Do livro que ganhei em sonho, a capa vermelha escurecida no
dourado velho das letras do título: um dourado quase sem o místico que todo
dourado ofusca em olhos e prende a atenção da criança que não sabe o nome das
cores e só respeita numa veneração própria do ser humano, antes mesmo do ouro,
das embalagens, antes mesmo dos detalhes das roupas de Deus. Olhava o autor,
lia e relia por saber que quando me acordasse seria a sensação de que alguma
coisa foi embora e só. E acordei rindo daquele que dormi pra acordar, o nome
claro em três sentenças separadas por vírgulas nas letras lindas que nunca pude
sonhar: lembrei-me do detalhe mais importante do sonho que é o detalhe mais importante
da vida. E nessas certezas, sorrindo, fechei os olhos. Penso agora nos detalhes
já dias depois, de mim sentado em um banco de praça longe desta e ela vestida
de seus cabelos dizendo que sabe, que a dedicatória é de entender pra quando eu
acabar, o sorriso dourado em segredos e no vermelho da capa que haveria de ter
lido se houvesse dormido pra sempre.
Perdi as letras da capa, e da dedicatória tenho à minha
incerteza sua posição central logo na terceira página: uma linha inteira e
outra pela metade em lápis. Sentado nessas mesas de fundo de casa de praia,
descanso o cigarro no cinzeiro. E ele parece durar tanto, tanto. Tem aquele
rapaz que me disse do soul ser feito
no ritmo de um cigarro distraído. Quando se calam os pianos e trompetes e as
vozes rasgadas, eu já posso levantar sem nenhuma tragada suspensa: sem nada por
fazer que não me lembrar dele e pensar que nessas músicas tenho a única certeza
da vida. A criança que gosta de refrigerante vermelho pula na piscina, e tem
cinco, talvez dez segundos de liberdade antes de me perceber por de trás da
rede, sentado à sombra do telhado e do cinzeiro enfumaçado. Não sorrio e o rosto
vai leve. A criança entende, e já me faz de lado antes mesmo de me dar a nuca.
Fecho o caderno sem esperança de lembrar o nome do livro. Talvez tenha sonhado
isso tudo meses atrás, e o calor e a maresia tenham bagunçado meu calendário de
lembranças. Talvez seja isso. Ano que vem as coisas se ajeitam. Teria oito, quem
sabe nove horas antes que precisasse me tornar outro homem, abraçar os donos da
casa, desejar prosperidade a todos. Um amigo me disse pra não mais pestanejar
nesse novo ano. Penso duas vezes e sorrio.
Arrepiei de minha família. Cada qual pra seu lado, qualquer lado
nos sendo como se juntos nessas coisas que não existem e torno reais como se de
fato fossem: vivo em fantasias. Já pensei neles, jantei com os donos da casa da
praia e vou andando pra queima de fogos. Alguém me disse com um carinho
especial sobre os estilhaços de luz ou explosões de anjos. Não me lembro, e
agora já não soa tão carinhoso assim. Vou calmo. Chove calmo. Dizem que aqui
não existe fim de ano sem chuva. Falta um minuto, e ainda alguns passos por
vencer. A dessincronia dos fins de ano, alguns pedaços do céu já em chamas. Lembro-me
de mim criança, com poucos passos pra vencer até a quadra de futebol e as
pernas que não me deixavam andar: corria como se a chuva grande já fosse madura
no dia que minha mãe relacionava o meu chegar molhado com seus tapas de amor. E
disso, ou de qualquer outra coisa, corro. Meia quadra de desespero infantil, os
outros nove garotos esperando, tira a camisa, hoje você é do time deles, pode
começar. E o mar vai aparecendo, escondido por entre tanta gente de branco,
nucas olhando pro chão, rostos iluminados da pólvora em vermelho, azul; da
pólvora em dourado que tanto chama minha atenção nesse céu de capa vermelha.
Chego atrasado. Perdi os dois primeiros minutos do ano
correndo. Perdi o último minuto do ano passado, que tanto ainda me é, pensando
que diabos levava escrito aquela capa. Tenho vontade de voltar pra casa,
revirar a estante, provar a confusão entre o que sonho e o que vivo com a capa
vermelha escondida entre minhas poucas pilhas de livros; descer satisfeito,
fumar um cigarro ao lado da janela do vizinho que logo chega pleno e pergunta
dos meus pais que vão viajando, voltam mais pro meio da semana. Pestanejo. Que
prazer existe em pestanejar, poder viver quaisquer que sejam as vontades em
sonho.
Ouvi do maracujá, na propriedade esquecida tida em suas
sementes de vidro que alegra a vida. Tem o liso da casca, a calma em sua
fragrância quase ácida em doce amarelo. Talvez seja isso e volto pra casa na
primeira manhã do ano. As coisas ainda tem qualquer dourado de inédito. Visto a
bermuda, coloco o caderno no bolso e vou dormir nos estalidos das sementes que como por esses sonhos de felicidade.