sábado, 28 de dezembro de 2013

A Sertaneja

Refiz o caminho e já não pude perceber as pessoas. A coluna reclama as horas mal sentadas pelo meu andar lento, julga o cabelo por cortar num sobrepeso ainda meu e de minhas ideias na cabeça que tanto bate e sente como um peito sem calma. Incomoda o silêncio de não ter por certo à quais olhos entregar assentido o meu cumprimento de quem muito viveu em Cachoeiro. Quando dessas ruas eu era parte do cenário foi sempre fim de tarde. Caso apertasse o passo, adiantasse o expediente ou dissesse precisar pegar o ônibus que passa antes e nunca vi, teria a certeza de encontrar a calma da moça da lotérica por seu ombro decorado em bolsas coloridas; o desenrolar da porta dos mecânicos já tão senhores que o ranger das engrenagens confunde em seus braços e testas de graxa velha e óleo seco. Pensava em meu pai. Agora em silêncio refiz o caminho mais sozinho do que nunca, perdido pelas ruas que tão bem desconheço as pessoas, os nomes nas placas que talvez sejam filhos dos pais que por outrora atravessei e dobrei e tive por certo aos pés de minha calma.

Vou estranho como o sóbrio nos carnavais de Antonina. Na primeira esquina o operário sorri da folga inesperada, sentado na grama e muito mais Zé que todos os reis que lhe passam parados no trânsito, coroados em conforto e metal e fumaça. Ostenta os dedos dos pés livres das botas e entregues aos carinhos dos dedos das mãos, e não sei dizer como desgostei de meus chinelos, invejei sua certeza de saber que não são seis horas e que por essa tarde toda o mundo é seu. Passo e entendo querer ser Rubem Braga. Tenho nas lembranças a forma de viver as coisas que não vi por andar escrevendo, inocentes mãos à máquina lenta de meu peito sem tinta.

Da minha cabeça pesada faço alerta aos pés, e pelos mal quistos chinelos vou até que chegue ao cabeleireiro da Marechal. Era perto de meu trabalho, e agora entendo viver à mercê daquilo que vi e não soube por andar escrevendo com os olhos no chão. Era de Rondônia, e na primeira vez que sentei à sua cadeira perguntou mesmo se eu queria raspar numa inocência que me fez filho aos olhos de mãe. Pela máquina três me contava que a vida aqui é cara, o ponto é bom e que tudo deu dez reais. Hoje a porta vai fechada. Desço a rua sabendo que não volta, e talvez as coisas por lá tenham dado mesmo certo. No bar da esquina, lotado do programa esportivo da televisão, o dono não se levanta e diz que encontro outro na quadra de baixo. Ando três até que chegue ao salão simples que não pede agendamento de hora com a manicure em seus cheiros diferentes pelos braços de tantos cremes. Suas unhas vão por fazer. A cabelereira, gorda e sentada à porta sob o ipê já sem cor, levanta de surpresa e diz que tudo é doze, que tudo bem e me mostra a segunda cadeira das únicas duas que inundam o cômodo pequeno e digno. Lembro de meu amigo de Rondônia e dói. Pelo espelho respondo às avessas pra que seu reflexo entenda direito o que é meu esquerdo, e por fim sinto não dizer nada. Tem o carinho da navalha ao meu redemoinho que, segundo ela, é bem no pé do cabelo. Acho entender assim os passos daquilo que penso, e saio com os perfumes da manicure impregnados por meus dedos de cigarros.

Sinto ter traído a simpatia do colega de Rondônia. Falou que as coisas lá são calmas, que a falta da família por aqui só chega à noite e nos dias que as pessoas acordam satisfeitas com o cabelo pela hora de cortar e suas cadeiras não abrigam ninguém. É assim mesmo, a clientela é fixa e o movimento não depende nem de chuva e nem da lua: seus horários à mercê da pressa dos cabelos que o humor estima quando bem entende. Peço desculpas e trocaria dois ou três dias de minha vida pra que já fossem seis horas.

