era pequeno, devia ter uns 2 m². atrás de mim havia uma porta barulhenta, feita de boba pelo vento ou por qualquer pessoa que esbarrasse naquele metal velho; aliás, nunca soube se aquilo era metal ou não. na minha frente nada mais que um buraco e uma aba que me poupava do sol. o cheiro dali era uma mistura de almoço, com um pouco menta, canela e morango; além dos outros doces que não tinham sabor, mas deixavam um cheiro melado no ar. ali dentro só havia uma cadeira, dinheiro, balas e ingressos. essa cabine era vermelha por dentro, e não lembro de um dia ter reparado que cor tinha por fora.
já faz um tempo que trabalho por aqui, e nunca pensei que seria algo temporário por não ser um cara de muitos sonhos. eu só gostava de passar pela frente do cinema e ficar olhando, até que um dia, por acaso, me chamaram pra olhar de perto. não sei dizer não, da mesma forma que não sei reclamar; e deve ser por isso que naquela época eu era garoto, e agora faço a barba todas as tardes antes de ir para o meu mundo vermelho.
é tudo muito simples: pego os ingressos, devolvo o troco. as vezes até me poupam o comprimento e já vão logo dizendo o filme e a sessão. não me zango com isso, e acho até engraçado ver o estado de espírito das pessoas. quem vem sozinho é rápido, decidido; me dá o dinheiro contado e vai andando sem olhar pra trás. já os casais jovens sempre me cumprimentam, e volti meia tem um rapaz que pergunta qual bala eu aconselho para o filme, fazendo a moça ao seu lado ficar tão vermelha quanto o céu acima de mim. a propósito, o meu céu é abaulado e as vezes parece de fogo, cheio de nada além de algumas crateras de ferrugem.
vejo tanta gente, mas dificilmente me lembro de rostos. quase sempre me lembro de testas. não sei porque, mas me acostumei a fazer da testa a janela da alma, deixando de lado os irmãos que ficam abaixo da grande parede oleosa. na verdade devo ter ficado cego para olhos depois dela.
dela era pouco mais baixa do que eu sentado na banqueta que castigava minhas costas, e mesmo tendo os olhos tão escuros quantos os meus, sentia neles enormes refletores que faziam do meu céu, antes estrela morta, agora sol ofuscante. não sei que cor tinha o cabelo dela, e nem a cor do laço de seus sapatos. sei que em alguns dias era a última a sair, e pintava o caminho de perfume e som de saltos.
dela não voltou mais.
sabia todas falas, mas não sabia nenhuma cena. quando muito, dava uma espiada na tela por ser caminho pro banheiro. não gostava do horário do almoço ou de qualquer pausa. só queria ficar ali dentro, ouvindo e respirando meu vermelho. não pensava em muita coisa, e sempre alguém tinha que chacoalhar meu mundo pra dizer que por hoje tinha acabado. não que o resto era ruim, mas essa era uma boa hora.
me apoiava nos pés, e com minha cabeça no espaço prendia a respiração e fotografa a calçada a minha esquerda. voltava, sentava, respirava, pegava meu paletó e saía. ficava um pouco parado pros pulmões se acostumarem com aquele ar diferente, e para meus pés sentirem melhor a gravidade. sorria.
fazia da calçada meu tapete vermelho, e enquanto deixava meu casaco suspenso nas costas pelos dedos, guardava o isqueiro no bolso direito e segurava a fumaça no peito. escolhia alguma cena, lembrava das minhas falas e fazia dela correr de mim dobrando a esquina.acho que hoje é algum romance, e basta pra mim interpretar sozinho a cena que não vi.
vermelho faz minha vida quieta. dela faz minha vida simples.
''de um jeito tão certo que só cabe mesmo em mim.''
Nando Reis - Mosaico Abstrato