quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

A casa de nossa Vó

Na casa de nossa vó tudo foi feito aqui, na cidade mesmo. Telhas, tijolos, grama, mangueira. De fora, talvez só a poeira e algumas outras saudades. Saudades nossas, não dela. Vendo bem, até as saudades que tenho dela, inventadas lá longe, ao sul de minha infância, acabam sendo daqui. Uma casa original, dela e da cidade, sem saber qual pertence a quem primeiro. Talvez por vó ser daquelas que termina a vida indo de um jeito que fica pra sempre. Por conta disso é, e não foi. Ainda lava sua roupa, frita ovos, esquece nomes junto das chaves, caixas e cartas que um dia devem ter sido tão esperadas. A dor da morte deixou com a gente, de esperta e inocente que sempre foi, dessa traquinagem que ainda leva no olhar.
Falo dela como quem entra em um quarto depois de muito tempo, ou sente só o rabo de algum cheiro que foi guardado apenas como cheiro, sem imagem ou som ou qualquer outro sentido em forma de memória.  Vou lidando com estranhamentos, aceitando essas sensações esquisitas que as coisas já esquecidas dão bem no meio da nossa cabeça. Talvez seja a incompetência que me leva os ouvidos, pega meus olhos desatentos que toda alma tem e assim me abre o peito pro universo de coisas que pode ser fantasiada. Sinto os sinos da igreja da Rua 5, vultos por entre portas encostadas, e tudo parece verdade. Nunca fui bom em nada, e de vez em quando as coisas me convencem disso mesmo: só comum e desinteressado. Sempre incompleto demais, tendo de encarar tudo de ordinário que vai e não sai de minhas mãos e unhas e intenções de meio de estrada. Almejo sempre pouco, e ainda assim acaba não dando. Não por nada não, como dizem as pessoas daqui, mas por simplesmente não poder dar.
Deve ser por isso gosto tanto dessas ruas. O cigarro serve só pra passar o tempo, o sol pra secar as roupas sempre tão lavadas e as vontades que acabam ficando sempre pela sombra numa cidade iluminada de sol e calor e toda essa coisa que aperta bem o meio da minha cabeça. A vida aqui passa, numa redoma onde a constância predomina, sem poder ser eterna, sem poder ser percebida ou medida ou qualquer coisa que não seja passar num ritmo sempre engraçado. A cada hora o tempo parece roubar cinco minutos, como se o encarregado da passagem não gostasse dos badalos quem anunciam o fim eterno de uma hora e o começo promissor de outra, e por conta disso avançasse sempre o ponteiro do relógio cinco minutos, evitando o soar dos sinos e distorcendo as horas que há muito tempo devem ser sobrepostas.
Meu vínculo com essa terra de vales vem de minha mãe, que sabe de tudo isso desde sempre. Percebeu numa sabedoria surpreendente, calada. Sonho comigo que quando encontrar seus olhos de esperança de novo, antes mesmo de desfazer minha mala e lhe entregar todos os abraços endereçados a ela, a gente vai se entender numa cumplicidade própria daqui, que ninguém nunca vai poder entender, que vai ser só nosso. Aos outros um simples jeito de quem é de fora, a nós os traços de quem não pode ser de outro lugar. Na sala da casa de minha mãe, por entre seus anjos e cristais e todos os artefatos que materializaram suas saudades, tem um canto de cômodo, com sua mesa de canto de cômodo, com sua foto de minha mãe cheia desse mesmo olhar que descobri só aqui. Moça, forte, sorridente, assim como ainda é hoje. Um pouco chagada da vida, do peso dos filhos e da vida que já foi tantas. Foi minha tia que sempre me desvendou essa mulher do retrato, que me contou seus sonhos, seus passos retos de tropeços que abriram meu caminho ao que somos hoje, eu e meu irmão, iguais no silêncio assim como são todos os irmãos, assim como minha tia também é a foto de minha mãe,moças, fortes e sorridentes, chagadas e iguais em seus sorrisos de cerveja.