Tomo o caminho pra casa pelas ruas que agora vão em obras. A farmácia continua, o ponto de ônibus tem a mesma sombra de sempre que parece derrubar da árvore uma ou outra menina apressada em passos de quinta feira. Amanhã logo chega, tenho vontade de falar, e elas me atravessam e o pedreiro não sorri enquanto ajeita o boné cinza em seu corpo cinza. Escancaram as portas e derrubam paredes do que antes era uma casa pra sempre fechada, daquelas casas pra sempre fechadas que toda rua digna tem escondida. Creio que os pedreiros sabem de sua culpa, e os semblantes sérios me dizem que o patrão mandou, que cada marretada nesses tijolos simpáticos derruba tanto, tanto que você nem sabe. Por aqui havia outra casa que me lembrava chalés em países de neve. As cortinas sempre fechadas, cadeado no portão e raras vezes, à varanda, uma senhora e seu rosto de olhar trancado, envolta de gatos como que acorrentados pela sombra que dali espantava o sol. Passo e vejo os dedos de um senhor esforçados pelos cadeados do portão, e a varanda hoje é vazia da senhora e de seus olhos e seus gatos. Não há mais sombra, e sinto afeto por ele com os dedos ainda enroscados em ferros.

O ônibus não demora. O motorista tem o rosto úmido, e parece ser da mesma temperatura do metal que guia e lhe é. A cobradora vai impassível, sentada no banco alto que nos diminui tanto, de tantos jeitos que Deus parece mesmo existir. Desço e não sei das horas pelas ruas daqui que vão desertas do fim de ano. Nossas vidas feitas aqui, nossos peitos esburacados enganados das fantasias daqui, e nos fins de ano daqui se esquecem. Sinto entender o silêncio até mesmo das calçadas, e entro em meu condomínio de prédios que tanto parecem feitos de vidro. Passo pela quadra de futebol, e a mãe assiste os dois filhos chutarem a bola pequena. O mais novo se concentra em cada chute que parece mostrar o caráter desde cedo impassível, enquanto o outro devolve e finge o esforço na paciência e proteção existente apenas nos irmãos enquanto crianças. Penso no meu e sinto falta da sua voz dizendo que eu não podia, que a mãe pediu pra ficar aqui, que depois ele me deixa dormir na cama de cima. Nunca deixou, e seja talvez esse um dos maiores orgulhos que tenho dele.

Sento às churrasqueiras daqui, sempre desocupadas de festas, repletas de papéis e dos cigarros mal apagados que me esqueço de jogar fora. O calor aqui hoje vai alto. Disse na televisão que uma capital do nordeste teve a máxima menor que a nossa. As pessoas que ainda não ignoraram a cidade andam aéreas, e talvez tenham até colocado as malas nos carros e trancado as portas de casa, mas o calor lhes colocou num transe que só passa quando cair enfim essa chuva eternamente suspensa. É ela que abafa, que me pesa a cabeça agora vazia de cabelos e ainda tão pesada do que tanto sei não saber. Sentado aqui é difícil não ser envolto na melancolia das tardes de meio de semana: os passarinhos que parecem cada vez mais perto de mim, curiosos de minha coluna curvada sob papéis que nada lhes são; as crianças e suas bicicletas e bolas num ritmo que foi meu, que não deixei que fosse embora, que busco no silêncio do que lembro e não acho cor e não acho mais sentido. Tudo sempre tão longe, e hoje, o tudo aqui é vazio. Sinto vontade de ligar a algum conhecido na praia e perguntar se viu algum melancólico andando com os pés na espuma do mar, mas desisto por não pensar em ninguém que consiga procurar como eu haveria de fazer. Sei que ela foi andar pelos lados de lá, silenciar os daqui pelos lados de lá.

Não me sobrou nada e fico satisfeito. Caem os primeiros pingos desse céu cimentado em nuvens. Largo o Rubem Braga já amarelado sob a mesa, o maço pela metade que deixa o isqueiro à salvo de extravios. Hoje ninguém mexe em nada. Descalço os chinelos e lhes sinto afeto ao sair do telhado de madeira pra entregar o rosto ao céu de chuva: é de um carinho morno e pausado. Sento à grama, e sorrindo dou aos pés os dedos de minha mão. Desaba do céu o peso de minha cabeça. 

