quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Conto

já ouvi falar muita coisa sobre muitos, e faz um certo tempo que parei de me preocupar tanto com eles. não os acho egoístas ou qualquer coisa parecida, só acho que são diferentes de tudo que existe; além do mais, dou graças a um certo ''Deus'', que já vi receber pedidos da maioria dos que adormeceram em mim, por ter criado tantos e tão diferentes uns dos outros. eles são incríveis!

ao contrário deles, nós não ligamos tanto para o tempo, tanto que nem sei quantos anos tenho. quando estou de mal humor, me acho azarada por não ter nenhum ninho de passarinho em meus cotovelos finos e secos. sou quase sozinha. meus melhores amigos sempre ficaram longe de mim, e por mais que estique cada vez mais os braços, nunca os toquei as mãos. vi uma garota escrever em um caderno algo a respeito de sua natureza solitária, e desde então, me tornei mais humana por não apenas existir, mas sim entender que minha natureza é só.

árvore. quase sem artigo, quase sem sexo.

mais humana me senti quando descobri ter um karma, igual ao do garoto que quando encostava em mim para acender um cigarro, via-se arrastado poucos minutos depois pelos cabelos por uma senhora mais velha que ele chamava de ''me solta mãe!''. era sempre assim.

ah sim, meu karma! nada mais é do que não saber o fim das coisas. não sei se a menina do diário ainda é só e compartilha a mesma natureza que a minha, porque nunca mais voltou; não sei se o garoto achou outro lugar para fumar em paz ou a última surra deixou-o mais saudável, porque minhas folhas nunca mais acordaram com aquele cheiro de liberdade queimada. entre estas fissuras no meu tronco, tem tantas histórias fascinantes com vários fins fascinantes criadas por mim; é uma combinação quase que infinita, quase que perfeita. hoje, não sei porque, pensei muitos naqueles dois que em nada combinavam.

o outono já tinha levado quase tudo de mim, mas me recompensava com inúmeros brancos e azuis em um só céu. e por uma dessas que os homens chamam de acaso, eles chegaram. a propósito, acaso pra mim sempre foi aquilo surpreendente que não merecia apenas ser contado, mas sim proclamado com um tom que só esse acaso pode dar. e nesse dia, deu.

dentre tantas sombras, foi a minha que escolheram, e sem pedir licença foram logo jogando bolsas e se apoiando em cima de mim. acho engraçado esse jeito de descobrirem um ao outro, pedindo pra mostrar cadernos e contar histórias sobre livros lidos. com eles é tudo tão engraçado, tão fácil.

lembro de um dia ter sido palco de uma conversa sobre uns tais de ''sonhos'' que os homens tem quando dormem. me pareceu incrível a idéia de viver coisas impossíveis enquanto se dorme, já que meus sonhos são momentos em que deixo de existir, mas tudo continua igual depois que acordo. gostei da história que um contava ao outro sobre estar sonhando e não conseguir se mexer depois de ter acordado. me identifiquei muito com essa parte, e não me pareceu tão estranho quanto parecia para os dois.

enfim, aquele outro casal não tinha nada de especial; mas me lembro que ela era muito mais bonita que ele. lembro também quando ele esticou as pernas e encostou as costas em mim, enquanto ela ajoelhava-se nele e parecia perder suas mãos pequenas nas outras grandes. eu era parte daquilo, tanto quanto um olho era parte do outro entre aqueles olhares sem sorrisos.

coisas assim faziam meu coração de madeira bater, me faziam mais humana.

depois disso, um vazio como se eu tivesse ido dormir por alguns dias; nada muda, e pelo jeito não mudará tudo que não sei sobre aqueles dois. saíram assim, sem mais nem menos. uma hora olhavam pras nuvens, e na outra torcia pro vento baixar meus galhos pra poder enroscá-los em mim.

só.

as vezes o vejo passando em frente ao bosque, e sinto até que tem vontade de vir alguma tarde e me contar o que aconteceu depois daquilo. um dia pensei que viria mesmo, já que entrou em um fim de tarde com uma caixinha preta nas mãos. nela havia um buraquinho pelo qual ele olhava e apontava para mim, antes de apertá-la de um jeito que lhe fazia falar algo. depois a baixava, e ficava olhando com um ar saudoso.

depois desse dia, as minhas versões sobre um final feliz eram pouco requisitadas pelas minhas folhas mais curiosas.

bom, acho que as coisas são assim. devo ter começado a sonhar, porque nas vezes que fecho os olhos vejo-o sentado em minha sombra com um papel na mão. nas vezes em que o sonho dura um pouco mais, ele começa a tirar terra do meu lado direito, e dentro deste buraco joga a história escrita em um papel dobrado. sinto que ele tenta agradecer por alguma coisa.

e os dias para mim são assim. a medida que passam, vão enchendo meus bolsos com mais histórias que nunca saberei o fim. eu não sei, mas eles também nunca saberão.

