quinta-feira, 24 de julho de 2014

visita

parabéns, meu pai.

talvez não bem saibas, estancada que fica por estas janelas tuas de mármore, quão florido é o cheiro pelos arredores de sua casa. chego por uma rara calmaria espalhada desordenadamente nessa rua ensandecida de três da tarde, placas alertando a ausência de saída que trancafia quem sabe almas ou caminhares sem vislumbrados sinais de fuga. duas moças de uniforme fumam sentadas por sob uma lixeira recém pintada e vazia, e a nomenclatura não lhe participa: fumam com as cabeças desabadas tal qual a fumaça de seus pulmões e cigarros que morre sólida pelos paralelepípedos.

desbravo o portão ao fim da vereda densa e invisivelmente tumultuada. bem me sinto nesse teu hall de entrada, nessas gramas e árvores que julgo como jardins imensos ainda que pontilhados por concreto. o porteiro tem o rosto acinzentado, talvez pelo reflexo cinza de seus cabelos e expressões de silêncio. errado é aquele que tira a vastidão das cores ao rosto do comedido e melancólico. errado sou eu, que julgo familiaridade em tudo que fulgura ao contrário nesse entorno com jeito de silêncio e nada mais. nada mais sei que essa mania de reduzir em quietude, e nisso não me dou conta ao assentir-lhe discreto, dizer em brevidade de minhas intenções de visita que começam assim que passar pela floricultura ao outro lado da rua.

o moço que me atende não combina com flores, e isso não sei explicar. peço conselho sobre lírios ou rosas que tenham aroma ou espessura invisível de pétalas que, ao meu ver, tanto podem agradá-la. diz de vasos sem sentido e arranjos disformes que muito me entristecem como quem não tolera sabiá em gaiola pequena. por fim dá a última cartada no aroma perfeito da rosa coral. na minha cabeça cheia de barulhos penso logo no time de Recife e fantasio uma flor capaz de concentrar em seu tronco a paixão em grito uníssono de um Arruda repleto. rio e ele diz que logo volta. atrás de mim habita um senhor de bengala na mão direita, vestido em favores que talvez apenas pelo andar manso o tornam elegante. chega e comenta coisas decifráveis apenas pela expressão dos olhos: uma boca sozinha de dentes e repleta do vermelho vermelho de sua língua e gengivas que se confundiam em tom homogêneo. sorriu e eu sorri, apertou os olhos em reprovação e julguei entender as mazelas do mundo. saiu sem que soubesse que nunca nada ou ninguém pode me ser tão claro do que suas expressões repletas de certeza; saiu tão logo o são bernardo trancafiado começasse urros infinitos que precediam a chegada de minha flor. penso agora se tais latidos de eternidade não me trancaram alguma parte por lá, uma espera ao pé da escada perfeita por ser apenas uma espera destinada. paguei achando desnecessário os ornamentos de plásticos e ramos, e voltando ao porteiro sentia os urros infinitos da voz do homem de bengala que me agradecia à nuca o troco recebido.

confesso os inúmeros corredores e a capacidade do tempo tornar estranha toda e qualquer parte nossa. havia entrado aqui ainda criança na mudança de minha bisavó, e poucos meses atrás na mudança da filha dela que é mãe de meu pai. fiquei impressionado com a quantidade das fotografias dos condôminos que habitaram em inconsciência toda minha vida. quem sabe de meus sonhos, das vezes que cruzei estranhos por olhares e ruas e senti um pertencimento talvez advindo de tais retratos. creio nunca ter me sentido tão em casa, às vontades que impelem no rosto um sorriso de andar descompromissado, mochila jovem jogada ao ombro direito que encara o sol na certeza da unidade. tirei o papel do bolso da calça, a flor já desfeita de seus adendos desnecessários, e beirando o muro esquerdo subi em bermuda e camisa por um calor efêmero de inverno nosso.