Aqui o sol queima, o ritmo cala, e tem essa alguma coisa que mexe no olhar da gente, que muda nosso jeito pra sempre assim que pegamos nossa passagem de volta no guichê da rodoviária. A atendente percebe, e não diz nada não por não querer, mas por acreditar que essa cratera no olhar é coisa que todo mundo sabe, entendimento popular, tipo um prato típico, um significado de sonho. Vó sabe, tia sabe, meu primo tenta até explicar, mas não sei. Talvez o olhar de minha mãe responda, clareie, faça tudo simples como as brincadeiras da menina da casa do lado, casa séria de menina feliz, grades altas que viram brinquedos nessa menina que olha rápido e some de repente, sem respeitar nenhuma ordem dessa casa séria que deve ter um punhado de horários.
Nossa vó pendura umas roupas no varal, olha de canto e some pra dentro de casa. Acho que me conta que o centro da cidade é chamado de “rua”. Até tem seu próprio trânsito, suas buzinas, seu ritmo de meio tarde, seus ônibus de fim de expediente de portas de lojas pequenas sendo trancadas e não conferidas. Nunca vi ninguém conferir nada por aqui. Ainda assim, os rostos são os mesmos, a cadência por pouco é vista lenta e com um pra sempre engraçado, e os ônibus são tão pontuais como o sol indo embora, trazendo cadeiras de praia e senhoras e senhores e crianças de banho tomado, sentadas em suas calçadas mornas, transpirando o suor do asfalto que é pra sempre tão quente demais, refugiado nas sombras dos postes, por de baixo das calçadas meladas de flores e de senhoras e senhores e crianças que já precisam entrar pra tomar outro banho. 
A água daqui esquenta no copo, as lagartixas correm de sombra em sombra, e todos só me riem e dizem que hoje ainda tá ventando e que tem dia que tudo fica tão quente que não dá nem pra perceber o tempo e fica até parecendo que esse moço que cuida pros dias irem e voltarem fica meio preguiçoso e então a gente fuma pro tempo passar e joga uma água no asfalto e ele evapora de um jeito engraçado assim que fica até parecendo que ele fuma também e fica amigo da gente e quando a gente vê parece mesmo que a noite chegou mais depressa. E penso que hoje ainda tá ventando, e já não sei mais se sou eu ou eles ou a mesma mistura.
Parece que as pessoas daqui não existem. Todas as vezes que vim pra cá era fim de ano, de escolas fechadas e praias e casas de parentes de outras cidades abarrotadas. Acho que só eu venho pra cá nesses dias engraçados. Vejo uma cidade, sinto outra, e ouço ainda uma que não se encaixa muito bem entre as outras duas. Acabo fazendo da terra da casa de nossa vó uma cidade que é impossível de existir, por ter sido feita muito pouco do que vejo de meus olhos de adulto, e sim da miscelânea maluca e sem sentido da cidade que só sabe existir quando não estou por aqui, e que meu primo afirma ser diferente dessa que vem das lembranças quando sinto o cheiro de flores nos raros dias de calor lá do sul, quando entro em algum ônibus que entra estrada afora, quando embarco em aviões que me deixam apavorado demais e com tempo de menos pra pensar que aqui talvez não exista mesmo, e os sinos que tocam da igreja da Rua 5, de hora em hora, devem ser meu despertador da vida real, ao lado de minha cama de solteiro do quarto que ainda divido com meu irmão e que meu irmão divide comigo e com o amor de minha vida. Por fim, a dor no meio de minha cabeça chega mansa e fuscas estacionam por sobre as calçadas pra não estreitar as ruas já meio estreitas.
Poucos parecem se arriscar até a rua entre qualquer hora do dia que não seja uma das horas da noite. Talvez na rua seja diferente, mas aqui, no bairro de minha vó, são realmente poucos os mulatos sem camisa que passam pelo asfalto de pele quente, descrentes do alívio efêmero nas poucas sombras de árvores que blindam o sol contra minha pele virgem. Devem ter deixado de se queixar disso tudo há muito tempo, e agora calam e alguns trabalham e a maior parte fica dentro de suas casas de janelas lindas e sempre abertas na esperança de que haja uma brisa que carregue o tempo amorfo, que traga de quebra a noite que revigora e que é carnaval e catarse toda santa noite de cadeiras de praia e espera até que chegue a hora da novela que começou na semana passada e que já conquistou toda a rua e os vizinhos das ruas de cima e das ruas de baixo.
