quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Lígia

É de um tão pouco sem tamanho, meu irmão: vai em partes do que sinto ser tua cabeça, um tanto quase muito de silêncio. Acaba o expediente por hoje e deixa as coisas pelos armários daí. Esquece que usa carteira e amassa no peito da camisa o registro geral e comum, algumas notas como embrulho de poucas moedas. Sai assim, seis horas no pulso e mão esquerda no bolso da calça. Sei que não é de usar paletó e a gravata aperta o pescoço apertado do não dito, mas empresta do colega da mesa da frente, diz que tem um compromisso na outra repartição e por lá as coisas são mais sérias. Daquela moça enviesada ao canto esquerdo do teu olho, chega manso e pede um cigarro daqueles bonitos, filtro curto e corpo enxugado; pensa nela com a toalha enrolada na cabeça e nos pingos estáticos em seus ombros e orelhas, tais quais como brincos prismáticos. Depois sai, meu irmão. Abre a porta do edifício e atravessa as ruas antes de seguir pela esquerda e dobrar a primeira à direita.

A sexta casaria melhor. Tu bem sabe dos passos alegres da sexta-feira, das mãos ansiosas dos corpos por fim livres daquilo que não lhes é. Quinta é bonito, assumo. Tudo vai já tranquilo num ar de pra quem esperou a semana toda o que é mais um dia? e sinto vivermos essa busca de um fim de semana que nunca chega, que aporta já indo embora. Mas você dobrou a direita e agora afrouxa a gravata depois de pedir consentimento aos céus. É quarta e tem tudo um azul pouco anuviado. Deus parece de uma simpatia, de uma piedade para consigo como quem aceita a obra torta. Saca o paletó e engancha dois dedos por sobre o ombro direito, sendo tuas costas o guarda roupa pra tua mão de cabide. Sua calça riscada de giz, teu riso sublinhado do escárnio de quem procura propósito, de quem dança sem saber pra quais pés. Mas tem a relação do dever, a crença daquele que faz por aquele que pede: confia, meu irmão. És meu compadre já. Pensei certa vez no segundo rebento que há de vir desavisado e combinei os passos e os olhares e o silêncio ao teu nome. Quando perguntasse diríamos que foi coincidência, que teu pai não quis, filho; que teu padrinho não soube, moleque. Deixemos que encontre as próprias inquietações sem influências de nomes, sem sonhos transmutados. Caminha, homem.

Tua imaginação é andar às beiras dessa nossa rua de homens fazendo-as orlas de brisa fresca; cruza praças e largos num risco diagonal e habita na tua mente aqueles que vendem algodão doce, os casais de sacolas e beijos que tanto atrasam a condução da volta na companhia dos lábios morenos deles, dos raios de sol dos olhos delas. Saca de trás da orelha esquerda o cigarro curto da moça sempre úmida de banho. Sente aos dedos o doce das loções e perfumes que não competem ao cheiro próprio que toda pele tem, que infesta o alvo de todo toque, o refém do jogo de espelhos do elevador que se perde nas rajadas de silêncio. Risca o fósforo, meu irmão. Pensa nela e de risada transforma a fumaça do teu peito no vapor do banho lento. Segue.  Mantém impecável a camisa por de dentro da calça, o cinto centralizado que não mexe aos teus passos descontraídos no sapato bonito. Ao que calculo você já vai mais acreditado, baixa os olhos numa calma de silêncio que esquece a brasa acesa aos dedos trêmulos. Acredito que nessas horas em que se desliga a cabeça cessa o tilintar de suas falanges, o carnaval em seus ossos quieta e teus dedos ganham ar de quarta feira de cinzas. Segue, meu irmão.

Brademos em paz a fortuna dos funcionários públicos. Digo que acredito na desordem burocrática de nossos órgãos estatais, na vida de calça e camisa social dos funcionários públicos que tão bem transmutam ao trabalho a incerteza das próprias vidas. Sinto o caos das secretarias como reflexo do caos da vida de todas as Carmens e Alfredos, concursados numa segurança eterna que a morte não ameaça, que novos concursos realocam Judites e Augustos aos semblantes diferentes de vazios idênticos. Caminha, homem; seja o funcionário público de depois do expediente que segue cansado da mesmice de que tanto é refém. O trabalho é motivo pra ajeitar o despertador, razão pra continuar rumo ao fim que a gente sempre tanto sabe. Faz o que eu não posso, meu irmão.

Esquece agora daquelas de Atenas, daquelas outras que são tidas como de verdade. Chega até a praça do fim da nossa rua de homens e procura Lígia, sonha Lígia sentado no balcão da lanchonete à tua direita enquanto pede pastel e enche o copo americano à cada trago numa pressa calma. Tua pressa calma é coisa tão tua, meu irmão. Sou de me perder nessas morenas que você tanto sabe. Não sou inclinado às histerias e sigo num suportar quieto que enaltece a vida do funcionário público de horário regrado e obrigações maleáveis. Finge hoje tua vida ser assim, finge amor eterno aos olhos morenos de Lígia que daqui parece tudo justificável.

Agradeço. Larga o paletó onde bem entender e joga a gravata no bolso mais fundo que lhe oferecem as roupas. Pega tua condução e esquece disso tudo, meu compadre. Essas coisas vem do fundo da cabeça e emergem mimadas de atenção. Tenho por elas um carinho grande que um diabo de formiga. É ideia de Lígia, sabe? Nome bonito que um diabo.