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

O Largo de Jacó

Nesses dias de calor invento o caminho mais longo. Tenho de meus passos inconstantes um andar parado, negando de esquerdo o direito que insiste não sair do lugar. Já no ônibus o olhar encalorado dos sentados, dos em pé que calculam o horário de amanhã no desejo da janela aberta, da brisa sólida e abafada que conforta cabeças escoradas em vidros de tantos sonhos sem fim. Levanta primeiro a alma como quando Satie ilumina ouvidos por esse bairro de ruas de céu de árvores; procura a expressão mais cândida, o corpo inerte suspenso pelo olhar perdido de braços e sacolas equilibristas desse trânsito nada estático. E eu não me mexo, não borro sequer a vista de qualquer piscar sem que saiba por que levanto, sem que saibam por que ocupam a janela anunciada de minha alma pouco antes. A campainha me fere os ouvidos enquanto revela meu destino aos olhos de espelho do motorista que se reflete pra tanta gente. Nesses ônibus pequenos e sem cobrador as coisas parecem mais fáceis, os sorrisos começam em qualquer lugar. Salto perto do largo daqui. Não sei bem a diferença entre largos e praças. Não sei quem é Jacó e muito menos seus bancos em madeira, muito menos o cheiro de sua grama rala da areia das crianças. Prometo sempre mais tempo à próxima vez, e suas sombras me sorriem das promessas que não cumpro. Às vezes, e não sei bem precisar em quais, as ruas daqui tem o cheiro dos pés de carambola da Cachoeiro de minha mãe.

O tempo logo fecha, e chega a chuva na birra dessa cidade que não consegue ser sol. Como são lindas as donas de casa que se apressam ensaiadas pra trancar janelas, maldizer o tempo, estranhar o rapaz que anda lento nesse furor que a chuva derruba antes de seus pingos. Acabo avesso, e é só o alto de seus cabelos amarrados que me percebe assim. Dessas ruas desertas fazem calçadas, e os ipês pintam tudo que os braços de suas árvores alcançam, que o vento ajuda em borrar por cima dos carros sempre parados, das garagens sempre sentadas de senhores e suas banquetas de madeira antiga. O cheiro impregna o rosto, mela a língua. Escorre a criança que atravessa a calçada em caretas e me deixa a língua de flores num sorriso roxo e amarelo e azul. Não dá tempo pra que me vire e a veja de alguma forma que não já em flor, já de volta aos galhos dessas árvores que escondem o céu escondido agora de nuvens. Penso de quais sopros chegam esses que me passam silenciosos em seus floreios. Logo na esquina o pai jovem chuta a bola ao filho de olhos sérios, e de qual árvore são eu não sei, não pergunto. Talvez a mãe já tenha recolhido a roupa do varal, dito aos dois pra secarem bem os pés antes de entrarem pelo tempo que hoje fechou e eu ainda não fiz o café. Fins de tarde que parecem sempre sábado, sempre as cinco horas que esses relâmpagos abafados anunciam quase a todo instante. Eu digo que sei, digo que logo chego e assovio ao bar que já tem as portas ansiosas dos alarmes de Augusto, das chaves que me enferrujam os dedos desse alaranjado de flores. Aqui os copos quebram mesmo às nossas mãos seguras, mesmo aos olhos de concreto azul cimentados em Luiz.

Cruzo o portão e penso em Deus e nos fins de tarde que nunca passam. Arrumo as mesas à simetria de suas cadeiras, abro portas e janelas e a luz insiste em sua desconfiança que torna tudo sombra aqui de dentro. Penso em Deus e no meu silêncio. Luiz me chega primeiro na fumaça densa de seu cigarro que lhe esconde o rosto pelas frestas de seus olhos. Confere tudo por conferir, apalpa os bolsos e olha a camisa riscada de nossas canetas que tanto somem. Penso que confia em mim, que já pensa em nada pra esperar chegar a vontade de seus outros cigarros que só vão até a metade estrangulada desses dedos em cacos de copos. Pelos filtros brancos e sufocados o encontro já pela calçada, aos cantos escondidos do bar que nos limpam a cabeça de pedidos na fumaça cansada de nossas pausas. Guri, me diz, deixa só as mesas pra fora que o tempo fechou, diz, enquanto sorrio escorado à porta que a luz insisti em não cruzar. Há muito que me chama de guri, há muito que me chamam pelo nome.

