sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Maracujá

Do livro que ganhei em sonho, a capa vermelha escurecida no dourado velho das letras do título: um dourado quase sem o místico que todo dourado ofusca em olhos e prende a atenção da criança que não sabe o nome das cores e só respeita numa veneração própria do ser humano, antes mesmo do ouro, das embalagens, antes mesmo dos detalhes das roupas de Deus. Olhava o autor, lia e relia por saber que quando me acordasse seria a sensação de que alguma coisa foi embora e só. E acordei rindo daquele que dormi pra acordar, o nome claro em três sentenças separadas por vírgulas nas letras lindas que nunca pude sonhar: lembrei-me do detalhe mais importante do sonho que é o detalhe mais importante da vida. E nessas certezas, sorrindo, fechei os olhos. Penso agora nos detalhes já dias depois, de mim sentado em um banco de praça longe desta e ela vestida de seus cabelos dizendo que sabe, que a dedicatória é de entender pra quando eu acabar, o sorriso dourado em segredos e no vermelho da capa que haveria de ter lido se houvesse dormido pra sempre.

Perdi as letras da capa, e da dedicatória tenho à minha incerteza sua posição central logo na terceira página: uma linha inteira e outra pela metade em lápis. Sentado nessas mesas de fundo de casa de praia, descanso o cigarro no cinzeiro. E ele parece durar tanto, tanto. Tem aquele rapaz que me disse do soul ser feito no ritmo de um cigarro distraído. Quando se calam os pianos e trompetes e as vozes rasgadas, eu já posso levantar sem nenhuma tragada suspensa: sem nada por fazer que não me lembrar dele e pensar que nessas músicas tenho a única certeza da vida. A criança que gosta de refrigerante vermelho pula na piscina, e tem cinco, talvez dez segundos de liberdade antes de me perceber por de trás da rede, sentado à sombra do telhado e do cinzeiro enfumaçado. Não sorrio e o rosto vai leve. A criança entende, e já me faz de lado antes mesmo de me dar a nuca. Fecho o caderno sem esperança de lembrar o nome do livro. Talvez tenha sonhado isso tudo meses atrás, e o calor e a maresia tenham bagunçado meu calendário de lembranças. Talvez seja isso. Ano que vem as coisas se ajeitam. Teria oito, quem sabe nove horas antes que precisasse me tornar outro homem, abraçar os donos da casa, desejar prosperidade a todos. Um amigo me disse pra não mais pestanejar nesse novo ano. Penso duas vezes e sorrio.

Arrepiei de minha família. Cada qual pra seu lado, qualquer lado nos sendo como se juntos nessas coisas que não existem e torno reais como se de fato fossem: vivo em fantasias. Já pensei neles, jantei com os donos da casa da praia e vou andando pra queima de fogos. Alguém me disse com um carinho especial sobre os estilhaços de luz ou explosões de anjos. Não me lembro, e agora já não soa tão carinhoso assim. Vou calmo. Chove calmo. Dizem que aqui não existe fim de ano sem chuva. Falta um minuto, e ainda alguns passos por vencer. A dessincronia dos fins de ano, alguns pedaços do céu já em chamas. Lembro-me de mim criança, com poucos passos pra vencer até a quadra de futebol e as pernas que não me deixavam andar: corria como se a chuva grande já fosse madura no dia que minha mãe relacionava o meu chegar molhado com seus tapas de amor. E disso, ou de qualquer outra coisa, corro. Meia quadra de desespero infantil, os outros nove garotos esperando, tira a camisa, hoje você é do time deles, pode começar. E o mar vai aparecendo, escondido por entre tanta gente de branco, nucas olhando pro chão, rostos iluminados da pólvora em vermelho, azul; da pólvora em dourado que tanto chama minha atenção nesse céu de capa vermelha.

Chego atrasado. Perdi os dois primeiros minutos do ano correndo. Perdi o último minuto do ano passado, que tanto ainda me é, pensando que diabos levava escrito aquela capa. Tenho vontade de voltar pra casa, revirar a estante, provar a confusão entre o que sonho e o que vivo com a capa vermelha escondida entre minhas poucas pilhas de livros; descer satisfeito, fumar um cigarro ao lado da janela do vizinho que logo chega pleno e pergunta dos meus pais que vão viajando, voltam mais pro meio da semana. Pestanejo. Que prazer existe em pestanejar, poder viver quaisquer que sejam as vontades em sonho.