Nos bares a cerveja é mais barata que no sul, e talvez seja isso pela ausência da alegria das cervejas daqui durante o processo de fermentação e mistura dos demais ingredientes. Por aqui não se fica bêbado de cerveja. Parece mesmo que só a cachaça salva, a melosa que dá fluidez nessa vida estancada. Não é possível beber devagar e muito menos sozinho, já que a garrafa esquenta rápido demais e a cerveja meio gelada é enlaçada na dança dos copos mornos que encontram as mãos dos mulatos sem camisa. Rodadas e mais rodadas de garrafas que enchem sempre um copo de vários, infiéis e fadadas a várias sedes insaciáveis que nunca serão saciadas, já que o dono do bar Onze fica com calor demais, baixa suas portas e vai pra sua casa que fica logo nos fundos com as janelas encostadas. Fuma vendo um pouco menos da metade da novela, até que chega a hora de ir dormir, que nunca chega cedo ou fresca, e no caminho que é marcado pelo levantar do sofá, o dedo no botão da televisão e a caminhada pelo curto corredor que liga a sala ao quarto, se arrepende e decide levantar as portas do bar, e os mulatos sem camisa guardam suas cadeiras de praia em casa, e quase inconscientemente formam grupos de quatro pessoas, pegam seus copos sempre os mesmos e tomam mais alguns primeiros copos de outras várias garrafas infiéis.
Nesse montar de imagens, sinto falta de alguns punhados de grama nos quintais das casas que por aqui sempre tem quintais. Havia pés de carambola e minha sina de nunca ter gostado de carambolas, apenas dos mosquitinhos pretos que viviam entre folhas e frutas e que chamávamos de leopoldos, dóceis de serem pegos nos dedos, admirados, pousados sempre em todo meu corpo e no corpo de meu primo, onde o vencedor tinha sempre um ou dois bichinhos a mais pousados em braços e pernas. Hoje penso que nunca percebemos os leopoldos emaranhados em nossos cabelos, que até pouco tempo atrás me davam comichões na cabeça enquanto se desprendiam de minhas lembranças e voltavam voando para o pé de carambola que já não existia mais. Quem de nós dois realmente ganhava nossa disputa por leopoldos? Sem saber ando olhando o topo de qualquer árvore pra ver se encontro qual delas virou o pé de carambola da casa de nossa vó.
Acho que naqueles tempos via tudo melhor, as coisas como realmente eram, sem fantasia, sentindo mesmo a água da torneira mais gelada que agora. Havia menos formigas, grandes e vermelhas e pretas e pequenas que hoje não me incomodam tanto assim. Talvez por conta do meu esforço de criança, armado de dedos e chinelos e pés descalços atrás de qualquer ponto meio imóvel, tardes e tardes de guerras intermináveis, armisticiadas apenas nos dias de futebol na rua. Hoje elas me sobem, me coçam, e desconfio até que algumas poucas me mordam, enquanto passivo, assim como criança que desejou ser sempre criança, vejo tudo de um jeito infantil, percebo esse raro começo de tarde nublado e sei que não vai chover por que só sei inventar e assim brinco que o sol escondido logo vai evaporar todas essas nuvens que são resquícios de outro raro dia nublado e assim as nuvens acabam se tornando outras nuvens que já foram muitas outras tantas vezes. Talvez agora sejam apenas algodão ou tufos de qualquer outra coisa branca e intocável, ignoradas por que o amarelo do sol deixa o céu sempre azul demais e machuca os olhos dos senhores e senhoras e meninas lentas e graciosas que já há muito não levantam os olhos, há muito não buscam os pedaços de alma flutuantes que não tem muita utilidade e que não se sabe se é a terra que gira ou elas que caminham do jeito devagar que se caminha por aqui.