Aos que chegam, nosso cumprimento às vezes sincero de saber como foram seus dias. E respondem tanto sem dizer nada, e tudo pra de em quando falarem do futebol, atrasar o silêncio da despedida numa intenção que não entendo. Penso em Deus e volto à porta com meu cigarro por de trás da orelha. Augusto aperta a caneta contra o granito do balcão, e não raro assusta as próprias pernas quando se levanta decidido, caminha até a última geladeira e volta ao mesmo lugar com a caneta agora descansada e o silêncio num alvoroço que só dele vejo. Deixo alguns sorrisos prontos pelos olhares que se esbarram por acaso ao meu, e procuro o motivo pelo qual bebem sozinhos os que chegam mais cedo por ter quem esperar, que aguardam o amigo de volta do banheiro carregado daquelas conversas reprisadas. Percebo que não é inconsciente, e sinto a confiança nesses que deixam escapar a razão de suas doses, de seus copos pela metade pra que não esquentem tão logo. Chega Blumenau, chega Mineiro e Clair e suas cervejas de rótulos azuis de tantos e de Adoniran Barbosa. Em dias assim Augusto não nos olha. Dá a atenção de seu cabelo sincero às contas do fim de semana que passou, às entregas dos pedidos sempre tão bem atrasados em seus funcionários de caminhões que trancam a rua, apressados em seus carrinhos de caixas e garrafas que tilintam alto em meu peito de olhos de Luiz, do silêncio desses dias mansos de Augusto.

E tão logo acalmo, dos motores das geladeiras rasga um sussurro intermitente que me leva ao balcão. A lista de compras já gravada em meu andar, o dinheiro contado num exagero que passa a sensação de que esqueci alguma coisa. Nem sequer me despeço da moça do mercado, nem interfiro na briga dos irmãos da padaria: logo volto por que já não me lembro mais, diz aquele de mim já destacado do resto. Como eles aos meus olhos, me esvazio. Subo a rua sem saber o que é calçada, e das sacolas cheias compenso o que vou deixando pelas ruas calmas de mercearias e saudades.

Encontro Paulinho antes mesmo de chegar à quadra, seus olhos que se jogam incertos nessa vontade que a gente tão pouco entende. Aperta pela mão quaisquer que sejam, ronda o bar em sorrisos sinceros numa intenção que também nos sorri pelo desespero do não saber. Meu piazinho, e minha mão apertada na dele como se quisesse que eu entendesse, como se em seus olhos incertos gritasse qualquer coisa que não nos é. Chega manso, pergunta que dia é hoje e tenta me convencer de que não falta muito pro natal. Acredito ser ele o único que saiba tudo por aqui como sábado. Carrega seus jornais velhos de hoje cedo, suas caixas que vende por onde desconheço. Contou-me que não gosta de cachorros, que a moça que limpa a casa de sua mãe não enxaguou o banheiro e que ele caiu e sangrou. Diz e conta e. Cala. Principalmente nos dias em que as coisas lhe passam despercebidas e me ignora, ignora os poucos que lhe esperam com a mão estendida. Escolhe a cadeira numa intenção que daqui da porta não me parece clara, e silencia o tempo em uma ou duas latas de refrigerante antes de sair cansado do que tanto nos explica, do que tanto nos diz em seu jeito que me leva os olhos.

Sei das horas por aqueles que saem, pelo frio que me fecha os botões da camisa às onzes horas aqui dentro sempre tão frias. Os relâmpagos já não me dizem mais, e num instante as luzes de fora já vão acesas, as pessoas apertam cadeiras e vontades sob um céu de estrelas que não lhes ganha a atenção. Às vezes a lua parece flor por entre as árvores daqui da frente. Vejo prédios baixos e as casas de janelas tão lá no alto, e ignoro até mais de um pedido sonhando o céu daquelas janelas vazias de senhoras viúvas, de senhores e seus bancos puxados com esforço de suas garagens nemorosas. As cortinas sempre por balançar, mesmo que pelas janelas fechadas não passem crianças em vento. Nessas já as sonho recolhidas com seus pais jovens às suas árvores que desconheço.

A mesa do canto é a única de calma nas noites cheias de gente e de seus silêncios ruidosos. Um, quem sabe dois lugares permanentemente vagos. Dos que ali sentam julgo saber do vazio de suas vontades, e volto de dentro com cinzeiro, copo e a primeira cerveja da primeira geladeira que me atravessa a ansiedade. Não digo nada. O rapaz ameaça erguer os olhos, mas o isqueiro já sai do meu cigarro à sua mão trêmula pelo relógio que não leva. Talvez o tempo lhe escoa avisado apenas pelos relâmpagos que do portão pra dentro nada anunciam. Nossas fumaças se dançam, se conversam, e saio sem que perceba.