Ouvi do maracujá, na propriedade esquecida tida em suas sementes de vidro que alegra a vida. Tem o liso da casca, a calma em sua fragrância quase ácida em doce amarelo. Talvez seja isso e volto pra casa na primeira manhã do ano. As coisas ainda tem qualquer dourado de inédito. Visto a bermuda, coloco o caderno no bolso e vou dormir nos estalidos das sementes que como por esses sonhos de felicidade.

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Francisco

Sonho com teus quinze anos desde há muito. Não me peça descrição. Entendo que lhe relevo como assim, de meu pai, aprendi a fazer com todas as coisas. Essas coisas mudam de um jeito que seria crueldade pedir seu sorriso de quem quer aprender. Não sou cruel. Faço-me esquerdo em quaisquer que sejam as condições desse mundo de destros, mas nunca fui cruel. Errei. Erro numa inocência que acredito ser próxima daquela que invade teus olhos de quinze anos, Francisco; a íris num castanho negro que se camufla na pupila linda do teu silêncio. Chegou refém de minhas tortuosidades, e acima do que julgo amor e incondicional, é tudo meu pedido ao teu perdão; de quem não sabe endireitar o reflexo que hei de ser à tua alma em folha branca nesse mundo cinza de fumaça. Você não tem culpa das vezes em que tudo vai trôpego, e deixo as latas na pia vazias do que sonhei ser um dia contigo, Francisco; por conta do vazio que não tem jeito nem cinzeiro que aconchegue as cinzas dessas fumaças um dia lindas, lindas. Parecem pernas de bailarina, me disseram um dia. Deixo a mão trêmula longe de minhas ansiedades, e a fumaça ganha plenitude. Tudo um dia é lindo, Francisco. Ainda que a maquiagem borre desses nossos verões intensos, que o travesseiro não trate nossas máscaras com o carinho que lhes temos, tudo um dia é lindo de um jeito que a alegria já faz doer a falta que faz. E parece num vazio que de um repente só dá vontade de gritar my sweet Lord i really want to see You really want to be with You ­e ninguém entende nada Ele não entende nada e você termina o filme e pergunta de um jeito que eu queria te abraçar e dizer que tá tudo bem ele vai voltar o nome daquele violãozinho pequenininho é ukulêle eu ainda não sei dizer certo pode dizer sem acento aquele homem volta sim a mulher dele chorava de cisco no olho dizem que naquela época do ano as pétalas se desfazem em ciscos e todo mundo chora dos dedos das flores que entram no peito digo nos olhos ele vai voltar sim era só aquela brincadeira de esconder que te falei as pessoas voltam deixa eu te abraçar não é nada acho que era alergia teu perfume novo é de perfeição me deixa perto mais um pouco. Teus olhos são lindos, Francisco. Hoje a gente vai dar uma volta no fuca. Quando eu tinha menos que teus quinze anos, andava no fuca de um primo lá do Espírito Santo. Minha mãe não gostava. Pedia sempre pra ele andar devagar, e eu só sentia o cheiro da gasolina e o topo dos prédios; meus olhos que não viam nada presos na minha cabeça presa no meu corpo ainda pequeno, refém do painel alto do fusca amarelo de meu primo capixaba. Mas eu juro que te conto tudo que passar pela gente, e dirijo como se minha mãe pedisse pra que eu fosse devagar pra te dizer o que acontece em volta, o movimento dos bares, os motoristas que não ligam a seta e deixam todo mundo irritado nesse mundo que é bravo, que avança na gente igual cachorro não quisto. Tenho um cachorro, Francisco. Sonhei esse cachorro antes de sentir falta dos teus quinze anos. Chamo de Cachorro mesmo, e foi o melhor amigo que tive na vida. Tem o tio da barba, tem o tio do Atlético; mas meu melhor amigo sempre foi Cachorro. Caráter exemplar, cheiro de sonho. Deixou seus pelos por tudo que imaginei, e ainda agora bato a camisa dos vestígios de seu peito arfante, seu focinho gelado de amor. Você brincou com ele e talvez nem lembre. Um dia te falei que tinha ido ajudar crianças que tinham medo de escuro, expliquei aquela coisa das pétalas e dos ciscos e te abracei como se fosse um domingo de sol às seis da tarde. Fez cara feia, mas