Refiz o caminho e já não pude perceber as pessoas. A coluna
reclama as horas mal sentadas pelo meu andar lento, julga o cabelo por cortar
num sobrepeso ainda meu e de minhas ideias na cabeça que tanto bate e sente
como um peito sem calma. Incomoda o silêncio de não ter por certo à quais olhos
entregar assentido o meu cumprimento de quem muito viveu em Cachoeiro. Quando dessas ruas eu era parte do
cenário foi sempre fim de tarde. Caso apertasse o passo, adiantasse o
expediente ou dissesse precisar pegar o ônibus que passa antes e nunca vi,
teria a certeza de encontrar a calma da moça da lotérica por seu ombro decorado
em bolsas coloridas; o desenrolar da porta dos mecânicos já tão senhores que o
ranger das engrenagens confunde em seus braços e testas de graxa velha e óleo
seco. Pensava em meu pai. Agora em silêncio refiz o caminho mais sozinho do que
nunca, perdido pelas ruas que tão bem desconheço as pessoas, os nomes nas
placas que talvez sejam filhos dos pais que por outrora atravessei e dobrei e tive
por certo aos pés de minha calma.
Vou estranho como o sóbrio nos carnavais de Antonina. Na
primeira esquina o operário sorri da folga inesperada, sentado na grama e muito
mais Zé que todos os reis que lhe passam parados no trânsito, coroados em
conforto e metal e fumaça. Ostenta os dedos dos pés livres das botas e
entregues aos carinhos dos dedos das mãos, e não sei dizer como desgostei de meus
chinelos, invejei sua certeza de saber que não são seis horas e que por essa
tarde toda o mundo é seu. Passo e entendo querer ser Rubem Braga. Tenho nas
lembranças a forma de viver as coisas que não vi por andar escrevendo,
inocentes mãos à máquina lenta de meu peito sem tinta.
Da minha cabeça pesada faço alerta aos pés, e pelos
mal quistos chinelos vou até que chegue ao cabeleireiro da Marechal. Era perto
de meu trabalho, e agora entendo viver à mercê daquilo que vi e não soube
por andar escrevendo com os olhos no chão. Era de Rondônia, e na primeira vez que sentei à sua
cadeira perguntou mesmo se eu queria raspar numa inocência que me fez filho aos
olhos de mãe. Pela máquina três me contava que a vida aqui é cara, o ponto é
bom e que tudo deu dez reais. Hoje a porta vai fechada. Desço a rua sabendo que
não volta, e talvez as coisas por lá tenham dado mesmo certo. No bar da
esquina, lotado do programa esportivo da televisão, o dono não se levanta e diz
que encontro outro na quadra de baixo. Ando três até que chegue ao salão
simples que não pede agendamento de hora com a manicure em seus cheiros
diferentes pelos braços de tantos cremes. Suas unhas vão por fazer. A cabelereira, gorda e sentada à porta sob o ipê já sem cor, levanta de surpresa e diz que tudo é
doze, que tudo bem e me mostra a segunda cadeira das únicas duas que inundam o
cômodo pequeno e digno. Lembro de meu amigo de Rondônia e dói. Pelo espelho
respondo às avessas pra que seu reflexo entenda direito o que é meu esquerdo, e
por fim sinto não dizer nada. Tem o carinho da navalha ao meu redemoinho que,
segundo ela, é bem no pé do cabelo. Acho entender assim os passos daquilo que
penso, e saio com os perfumes da manicure impregnados por meus dedos de
cigarros.
Sinto ter traído a simpatia do colega de Rondônia. Falou que
as coisas lá são calmas, que a falta da família por aqui só chega à noite e nos
dias que as pessoas acordam satisfeitas com o cabelo pela hora de cortar e suas
cadeiras não abrigam ninguém. É assim mesmo, a clientela é fixa e o movimento
não depende nem de chuva e nem da lua: seus horários à mercê da pressa dos cabelos
que o humor estima quando bem entende. Peço desculpas e trocaria dois ou três
dias de minha vida pra que já fossem seis horas.