Nossa cozinha fecha mais cedo. Não consigo saber quando sinto falta da campainha que nos chama aos pedidos. De qualquer forma, é nessas horas vou aos fundos, tranco a porta e arrumo o depósito de caixas e geladeiras e coisas que Augusto não pode se desfazer: garrafas já não mais retornáveis, um cofre, tacos de sinuca e ventiladores e cadeiras aos pedaços. Estes amontoados me fazem pensar no silêncio e em Augusto. De meus tênis furados driblo as garrafas mal varridas, as tampas de cerveja que insistem em bater nas bordas de nossos lixos vazios ao final da noite. Empilho as caixas no carrinho, e no corredor até as geladeiras não ouço garrafas num murmúrio sequer: uma aceitação de seus destinos, a obrigação de alimentar o silêncio daqueles que por hoje já fecham suas contas e estranham o vazio que se manifesta perto do carro, à porta de casa depois de cada bebedeira.

Quando já não há mais, vou pra fora e tenho o primeiro cigarro inteiro da noite. Procuro a lua por entre as árvores e sinto como se já fosse colhida. Penso em Deus e nas coisas por brotar aqui de dentro. Os últimos logo saem. Nesses dias em que parece sábado sinceramente não me incomodo de esperar. A música toca agora mais lá longe, as pessoas conversam agora com mais silêncio. Augusto adianta as coisas e fecha o caixa que lhe martelou a caneta ao granito por tantos olhares. Luiz serve sua meia dose e escora os ombros no balcão pelo espaço que sobra da sua cerveja já aberta, do seu copo já meio cheio. Desenrolo as portas e o som de suas engrenagens despenca tudo. Penso nos relâmpagos e no vazio que de agora em diante não me fala mais do tempo. As chaves na caixa vermelha, e procuro a garrafa já quente por entre as mais geladas que há pouco coloquei em seus silêncios conformados. Dos copos que sobram inteiros, sobra um que amansa os dedos retalhados de cacos e ferrugem. Augusto há muito me priva o prazer da volta de bicicleta pelas ruas que apenas de madrugada se parecem com as daqui. Diz da segurança, diz de coisas que pareço não entender por só sentir falta da calmaria que preciso, e espero.

No fundo do bar as cadeiras já empilhadas, mesas limpas das cinzas e daquilo que choram as garrafas. Desabo o corpo onde as pernas pedem, meu copo e sempre pela metade, cigarro por me sonhar enquanto o isqueiro me foge aos dedos. Penso em tudo sem lembrar de muita coisa. O gosto dessas cervejas me estanca a alma, e no dia já por raiar que atravessa o toldo furado de pinheiros, sou o motor da geladeira, o molhado dos copos que ainda escorre na cozinha deserta. Augusto me agradece em seus sussurros transparentes.

Eles e eu à banqueta no balcão, de qual levanto só hora ou outra pra tirar alguma mesa, limpar algum cinzeiro até que todos saiam e deixem meus bolsos livres de canetas, de abridores e gorjetas que somem de um pra aparecer por algum lugar que nunca sei. Agora só nosso silêncio e as geladeiras. Penso em Satie e não sei de onde vem o arrepio, não sei quantos copos encho até a hora que me peço pra ir embora. Augusto não me chama nem o táxi que de algum jeito já me espera, a porta do passageiro aberta e o nome aos lábios do motorista. Luiz me pergunta do fusca. Sorrio que logo chega, calo pra que eu dê as costas ao caminho de casa, agradeça ao taxista e diga que hoje não, que chamei por engano, que vou dar a volta na rua e ir pros lados da rodoviária até me perder nas travessas iguais, achar por fim o começo da Visconde de Guarapuava.

Saio pra logo mais. Tranca e portão encostado até que bato a porta laranja do táxi que confunde a ferrugem de minhas mãos. Penso na seta à esquerda que me envereda em sonhos à Visconde, a terceira marcha presa na sincronia divina dos semáforos de lá. Dou o endereço, meu silêncio e não tenho mais nada. O taxista olha de lado meus olhos que acompanham os postes tristes e amarelos. Penso que assim serão as lembranças à hora do juízo, que iluminam o caminho sincronizado em terceira marcha que tive durante o que pude. Penso em Deus, no meu céu de avenida. Quem sabe quem minha alma escolhe amanhã ao meu lugar do ônibus, se me cumpro a vontade dos bancos sozinhos do largo de Jacó.