adianto que o quarto é dela, mas que a casa é coletiva: moram ali pai (bisavô meu), mãe (bisavó minha) e outras infinidades de irmãos (tios avós meus) que pouco conheço. talvez por isso tenha ficado, logo no começo, sem jeito ou maneira de conversar abertamente, perguntar sobre a vida e dizer que aprendi apenas das relações estreitas com o medo. acabei pedindo licença, mas a verdade é que o excesso de familiaridade com tudo, o que talvez justifique a insatisfação interna, já havia me descansado o corpo pelo pé da cama de minha vó e deixado demais utensílios ordenados ali pela falta de intenção. falei das tatuagens, dos cigarros, dos inúmeros motivos que lhe decepcionavam ideais de vida apreendidos desde cedo. desde cedo, e talvez unicamente aí fomos companheiros de tardes inseparáveis em que minhas fantasias desajustadas arranjavam meios pela sua boa vontade. falei das incertezas e das coisas que aconteceram sem graça, e olhando tua cabeceira ouvia a novena da quadra de cima louvando ao ritmo do vento que trazia tudo em calmaria: um fim de meio de tarde que dourava seus lençóis de pedra por gestos e verbos.

falei do pai, da mãe e de meu irmão que apruma a vida em ventos merecidos. disse enfim do livro perdido, da inocência de minha mãe que levou teu “círculo hermético” pra longe do meu querer. era mais pela curiosidade da dedicatória, disse, pela minha cabeça que naqueles dias já não ia muito boa e que hoje já não se lembra mais de trazer à tona. a mãe vai linda, inquieta das vontades do próprio peito que a tornam sempre mais dela. o pai descalça as botas na área de serviço e a gente já não reclama do cheiro; parece agora ter tempo de viver pelas coisas que tem vontade de viver, pelos sonhos que tem vontade de dividir comigo e com os copos que dividimos juntos dos outros.

peguei meu celular e expliquei as dificuldades de conexão. justificava a deselegância de largar meus olhos pela tela pensando sua estante que conheci pelos tempos da mudança. encontrei-a um dia, ainda esperançoso de achar a dedicatória perdida por algum canto qualquer da casa já inabitada. existiam ainda os móveis, o cheiro e o pó que tanto talvez seja resquícios de sonhos e afins. achei Drummond e Sidarta, ambos em capas brancas que beiravam os limites com o infinito. minha amiga que ficou com Hesse disse ter acordado pela madrugada em que terminou o livro, e na beirada da janela que recorta a Avenida Visconde de Guarapuava, uma luz forte iluminou todo seu quarto. disse que ainda assim dormiu em paz, e nessa hora me lembrei de você, dona Gerda. quanto ao Drummond, na noite anterior a menina havia me sussurrado a primeira frase de “A Mesa” num som quente que deixava a cidade toda em agasalhos e braços cruzados. mexia no celular na intenção de achar a poesia, e como quando explicava quaisquer tecnologias para ela, pareceu assentir uma incompreensão mal disfarçada.

achei que seria mais justo se a visita trouxesse junto teu livro e não um celular disfuncional, mas acabei só vendo beleza a partir do recorte dos olhos da menina. Drummond ficou com ela como paga, e sei bem que entende essas coisas. li de voz minha uma infinidade de versos que lembravam coisas tuas, teu lugar na ponta da mesa de domingo satisfeita do Schumacher e vendo a ascensão de seu irmão: sonhava em segredo que os dois corressem pela Ferrari, e a sensatez de meu pai desmentia, e as análises técnicas de meu irmão diziam das desvantagens. essas coisas existem numa impossibilidade de esquecimento, e sei que disso bem sabes. “nos iludirmos junto da mesa vazia” naquela tarde não pode ser desfecho.

deixei a rosa coral onde julgava apontar seu nariz de sorriso. possa agora talvez sentir as flores que inundam as ruas e corredores do quarto novo que divide ao pé da novena. levantei depois de pegar minha coisas, e uma abelha me acompanhou até a saída para desaparecer antes que eu pudesse pensar em qualquer coisa.

obrigado, menina.