Hoje choveu, e o cheiro que as coisas soltam pra saudar a chuva provavelmente vai impregnar tudo por tempo demais, tanto na rua como aqui dentro de minhas lembranças. É engraçado ver tudo molhado, meio impossível, meio fantástico. Tudo ganha outro aspecto, outro jeito de parecer. As pessoas já não são as mesmas, e a tensão de que tudo volte ao normal parece eminente, parece certa demais pra qualquer idéia vaga de esperança, de que tudo seja do jeito que não deva ser. Acho que os sonhos secos de antes se manifestam nessas horas, todos ao mesmo tempo e extremamente claros aos olhos das pessoas, que se enxergam e não entendem que diabos há no olhar de todas essas pessoas paradas, olhando pra cima, redescobrindo o céu, redescobrindo todos os jeitos e formas que já foram e ficaram deixadas há tempo demais, idéias que chegam com aquela dor bem no meio da cabeça que é comum pra todo mundo, que não precisa ser explicada e é passível apenas da junção da surpresa com o incerto do fim da chuva, do frescor do asfalto e dos corrimões e dos capôs dos carros fechados que mantém por dentro o calor amorfo em saudades e maneiras, ainda que o lado de fora pareça úmido e gracioso e diferente. Os carros daqui são exatamente como as pessoas.
Sempre acreditei que se caso encontrasse meus chinelos, batesse o cadeado no portão que precisa sempre de um empurrão um pouco firme – na verdade não chega a ser firme, e assim é quase uma forma sutil de força -, e fosse subindo a rua até quase a esquina, chegaria à casa de azulejos azul escuro, eternizados pelos primeiros desenhos de nossas brincadeiras quase inocentes de tão leves que pareciam ser. Agora pareço perceber que essa lembrança é uma daquelas desprovidas de sentido. Não pode ser vista, nem ouvida, não tem cheiro de perfume doce e nem textura de pele no verão. Chego a duvidar até que existiu, de tão transparente e inodora e não fria e nem quente que é. Talvez seja um estímulo de sorriso, a eclosão da primeira borboleta dos milhares de borboletas que de vez em quando inundam nossos estômagos. Não sei. Algo que realmente não exista e que esteja longe de qualquer conceito de realidade e decência, algo dividido que seja apenas de um, injustamente indivisível nessa metade, dignamente do peito e do meio da cabeça de quem acredita que o que não tem forma possa realmente ter existido. Dessa forma, ou de qualquer outro jeito que possa ser explicado, dentro de corpo e mente incompletas de quase homem que sou, sinto o pique esconde, a nossa fidelidade de baixo da rampa da tua casa, silêncio que se preciso seria eterno, guardiões que fomos da nossa fortaleza cúmplice, da nossa certeza um no outro de que sairíamos dali apenas na hora certa, na disparada de criança que aprende a disparar por razões inatas, e assim seria por que assim precisava ser, não havia jeito, nem fuga, nem nada que pudéssemos fazer para que todos aqueles pares de segundos não fossem eternos nessa cidade que não comporta eternidade e só sabe ser passageiramente pra sempre na vida de quem volta em busca de concretizar resquícios, de cimentar a fluidez das sensações, de construir algo tão daqui como todas as casas, erguendo muros de segurança em nosso peito tão repleto de certezas não tão boas quanto os olhos que julgo serem os seus, que obrigo a serem os seus antes mesmo de te ver descendo a rua todas as noites, nessa espera ancorada no banco de madeira de nossa vó, de garrafas de cerveja de apenas um copo que acabam sendo só minhas, minhas e de mais ninguém, assim como você me é sem mesmo saber, sem mesmo que eu saiba se foi você, se tudo isso foi com você ou com a antiga dona dessa casa de azulejos azuis que acabou confundindo a cabeça de todos os senhores e senhoras e crianças que não sabem quando precisarão tomar outro banho. Tudo pode ter mudado há tempo demais e ainda assim ter sido ontem, incerto e de qualquer forma de uma verdade acreditada.
Hoje, no ponto de ônibus, senti de novo o peso dos seus olhos outra vez, e como quem acende a luz do quarto em noite sem lua, você brilhou.
Não sei de ninguém. A gente sempre precisa correr pra longe se quer chegar até nosso deus, que parece tanto com essa sombra da gente no asfalto. Creio que grande parte daquelas pessoas já tenha ido embora, e nesse meio alguns resolveram mesmo morrer de vez, sem jeito ou chance, assim certeiros. Pra mim é mais esquisito lidar com os novos telhados dos vizinhos, com a insegurança que substitui a confiança nos rostos e sorrisos antes tão amigos. Alguns poucos me abraçam e se enchem os olhos de lágrimas que não sei há quanto tempo estavam ali guardadas, por saudade de antes, por lapso de consciência que faz a mesmice daqui parecer mesmo diferente, meio incerta. Será que faz tanto tempo assim?, percebo por de trás de minhas máscaras, e não grito e só escrevo que já faz tempo demais mesmo e que o telhado novo da casa do lado não combina com o telhado antigo dessa redoma que é a Rua 2 de dentro de mim.
