segunda-feira, 22 de março de 2010

Delicada

Eu não sei quantas vezes isso acontece por dia, e nem se sou otimista demais pensando que tenho a sorte de lampejos diários como este. Agora, por exemplo, são 16:01, e não tenho a mínima idéia de porque perco meu tempo sentada nesse silêncio ao invés de abraçar meu marido e dizer que o amo, dizer que sinto muito pelos olhares de uma esposa que se torna mais estranha a cada dia; porque sinto com a rara força da lucidez esse vazio que Deus não me dá a sorte de esquecer, ao invés de dizer que amo meus filhos e que não os culpo por não mais conhecerem uma mãe que esquece estar sendo esquecida. Agora mesmo já são 16:06, e rio por lembrar que olhei para o relógio a mais ou menos três minutos atrás.

É como se eu fosse morrendo ainda viva, e sem mais nem menos ressurgisse com as mesmas dúvidas de um recém nascido já letrado e de pele enrugada. Se sou eu sentada aqui nesta cadeira, eu me pergunto quem deve ser a outra que só aparece quando me esqueço de viver; e sinto tanta inveja, tanto ciúme da atenção que ela recebe de todas essas pessoas penduradas à minha volta, que apago de propósito as poucas linhas de raciocínio que o acaso casualmente me deixa traçar.

Pra ser bem sincera eu não culpo ninguém, e não digo que essas coisas são vontade de Deus por não me lembrar bem ao certo qual religião eu segui durante minha vida. Se é que houve alguma religião, de fato. Dessa vida tento recordar de algumas cenas, como quando ainda jovem tive o meu primeiro homem; as bajulações foram tantas que, depois de tantos arrepios de uma adolescente ensolarada de desejo, fiz questão de esquecer meu sutiã branco sob o travesseiro da mais nova traída da cidade. Ocorre-me lembrar também da época em que ainda cursava o ginásio e passava pela livraria que uma senhora de 80 anos atendia. Toda semana eu comprava um livro qualquer – desde espiritismo de Allan Kardec, romances policiais de Sidney Sheldon até os contos de Marina Colasanti –, e depois os distribuía para quem eu achasse que faria bom proveito. Naquela época eu sonhava em chegar pelo menos até os 60 anos, como aquela senhora que parecia ser muito satisfeita com o que fazia, ou pelo menos com a vida que levou até chegar àquela idade.

16:34, e trago à memória o meu ego de mulher autônoma que saía todo sábado à procura de quem me pagasse algumas taças de dry martini, para nas segundas-feiras receber rosas saudosas cuja o remetente eu meramente lembrava o nome. No fundo eu fazia questão que aqueles homens nunca se aliviassem da saudade que eu proporcionava; mas no entanto a vida jamais me deixou esquecer da segunda em que foram os lírios a bater na minha porta, a mando de quem hoje não recebe tantas juras de amor como recebeu um dia.

Prefácios de uma única vida, talvez escolhidos a dedo para que eu não precise lembrar das outras tantas memórias que se repetem até o momento.
Tudo isso me cansa, fui o que já não sou mais, tento ainda ser para que os outros nunca esqueçam o que aos muitos eu já esqueci.

De repente eu vou começando a cair, não sinto mais vontade de olhar a hora no relógio pra saber quanto tempo durou minha lucidez; me levanto da cadeira que teve a honra de sentir as lembranças minhas e de minha mãe construindo uma parede que nos separou das outras pessoas, e mais choro do que ando pra chegar logo ao espelho e ver se ainda me lembro de mim, se lembro do rosto que fazia meu marido desistir dos jogos no domingo e passar o dia todo na cama, se lembro do rosto que fazia meu marido desistir de todos aqueles jogos estranhos de domingo pra passar o dia abraçado comigo na cama. Meu marido, a propósito, é consultor de uma grande loja, e me garantiu que no final deste mês iremos no jantar que seu patrão promove nos finais de ano; ele não gosta que eu fique me gabando, mas neste jantar receberá um aumento que vai nos assegurar a compra da casa com vista pro jardim. Neste jantar que aconteceu a mais de 15 anos, ele vai brindar a sua esposa que começou tendo lampejos de esquecimento, mas que agora se conforma com resquícios de serenidade.

Eu queria mesmo que essa mulher de branco que me leva de volta para a cadeira de minha mãe soubesse que um pedaço de mim ainda mora aqui, e que fosse correndo dizer pro meu marido que ele já pode acender de novo o cachimbo que lhe dei para irmos à festa de seu patrão, que a propósito, acontece semana que vem para quase toda a cidade; que dissesse pra ele que eu daria algum dos melhores anos que tivemos juntos pra saber o que acontece nestes momentos em que tudo parece simplesmente dormir, e que brindará um pouco antes do fim a promoção do remetente dos meus lírios para toda uma cidade aplaudir e assentir com sorrisos sinceros. Eu te amo meu amor, e espero que semana que vem seja só o começo de uma vida repleta de lembranças pra você.

quinta-feira, 4 de março de 2010

Imperatriz

E ele pulava os degraus de três em três, de pés trocados; fazia questão de que o pé direito, quadriculado e sujo de tinta, fosse o único resquício que o desavisado recém chegado do prédio pudesse ver com o canto do canto do olho. Fechava a porta, não era daqueles que apoiava as costas e soltava o ar na esperança de sentir a campainha tocar. Sempre queria chegar mais rápido, sempre sonhava com um cronômetro em sua porta que o premiaria pelo menor tempo entre todos os tempos que perderam seu tempo descobrindo quem era o mais rápido, quem era estranho o bastante para ter as mesmas manias estranhas que ele.

Não queria aceitar mais nenhuma condição, mas a idéia de fazer coisas que talvez nunca façam sentido, que talvez nunca sejam destinadas às verdadeiras influências, era realmente mais forte que qualquer sorriso amarelo manga e meigo. E se não tinha nada nem ninguém pra que sua cabeça assentisse, só subia de três em três pra fazer valer a chave do bolso e a luz da sala, pra encarar logo o medo que tinha da própria cama e de seus dois travesseiros empilhados.

Se ela soubesse, não seria diferente. Os personagens não mudariam, o cenário seria completamente o mesmo, e a dúvida viria em forma de qualquer coisa inexplicável por muito tempo. Na bem da verdade, ele escreve tudo imaginando o dia que um par qualquer de olhos castanhos o indague por todas as coisas que não disse, por todas as coisas que não escreveu e muito menos telefonou por excesso de coragem; ele queria mesmo que arrancassem sua máscara daquela mesma velha maneira que anseia tirar aquelas roupas, aquelas dores, aquelas vontades.

Então corria. Imaginava uma grama não tão verde com seus carros plantados entre as árvores estacionadas, abria os braços e fechava os olhos na esperança de ouvir em seus passos a música que sempre quis inventar. Perdia o fôlego só pra ver o porquê de não se apegar nas coisas que levou uma vida toda pra achar, só pra tirar da cabeça o arrependimento de ter deixado na xícara um dedo preto e gelado de café; só pra ter a mesma responsabilidade que o muleque dono da bola, enquanto vai descrevendo os olhares sem sincronia que ainda estarão por vir.


''Sei que não há nada a esconder,

que tudo agora é tão natural.

E o tempo sempre espera o depois;

as vezes devagar vou ver o sol.''

Volver - Natural