''They were sitting,

They were sitting on the strawberry swing.

Every moment was so precious''

Coldplay - Strawberry Swing

sábado, 17 de outubro de 2009

Vermelho

era pequeno, devia ter uns 2 m². atrás de mim havia uma porta barulhenta, feita de boba pelo vento ou por qualquer pessoa que esbarrasse naquele metal velho; aliás, nunca soube se aquilo era metal ou não. na minha frente nada mais que um buraco e uma aba que me poupava do sol. o cheiro dali era uma mistura de almoço, com um pouco menta, canela e morango; além dos outros doces que não tinham sabor, mas deixavam um cheiro melado no ar. ali dentro só havia uma cadeira, dinheiro, balas e ingressos. essa cabine era vermelha por dentro, e não lembro de um dia ter reparado que cor tinha por fora.

já faz um tempo que trabalho por aqui, e nunca pensei que seria algo temporário por não ser um cara de muitos sonhos. eu só gostava de passar pela frente do cinema e ficar olhando, até que um dia, por acaso, me chamaram pra olhar de perto. não sei dizer não, da mesma forma que não sei reclamar; e deve ser por isso que naquela época eu era garoto, e agora faço a barba todas as tardes antes de ir para o meu mundo vermelho.

é tudo muito simples: pego os ingressos, devolvo o troco. as vezes até me poupam o comprimento e já vão logo dizendo o filme e a sessão. não me zango com isso, e acho até engraçado ver o estado de espírito das pessoas. quem vem sozinho é rápido, decidido; me dá o dinheiro contado e vai andando sem olhar pra trás. já os casais jovens sempre me cumprimentam, e volti meia tem um rapaz que pergunta qual bala eu aconselho para o filme, fazendo a moça ao seu lado ficar tão vermelha quanto o céu acima de mim. a propósito, o meu céu é abaulado e as vezes parece de fogo, cheio de nada além de algumas crateras de ferrugem.

vejo tanta gente, mas dificilmente me lembro de rostos. quase sempre me lembro de testas. não sei porque, mas me acostumei a fazer da testa a janela da alma, deixando de lado os irmãos que ficam abaixo da grande parede oleosa. na verdade devo ter ficado cego para olhos depois dela.

dela era pouco mais baixa do que eu sentado na banqueta que castigava minhas costas, e mesmo tendo os olhos tão escuros quantos os meus, sentia neles enormes refletores que faziam do meu céu, antes estrela morta, agora sol ofuscante. não sei que cor tinha o cabelo dela, e nem a cor do laço de seus sapatos. sei que em alguns dias era a última a sair, e pintava o caminho de perfume e som de saltos.

dela não voltou mais.

sabia todas falas, mas não sabia nenhuma cena. quando muito, dava uma espiada na tela por ser caminho pro banheiro. não gostava do horário do almoço ou de qualquer pausa. só queria ficar ali dentro, ouvindo e respirando meu vermelho. não pensava em muita coisa, e sempre alguém tinha que chacoalhar meu mundo pra dizer que por hoje tinha acabado. não que o resto era ruim, mas essa era uma boa hora.

me apoiava nos pés, e com minha cabeça no espaço prendia a respiração e fotografa a calçada a minha esquerda. voltava, sentava, respirava, pegava meu paletó e saía. ficava um pouco parado pros pulmões se acostumarem com aquele ar diferente, e para meus pés sentirem melhor a gravidade. sorria.

fazia da calçada meu tapete vermelho, e enquanto deixava meu casaco suspenso nas costas pelos dedos, guardava o isqueiro no bolso direito e segurava a fumaça no peito. escolhia alguma cena, lembrava das minhas falas e fazia dela correr de mim dobrando a esquina.acho que hoje é algum romance, e basta pra mim interpretar sozinho a cena que não vi.

vermelho faz minha vida quieta. dela faz minha vida simples.

''de um jeito tão certo que só cabe mesmo em mim.''

Nando Reis - Mosaico Abstrato

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Que comece a temporada

justo seria se a música lembrasse você, se a música fosse você.

que ao invés de entrar nos meus ouvidos e sair na forma do que não vejo, conseguisse fazê-la o som do seu nome no intervalo que silencia, para aí então poder tocar de novo e me fazer sonhar nesse teto branco de rádio desligado.

"4:03...''

Elephant Gun - Beirut