Tomo o caminho pra casa pelas ruas que agora vão em obras. A
farmácia continua, o ponto de ônibus tem a mesma sombra de sempre que parece derrubar
da árvore uma ou outra menina apressada em passos de quinta feira. Amanhã logo
chega, tenho vontade de falar, e elas me atravessam e o pedreiro não sorri enquanto
ajeita o boné cinza em seu corpo cinza. Escancaram as portas e derrubam paredes
do que antes era uma casa pra sempre fechada, daquelas casas pra sempre fechadas que toda rua digna tem escondida. Creio que os pedreiros sabem de
sua culpa, e os semblantes sérios me dizem que o patrão mandou, que cada
marretada nesses tijolos simpáticos derruba tanto, tanto que você nem sabe. Por aqui havia outra
casa que me lembrava chalés em países de neve. As cortinas sempre fechadas,
cadeado no portão e raras vezes, à varanda, uma senhora e seu rosto de olhar
trancado, envolta de gatos como que acorrentados pela sombra que dali espantava
o sol. Passo e vejo os dedos de um senhor esforçados pelos cadeados do portão,
e a varanda hoje é vazia da senhora e de seus olhos e seus gatos. Não há mais
sombra, e sinto afeto por ele com os dedos ainda enroscados em ferros.
O ônibus não demora. O motorista tem o rosto úmido, e parece ser da mesma temperatura do metal que guia e lhe é. A cobradora vai impassível,
sentada no banco alto que nos diminui tanto, de tantos jeitos que Deus parece mesmo
existir. Desço e não sei das horas pelas ruas daqui que vão desertas do fim de ano. Nossas vidas feitas aqui, nossos peitos esburacados enganados das
fantasias daqui, e nos fins de ano daqui se esquecem. Sinto entender o silêncio
até mesmo das calçadas, e entro em meu condomínio de prédios que tanto parecem
feitos de vidro. Passo pela quadra de futebol, e a mãe assiste os dois filhos chutarem a bola
pequena. O mais novo se concentra em cada chute que parece mostrar o caráter
desde cedo impassível, enquanto o outro devolve e finge o esforço na paciência
e proteção existente apenas nos irmãos enquanto crianças. Penso no meu e sinto falta da sua voz
dizendo que eu não podia, que a mãe pediu pra ficar aqui, que depois ele me
deixa dormir na cama de cima. Nunca deixou, e seja talvez esse um dos maiores
orgulhos que tenho dele.
Sento às churrasqueiras daqui, sempre desocupadas de festas,
repletas de papéis e dos cigarros mal apagados que me esqueço de jogar fora. O
calor aqui hoje vai alto. Disse na televisão que uma capital do nordeste teve a
máxima menor que a nossa. As pessoas que ainda não ignoraram a cidade andam
aéreas, e talvez tenham até colocado as malas nos carros e trancado as portas
de casa, mas o calor lhes colocou num transe que só passa quando cair enfim
essa chuva eternamente suspensa. É ela que abafa, que me pesa a cabeça agora
vazia de cabelos e ainda tão pesada do que tanto sei não saber. Sentado aqui é
difícil não ser envolto na melancolia das tardes de meio de semana: os
passarinhos que parecem cada vez mais perto de mim, curiosos de minha coluna
curvada sob papéis que nada lhes são; as crianças e suas bicicletas e bolas num
ritmo que foi meu, que não deixei que fosse embora, que busco no silêncio do
que lembro e não acho cor e não acho mais sentido. Tudo sempre tão longe, e hoje,
o tudo aqui é vazio. Sinto vontade de ligar a algum conhecido na praia e
perguntar se viu algum melancólico andando com os pés na espuma do mar, mas
desisto por não pensar em ninguém que consiga procurar como eu haveria de fazer. Sei
que ela foi andar pelos lados de lá, silenciar os daqui pelos lados de lá.
Não me sobrou nada e fico satisfeito. Caem
os primeiros pingos desse céu cimentado em nuvens. Largo o Rubem Braga já
amarelado sob a mesa, o maço pela metade que deixa o isqueiro à salvo de extravios. Hoje ninguém mexe em nada. Descalço os chinelos
e lhes sinto afeto ao sair do telhado de madeira pra entregar o rosto ao céu de chuva: é de um carinho morno e pausado. Sento à grama, e sorrindo dou aos pés os dedos de
minha mão. Desaba do céu o peso de minha cabeça.