Sonho com teus quinze anos desde há muito. Não me peça
descrição. Entendo que lhe relevo como assim, de meu pai, aprendi a fazer com
todas as coisas. Essas coisas mudam de um jeito que seria crueldade pedir seu
sorriso de quem quer aprender. Não sou cruel. Faço-me esquerdo em quaisquer que
sejam as condições desse mundo de destros, mas nunca fui cruel. Errei. Erro
numa inocência que acredito ser próxima daquela que invade teus olhos de quinze
anos, Francisco; a íris num castanho negro que se camufla na pupila linda do
teu silêncio. Chegou refém de minhas tortuosidades, e acima do que julgo amor e
incondicional, é tudo meu pedido ao teu perdão; de quem não sabe endireitar o
reflexo que hei de ser à tua alma em folha branca nesse mundo cinza de fumaça. Você
não tem culpa das vezes em que tudo vai trôpego, e deixo as latas na pia vazias
do que sonhei ser um dia contigo, Francisco; por conta do vazio que não tem
jeito nem cinzeiro que aconchegue as cinzas dessas fumaças um dia lindas, lindas.
Parecem pernas de bailarina, me disseram um dia. Deixo a mão trêmula longe de
minhas ansiedades, e a fumaça ganha plenitude. Tudo um dia é lindo, Francisco.
Ainda que a maquiagem borre desses nossos verões intensos, que o travesseiro
não trate nossas máscaras com o carinho que lhes temos, tudo um dia é lindo de
um jeito que a alegria já faz doer a falta que faz. E parece num vazio que de
um repente só dá vontade de gritar my
sweet Lord i really want to see You really want to be with You e ninguém
entende nada Ele não entende nada e você termina o filme e pergunta de um jeito
que eu queria te abraçar e dizer que tá tudo bem ele vai voltar o nome daquele
violãozinho pequenininho é ukulêle eu ainda não sei dizer certo pode dizer sem
acento aquele homem volta sim a mulher dele chorava de cisco no olho dizem que
naquela época do ano as pétalas se desfazem em ciscos e todo mundo chora dos
dedos das flores que entram no peito digo nos olhos ele vai voltar sim era só
aquela brincadeira de esconder que te falei as pessoas voltam deixa eu te
abraçar não é nada acho que era alergia teu perfume novo é de perfeição me
deixa perto mais um pouco. Teus olhos são lindos, Francisco. Hoje a gente vai
dar uma volta no fuca. Quando eu tinha menos que teus quinze anos, andava no
fuca de um primo lá do Espírito Santo. Minha mãe não gostava. Pedia sempre pra
ele andar devagar, e eu só sentia o cheiro da gasolina e o topo dos prédios;
meus olhos que não viam nada presos na minha cabeça presa no meu corpo ainda
pequeno, refém do painel alto do fusca amarelo de meu primo capixaba. Mas eu
juro que te conto tudo que passar pela gente, e dirijo como se minha mãe
pedisse pra que eu fosse devagar pra te dizer o que acontece em volta, o
movimento dos bares, os motoristas que não ligam a seta e deixam todo mundo
irritado nesse mundo que é bravo, que avança na gente igual cachorro não quisto.
Tenho um cachorro, Francisco. Sonhei esse cachorro antes de sentir falta dos
teus quinze anos. Chamo de Cachorro mesmo, e foi o melhor amigo que tive na
vida. Tem o tio da barba, tem o tio do Atlético; mas meu melhor amigo sempre
foi Cachorro. Caráter exemplar, cheiro de sonho. Deixou seus pelos por tudo que
imaginei, e ainda agora bato a camisa dos vestígios de seu peito arfante, seu focinho
gelado de amor. Você brincou com ele e talvez nem lembre. Um dia te falei que tinha ido ajudar
crianças que tinham medo de escuro, expliquei aquela coisa das pétalas e dos
ciscos e te abracei como se fosse um domingo de sol às seis da tarde. Fez cara
feia, mas trouxe o sorvete e o desenho tinha começado. Você e seus lábios
contraídos, Francisco. Doeu mais que a mentira. Logo esqueceu com a cabeça
perfeita dedicada aos brinquedos de incontáveis possibilidades. Chorei a falta
de Cachorro entre suas risadas, o gosto de morango e chocolate e os pelos na
minha camisa. Eu tive tanto medo do escuro, Francisco. Quantas vezes menti
cuidar teu sonho, menti trocar o lado dos meus discos teus que te dormiam por
que o silêncio me dói demais. Ela? Ela existe sim. Foi linda enquanto pude, e
tua orelha direita tem o cheiro do ombro esquerdo que tanto confortava minha
testa. Perdem os olhos da mesma forma, e às vezes, só às vezes, sumo nesse
descaminho por não sei quanto tempo. Ela também foi embora, Francisco. Nessas
coisas das coisas irem, acabo pensando se quem anda não sou eu. Perdoa. A gente
compra sorvete só se você cantar. Eu sei que você já tem quinze anos, mas é
Legião Urbana e isso não tem idade, sorvete não tem idade. Por quê você não me deixa em paz?, você diz e me grito isso há tanto tempo que não te respondo num sorriso
que me solta o ar. Queria fumar um cigarro contigo, ouvir das tuas desilusões.