Uma tristeza, daquelas bem azuis, pega a gente pelo pé desde a hora que a gente acorda. Ajuda a arrumar o travesseiro e esticar a colcha nessa terra de sem cobertas. As formigas são parte de tudo, e qualquer que seja o pensamento bonito que passe correndo bem no meio da nossa cabeça, um punhado de borboletas começa a aparecer pelo quintal. Sempre amarelinhas e com a borda das asas pretas, borda essa tão fina que lembro dos teus olhos maquiados, castanhas envoltas da borda dessas borboletas do pensamento bonito. Logo a tristeza volta, do céu nublado dessas nuvens que talvez não saibam que já foram e serão apenas outras nuvens, destino esse tão parecido com o nosso. Diferente talvez só as formigas, de por tudo, de pelo cimento da casa de nossa vó e toda a terra vermelha e nossas roupas e paredes. São mesmo tão presentes como essa tristeza de por todo lugar, que não quer fazer nada a ninguém, mas é de um azul tão triste que vai deixando a gente triste, até que já não se sabe mais quem começou com todo esse silêncio primeiro.
Creio que a cidade me expulsa. Nada de maldade, longe disso. É como se não desse mais tempo, e pronto. Talvez pelo ciúme que essas ruas têm das ruas que ficaram imunes ao tempo, guardadas em mim e que, agora, parecem tão intactas, até mais impossíveis do que antes, como se recordar não fosse uma opção. Tem chovido tanto nesses últimos dias, e as formigas parecem mais zangadas, inquietas. O sol acha brechas nas nuvens e denuncia o trabalho das aranhas, antes imóveis, impressionadas com o vento que nunca não soprava e que agora derruba roupas dos varais no chão molhado. Talvez seja essa a cidade de meu primo, onde as lagartixas me dão as costas e ficam paradas longe das sombras, sempre às vistas, sonhando com borboletas que tanto voam por aqui, procurando os traços de minhas marcas de saudades, agora tão certas que poderiam até ser invisíveis e indeléveis, sem meio termo. Aqui se vê que as coisas todas já aconteceram há tempo demais, e.
Alguns poucos ainda descem de suas motos, param de frente ao portão de nossa vó pra me dar, sem perceber, talvez suas maiores riquezas, talvez a maior sinceridade em alegria e cumprimento, polegar em riste, dentes em sorriso, sem que eu perceba que já até respondi, achando graça em ainda não ser nem sexta-feira, amor, não ser nem dia de simpatia. Quem sabe aqui seja sempre sexta-feira, dia de bloco na rua, carnaval de cidade pequena, tristeza de gente grande. Parece que já me despedi das pessoas, da cidade que é essas pessoas, e posso até antecipar minha passagem de daqui uns dias, sair na hora da novela, passarinho recolhidos, e tá tudo certo. Ainda tem uns dias, fala minha tia, brinca meu primo, olha nossa vó. Parece ser saudade de casa, saudade do amor de minha vida, mas é essa coisa da moça do guichê da rodoviária. Preciso dos olhos de minha mãe, da fotografia do móvel de canto de cômodo, da minha tia que até fora da foto é tanto minha mãe. Vou esperar, ir pra casa sabendo que meu lugar é aqui, que minha volta já tava certa antes do dia que fiquei bêbado e lembrei da menina que dividiu meu primeiro amor comigo, do susto dessas lembranças não terem mais forma, nem gosto ou cheiro, e serem só essa vontade de sentar na mesa de mármore do quintal de nossa vó, silenciar, cumprimentar a rua recortada no portão enferrujado. Volto pra casa ficando aqui, levando esse olhar de cratera, essa saudade, esses alguns leopoldos emaranhados em minha barba emaranhada. Minto. Volto pro sul. Minha casa é aqui. Minha vida é Cachoeiro.


Cícero e Sérgio Sampaio, graças às suas músicas com som de sonho.
Para Edna, Sandra e Pablo: minhas mães e irmão. E nossa Vó.