quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Nada incomum

fazia tempo, não fazia? acho que há uns meses parei perto do seu carro. tinha o adesivo do seu curso colado atrás. mas não foi nem por isso que lembrei de você. é que o carro tinha bem a sua cara. tô falando sério! sim, eu sei que podia ser outro carro igual, mas sei lá, é que eu também vi tanto sorriso igual por aí, até alguns outros olhos enormes como esses dois aí na sua cara, e hora nenhuma pensei serem os seus. sempre vinham como lembrança, mesmo que fossem de verdade. talvez até tenha te visto qualquer hora dessas, em um daqueles dias que a gente não consegue nem ser quem a gente é. talvez por isso acabei passando direto. parece até meio esquisito, parece não? estranha é você.

você tá igual cara. meu santo Deus, como é que alguém consegue ficar tanto tempo sendo assim, exatamente igual? parece até que você deixou de lado toda a vida pra viver pra sempre a imagem que consegui guardar, dentre todas as coisas que a gente vai nublando das lembranças, que o tempo vai apagando como bom amigo que é. só o seu sorriso que mudou um pouco. parece um pouco mais apressado. da correria do dia ou da insegurança que o fim do assunto vai trazendo. não sei. linda. insegura, apressadamente linda. 

eu? sim, sim, formado. bom, diplomado talvez seja a palavra. sério mesmo, aquela coisa de não ter muita certeza aparentemente era certa. foi bom, mas acho que acabou por aqui. e você, firme e forte? perdão, antes disso: vai fazer alguma coisa agora? sim, é pra lá mesmo. sei lá por que. só acho que as coisas de lá ainda estão lá, meio flutuandinho. não é esquisitice, cara. essas coisas todo mundo pensa, só não dão muito nome, ou acham engraçado e deixam pra lá. tá bom, vou parar de falar.

acabei não voltando tantas vezes como antes achava que voltaria. dificilmente cumpro as promessas do coração. na verdade é injusto cumprir as promessas dos meus eus de outros dias. eles que fiquem pra lá, revivendo eternamente as lembranças que bem quiserem. é muito cômodo deixar a vida pra mim, e gozarem das plenitudes caretas de outrora. acho sim que ela tem mesmo razão. essa coisa de ver as coisas do jeito que elas fingem não ser, fantasticamente extraordinárias, vai te deixando meio maluco, meio ausente. de qualquer forma, não preciso nem apertar os olhos pra ver de longe. sei que tudo vai estar igual. os insetos já recomeçam a coreografia da escalada de mãos e sapatilhas, as borboletas escolhem de longe os fios do teu cabelo pra apresentarem os novos passos desses tecidos acrobáticos maravilhosos do teu couro cabeludo. acho engraçado aquela tarde ter sido tão sincera como foi.

não foram muitas vezes. só naqueles dias que o ônibus para ali na lanchonete, um ponto pra trás. acho que naquela tarde alguém resolveu se arriscar naqueles sanduíches esquisitos, e ficou uma coisa de eternidade aquele dia. o ônibus arranca, e antes da segunda marcha já passei pelas duas curvas, apertei a campainha, dei boa tarde pro cobrador e encostei as costas e a alma na árvore de casca dura, de pele áspera como se fosse a das mãos de meu pai. gosto de terminar uns livros aqui também. não pela gente. mais pelo sossego mesmo. tanto que nesses dias quase não tem borboleta nem... tudo bem, vou parar de viajar. e você?

caralho. podia jurar que não passou nenhum dia desde aquela quinta-feira. é tudo igual. mais carros vermelhos do que pretos, o sol, a claridade do dia, teu cheiro, teu silêncio, teus dentes, a sua camisa amassada no ombro, seus três pulinhos e sorrisos que escondiam a calcinha branca na calça jeans apertada. você aí falando, segurando meu rosto apenas por alguns segundos antes de entregar esses olhos enormes nos prédios não tão enormes assim do outro lado da rua. se eu ainda tivesse aquela forma doida que te mostrei um dia, lembra?, de se desligar e só viver, seria tudo exatamente do mesmo jeito. acharia estranha a sensação de antecipar meu braço machucando seu pescoço, ter visto antes de você o bocejo do outro lado da rua que te faria bocejar cheia dessa tua meiguisse eterna. ignoraria tudo isso e daria os mesmos passos meus dados outrora por mim.