De mim, só aprendeu desilusões. Sei que na terceira lata já disse minha vida
toda, mas acredito que você goste. No teu copo é só refrigerante, mas teu
coração é esse eu torto que te ama. Meu perdão. Meu muito obrigado. Vou fingir
que você já tem dezoito. Tenta não pensar em nada. O gosto é ruim, eu sei. Meu
pai me deixava molhar o dedo no colarinho de seus copos na Fruteira; mas é tudo
sonho, e todo sonho é amargo assim. Desses
vinte anos nenhum foi feito pra mim, e eu já sinto falta tua, Francisco.
Reclamava e só sorria no teu dormir manso. Você nunca soube como são lindos seus
olhos enquanto dorme. Ela. Alonga Francisco, que a coluna entorta sem avisar.
Tá com o corpo bonito. Homem já criança. Elas olham, Francisco, e hoje uma
entrou tão linda na mercearia, escolhendo as batatas como se fosse a esposa
assumida de Deus. E sonhei e pensei em tanta coisa pra contar que senti tua
falta como senti os sapatos arroxeados dela pisando minhas saudades num jeito
que só teu passeio comigo no bairro iria entender. Torce pra chover. Calça o
chinelo e torce pra chover. Se perguntarem, eles espirram água na bermuda e
andar descalço acaba mais fácil. A gente vai procurando pelas poças, Francisco.
A chuva morta nas poças num morno macio, o cabelo que vira nuvem e vai
empoçando o rosto num sorriso nosso de quem puxa o galho da árvore em cima do
amigo depois da chuva. Você ri por entre os dentes brancos, a gente molha a
sala, não tem problema, pizza?, você escolhe. Deixei o computador e a televisão
como quadros nas paredes de livros. Meu orgulho secreto, Francisco. Não tenho
muito que dizer. Um ou outro faz sentido, desperta a vontade insaciável da
primeira tragada no cigarro. Márquez faz sonhar e tá ali na estante. Sei que o
pó não mente, e a mancha nos teus dedos de um ou outro tem de aparecer logo que
me esquecer da vida, a estante improvisada com as lombadas sujas do teu cinismo
inocente. No mais são os nomes, os prêmios, o assunto pra puxar entre a segunda
e terceira cerveja. Um dia você vai sozinho. Aos sábados à tarde, enquanto suas
aulas de violão, hei de sonhar contigo lendo, Francisco; uma quinta de chuva na
poltrona de baixo da janela, você achando que o Coronel tinha que vender o
galo, que o Benjy parece ter os olhos tão bonitos. Deixa pra lá. Hoje você
dirige e finge que minha mãe pediu pra ir devagar. Dói muito, dói muito te ter
longe assim. Dorme nesse lugar teu que o banco direito do fuca já tem tua
forma. Perdoa. Obrigado. Não faz tanto, mas é que você não chega. O quanto meus
pais reclamaram de minhas demoras daria um silêncio de boas horas no bar da
Visconde. Você me dói do jeito mais lindo que pude ser. Quero te mostrar as
coisas que aprendo, mas a cerveja crava à cama que não tem saída. Conheço seu
jeito. É um caminho sem volta e te amo tanto que é uma ida sem razão, entrega
consciente. Francisco, meu filho.