quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Beatrice

Calmo demais, simples demais. Exatamente tudo igual a todo mundo, num lugar onde se confunde barco com pescador, vassoura com senhora, sorriso com borboleta. Aqui é onde as águas do mar tiram férias, onde o vento fica manso e deixa o rosto de quem passa lhe coçar a cabeça. Nada por estes lados existe. É como se tudo já tivesse acreditado que o tudo é isso, e que o além disso é o limitado dos sonhos que se deixam ser levados pelas rédeas de quem dorme. Por aqui, as doenças que o mundo esqueceu fazem seus últimos sortudos: os cegos de pôr do sol, resfriados de noite clara, insones do elogio que o ouvido não pode deixar o corpo escutar.

Aqui ninguém acredita em nada. Fé é palavra que deixa a igreja a pensar nas missas de domingo. Por estas bandas não tem bandas de lá, e os males do resto do mundo aqui não seriam compreendidos pelo coração do homem. Coração aqui serve pra bater mais rápido quando desço da bicicleta, pra ser aquela coisa que fica sempre junto e raramente se lembra. Coração não servia pra muita coisa antes de você. Coração de repente passou de nada pro ouvido que te escuta os passos, pra barriga que me treme as canelas quando meu olhar não desvia do teu, e assim ilumina minha cabeça vazia. É o coração que passou a falar por mim, e do teu lado dispara pra fazer valer os versos que fiz, as metáforas que provam como qualquer coisa daqui pode ser essa coisa que me chega do cheiro que vem do seu sorriso forte e doce.

Ando engraçado. As pernas vão levando minhas idéias desnorteadas pra um rumo que é de outro lugar, longe do que antes era perto como as botas dos cadarços. Já não sou igual a tudo, ninguém me confunde com nada que não teus olhos baixos de meus versos, quietos das palavras que te deixaram assim, de repente. A igreja toca os sinos, o violino chora suas cordas, e eu não sei. Nunca soube o que é não saber, o que é saber de alguma coisa num lugar onde ninguém disso sabe. Estranho tudo, sou estranho pra tudo que não aquelas borboletas, aquelas borboletas que saem do teu sorriso como eu de mim quando te sonho, quando acordo pra te olhar e durmo pra ver se te encontro num canto qualquer, pra poder tirar o vento do carinho dos teus dedos e fazer do meu arrepio missão única das tuas mãos de rosa.

Exatamente tudo aqui é igual a tudo que vem de ti. As paredes rosadas, os postes acesos no fim da tarde, a lua que caminha junto quando ando procurando nas estrelas o caminho pro seu caminho. Tu és tanto que eu te sou, que antes de ser te pertenço como outra simples parte da tua humilde perfeição. Minha sina é ser teu estalar de dedos, a música do piscar dos teus olhos que faz Deus nunca se esquecer de trazer o sol pra te acordar. Já sou parte tua, e agora não sou mais nada que não a vontade de lhe ser pra sempre, de um jeito calmo demais, de um jeito simples demais.


Il Postino - Michael Radford

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Circulando

Tua mão na minha, mão que é tua na tua, que é sua assim, enquanto só assim te olho, parada de cabelo virado, penteado pelos teus dedos que são meus, minhas vontades de deixá-los aqui junto destes, agora teus, agora como um no plural sendo dois ímpares, sem mais, sem mais nada que fuja ao segundo nosso, tão nosso que de nós se esconde, entre gente, entre tantos que acaba não passando. Fica, perdura sem ápices, confundindo começo com resto, resto com o resto que te deixa aqui, mão na minha mão, até que a última porta se abra sem que eu nada possa fazer, sem que eu consiga gritar ‘’motorista, e agora?’’, e se agora quem desce não sou eu, não há nada que faça de quem fica você, que faça do ônibus cheio lotado de qualquer coisa que não nós, meio vazio da gente.

Desembarque.