trouxe o sorvete e o desenho tinha começado. Você e seus lábios contraídos, Francisco. Doeu mais que a mentira. Logo esqueceu com a cabeça perfeita dedicada aos brinquedos de incontáveis possibilidades. Chorei a falta de Cachorro entre suas risadas, o gosto de morango e chocolate e os pelos na minha camisa. Eu tive tanto medo do escuro, Francisco. Quantas vezes menti cuidar teu sonho, menti trocar o lado dos meus discos teus que te dormiam por que o silêncio me dói demais. Ela? Ela existe sim. Foi linda enquanto pude, e tua orelha direita tem o cheiro do ombro esquerdo que tanto confortava minha testa. Perdem os olhos da mesma forma, e às vezes, só às vezes, sumo nesse descaminho por não sei quanto tempo. Ela também foi embora, Francisco. Nessas coisas das coisas irem, acabo pensando se quem anda não sou eu. Perdoa. A gente compra sorvete só se você cantar. Eu sei que você já tem quinze anos, mas é Legião Urbana e isso não tem idade, sorvete não tem idade. Por quê você não me deixa em paz?, você diz e me grito isso há tanto tempo que não te respondo num sorriso que me solta o ar. Queria fumar um cigarro contigo, ouvir das tuas desilusões. De mim, só aprendeu desilusões. Sei que na terceira lata já disse minha vida toda, mas acredito que você goste. No teu copo é só refrigerante, mas teu coração é esse eu torto que te ama. Meu perdão. Meu muito obrigado. Vou fingir que você já tem dezoito. Tenta não pensar em nada. O gosto é ruim, eu sei. Meu pai me deixava molhar o dedo no colarinho de seus copos na Fruteira; mas é tudo sonho, e todo sonho é amargo assim. Desses vinte anos nenhum foi feito pra mim, e eu já sinto falta tua, Francisco. Reclamava e só sorria no teu dormir manso. Você nunca soube como são lindos seus olhos enquanto dorme. Ela. Alonga Francisco, que a coluna entorta sem avisar. Tá com o corpo bonito. Homem já criança. Elas olham, Francisco, e hoje uma entrou tão linda na mercearia, escolhendo as batatas como se fosse a esposa assumida de Deus. E sonhei e pensei em tanta coisa pra contar que senti tua falta como senti os sapatos arroxeados dela pisando minhas saudades num jeito que só teu passeio comigo no bairro iria entender. Torce pra chover. Calça o chinelo e torce pra chover. Se perguntarem, eles espirram água na bermuda e andar descalço acaba mais fácil. A gente vai procurando pelas poças, Francisco. A chuva morta nas poças num morno macio, o cabelo que vira nuvem e vai empoçando o rosto num sorriso nosso de quem puxa o galho da árvore em cima do amigo depois da chuva. Você ri por entre os dentes brancos, a gente molha a sala, não tem problema, pizza?, você escolhe. Deixei o computador e a televisão como quadros nas paredes de livros. Meu orgulho secreto, Francisco. Não tenho muito que dizer. Um ou outro faz sentido, desperta a vontade insaciável da primeira tragada no cigarro. Márquez faz sonhar e tá ali na estante. Sei que o pó não mente, e a mancha nos teus dedos de um ou outro tem de aparecer logo que me esquecer da vida, a estante improvisada com as lombadas sujas do teu cinismo inocente. No mais são os nomes, os prêmios, o assunto pra puxar entre a segunda e terceira cerveja. Um dia você vai sozinho. Aos sábados à tarde, enquanto suas aulas de violão, hei de sonhar contigo lendo, Francisco; uma quinta de chuva na poltrona de baixo da janela, você achando que o Coronel tinha que vender o galo, que o Benjy parece ter os olhos tão bonitos. Deixa pra lá. Hoje você dirige e finge que minha mãe pediu pra ir devagar. Dói muito, dói muito te ter longe assim. Dorme nesse lugar teu que o banco direito do fuca já tem tua forma. Perdoa. Obrigado. Não faz tanto, mas é que você não chega. O quanto meus pais reclamaram de minhas demoras daria um silêncio de boas horas no bar da Visconde. Você me dói do jeito mais lindo que pude ser. Quero te mostrar as coisas que aprendo, mas a cerveja crava à cama que não tem saída. Conheço seu jeito. É um caminho sem volta e te amo tanto que é uma ida sem razão, entrega consciente. Francisco, meu filho.