qui é isso, eu tô cansado também. levanta, vou contigo até seu carro. é que essa semana foi puxada, acabei ficando até mais tarde no bar. ah é!, esqueci de falar. faço uns bicos em um bar. umas vezes por semana só. vá lá qualquer dia. devo ser um garçom engraçado. leva ele junto. qual o nome dele mesmo? é um lugarzinho legal, volti meia pintam uns casais esquisitos. o que?, é verdade. vão uns caras esquisitos lá também, tem tudo a ver. tá legal, tá legal, ele deve ser gente boa. ele desceu aqui na frente um dia. deve ter estranhado eu ficar olhando. parece ser um cara legal. me diga uma coisa: como você alcança os pedais? ei, pare com essa história de tapa. apanhei a tarde toda já. brincadeira.

de vez em quando, bem de vez em quando, eu passava ali na sua rua. chegava na esquina e voltava. nem olhava pra sua casa. provavelmente fazia o caminho todo olhando pro chão, pra, se por acaso cruzasse com essa imensidão em olhos, não te desse o trabalho de conversar, botar qualquer conversa em dia, como hoje.

fique bem, então. sim, eu falo com o Cris. acho que no próximo fim de semana todo mundo tá livre. não, não tem problema. uma hora todo mundo se ajeita. sempre foi assim, é sempre assim. vai com calma, que eu quero entender nesse teu ir devagar como é que tudo isso funciona, que eu não confio muito nessas suas pernas curtas. tchau, e fique bem.

amie - damien rice

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

passado, presente


lembro do incômodo no nariz. te falava, te fazia questão  nos seus olhos que pareciam achar saber qual é que era o mistério de meu planeta, tão nosso que acabava sendo só e meu. lembro do meu bolso ficando vazio de minha mão, da lua que fica em volta da lua nas noites de lua cheia estampada logo no canto de seu dente cor de alma quase pura. deve ser por conta desse ar que vai ficando mais seco, desse ritmo que vai deixando a gente à cada chuva mais seco, mais só, mais cheio da gente e ponto. essas coisas de corpo mágico, infinito, porém sensível à qualquer coceira no nariz, ainda que coce justo frente à sua frente que tem cara de alívio, como aquele comichão que dá nas costas logo na beirada da porta quando o braço não chega, quando o outro braço não chega nem pelo outro lado. talvez seja como se o incômodo fosse mesmo pra sempre ser, até que de tanto ser estranho se tornasse parte, de repente, de susto mesmo, com a mesma realidade do teu rosto sobreposto ao meu em cada espelho que resolve nos mostrar-nos só pra mim, que também já é nós sabe-se lá desde quando, desde que dia que passei a sermos mais que apenas ser só.

é que tem tanta coisa por aí afora, nem que seja mesmo pra serem deixadas por aí, do lado da sua cabeceira despregada, naquele espaço entre o criado mudo e o guarda roupa onde ficam largados teus sapatos, que dá vontade mesmo de deixar tudo pra trás. tirar esse peso das responsabilidades das coisas que tão bem nos fazem, acabar indo de vez pra tudo que fica do lado de fora, que tão bem ficam jogadas meio ao lado de seus sapatos. é como se tivesse me esquecido, e agora, quando a saudade grita por qualquer pedaço de lembrança, não sei se pela insensibilidade dos olhos ou destreza do coração, vejo sem sentir o que antes chegava sem que perceber fosse preciso. confuso, mas até certo ponto ordenado. até acerto o jeito, mas não tem santo no pescoço que dê a hora, e assim acabo correndo de você pra chegar logo de vez em mim, mistura ímpar que nem nesse nosso passado inventado sabe me vir aos olhos fechados.

novos baianos - mistério do planeta