entrar em desespero.

Seu Zé, seu Zé! O que foi que a vida fez com senhor? Ou melhor, o que é que o senhor fez com a vida? Essa ingrata que mais tirou do que não deu, não merecia tua honestidade, tua inocência, tua inteligência sem diploma que vale mais do que toda uma parede de advogado velho; é seu Zé, me irrita e me faz sorrir quando penso que você não sabe de nada disso, muito menos imagina que não é preciso esperar nascer pra saber se é mesmo bacuri.

Seu Zé vai levando sem ser triste, e só não sorri porque sua mãe foi mais uma professora de vida que desaprendeu, por culpa da dura realidade, aquela matéria chamada amor. Mas ele não fica chateado, não fica triste; na vida só sente falta da alguma, porque essa foi a única coisa que ganhou sem precisar pedir. Coisa alguma, coisa alguma...

Ô seu Zé, queria mesmo era ser igual o senhor sabia? Não sorrir e não ser triste, não ter e não se dar conta, não ansiar o amanhã por só ter tempo de erguer muro e carregar cimento. É seu Zé, dentre todos que tem raiva da vida, você é o único que a deixa com raiva. E deixar assim é o que vai acontecer: a vida castigando com mais sol do que sombra, com mais fome do que comida; e o seu Zé? Seu Zé vai rindo sem sorrir, ignorando a única que eu nunca vou conseguir ignorar.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Dorme

dorme bem meu bem, esse sono que uma lua invejada por estrelas vela na eterna saudade do sol. dorme e não perceba que sonhos não são nada mais que a vida passando de olhos fechados, nada mais do que mãos gesticulando diálogos embaixo do travesseiro. dorme e sente que a metade vazia da sua cama nunca esteve tão ocupada, e que a tristeza que murcha sua voz já foi embora faz tempo. dorme meu bem, dorme e esquece tudo que um dia já te fez sorrir.

dorme pra não ter chance de entender o porque de seu cabelo ter amanhecido tão bonito, o porque do seu corpo ter acordado tão vivo. só dorme meu amor, só dorme. dorme pra correr o risco de acordar no meio da noite e sentir-se bem, sem notar que um dedo nina sua bochecha e outro contorna seu sorriso. dorme pra soltar uma risada no meio de um sonho qualquer, e fazer da noite do seu quarto manhã de verão em pleno inverno. dorme minha pequena, se ajeita nesse mundo de almofadas e dorme.

dorme pra se mexer de noite, pra bagunçar os lençóis e apagar os rastros de quem cuidou do teu sono. dorme e não note que seu cobertor lhe abraça como se alguém o tivesse vestido em você, enquanto montanhas russas na neve fazem sua noite passar depressa e despreocupada. dorme pra não ver o esforço que é tocar seu rosto e não te beijar. dorme e sente de novo a angústia de não ver o telefone tocando. dorme assim linda, descansa que amanhã sua casa vai ter música.

dorme, dorme com a mesma leveza das suas mãos. dorme que agora eu vou embora, a lua me chama e você dormindo não pode fazer nada. dorme pra não saber que o arrepio sem motivos que a manhã lhe trará é um sussurro, dizendo que você basta até mesmo de olhos fechados. dorme, dorme que eu te amo, e te ver dormindo cura a insônia dos meus problemas. dorme meu amor, dorme.