Ainda acha que nunca deveriam ter varrido seu pé. Daquele dia que não se lembra bem ao certo em diante, tudo ficou pela metade: pisava só com meia sola, enchia só meio pulmão, só meia boca era beijada. Já tinha tão bem se habituado com estas coisas que as meias verdades ditas pela boca entre aberta só levavam metade da culpa. Doía sempre pela metade em algum lado aleatório da cabeça, mas quando vinha por inteiro, tirava o sono tanto pelo caráter despedaçando, quanto pelo descostume de lidar com uma dor qualquer por inteiro. Só não saia correndo porque, de uns dias pra cá, sentia o joelho como que se dividindo em duas partes iguais.
Queria mesmo era voltar no tempo e tirar os pés do caminho daquela vassoura; quebraria com o dobro de culpa os espelhos que já havia quebrado meio sem querer, faria amor com gato preto pelas vezes em que olhava com um só olho o bixano sumir entre galhos. Se pudesse mesmo, colocaria com as mãos aqueles três palmos e meio de terra que tirou usando meias verdades ao invés de pá, da sua tão bem feita pela metade cova auto preparada. Que mundo injusto contigo, meu caro! Sem meio amigo pra dividir meia culpa, sem quase colega pra balançar a cabeça com cara de meio termo.
Por mais difícil que seja, consegue imaginar um perdão por completo daqueles que estima, se um dia assim, por acaso, resolver entregar a alma gêmea de seus silêncios não tão quietos. Vê um abraço sincero, sente a sensação da perfeição sem sombra nem sol de culpa, mas ainda fica meio assim por dentro; se imagina olhando em outros olhos os próprios erros, sente a dor da mordida se pensa estar olhando para aqueles caninos muito menos imperfeitos que ele. Talvez tudo se resuma em ser perfeito, tudo se resenhe na teoria de deixar de ser o que não somos nem em sussurro no pé do ouvido.
Do medo e do egoísmo nunca houve dúvida, nunca sentiu que o levassem pela mão de algum jeito que não por inteiro. E o levavam por entre os braços opostos como pais em domingo meio ensolarado no parque, como meio adultos com um acidente de estatura pequena na fila do postinho. O medo cheio de traços de mãe, sempre pronto pra niná-lo com temeridades nas noites que não dormir não assustava; o egoísmo como pai severo de coração mole se impondo nas horas que quer, e baixando a cabeça com sorriso quando não pensar é conseqüência do cheiro daqueles cabelos.
Quem diria que a idéia de não achar a outra metade por culpa de uma faxina seria mais presente que castigo? Nessas horas não tem nem Mônica, Eduardo, ou mesmo Renato pra dizer que o fim só não é mais certo por falta de óculos, por falta de aparelho auditivo. Fica pela metade mesmo meu caro, fica pela metade que é o melhor pro teu encaixe.
‘’Pode ser que o mundo gire e tudo fique pelo chão,
pode ser que não.’’
Nevilton – Do Que Não Deu Certo