parabéns, meu pai.
talvez não bem saibas, estancada que fica por estas janelas tuas
de mármore, quão florido é o cheiro pelos arredores de sua casa. chego por uma
rara calmaria espalhada desordenadamente nessa rua ensandecida de três da
tarde, placas alertando a ausência de saída que trancafia quem sabe almas ou
caminhares sem vislumbrados sinais de fuga. duas moças de uniforme fumam
sentadas por sob uma lixeira recém pintada e vazia, e a nomenclatura não lhe
participa: fumam com as cabeças desabadas tal qual a fumaça de seus pulmões e
cigarros que morre sólida pelos paralelepípedos.
desbravo o portão ao fim da vereda densa e invisivelmente
tumultuada. bem me sinto nesse teu hall de entrada, nessas gramas e árvores que
julgo como jardins imensos ainda que pontilhados por concreto. o porteiro tem o
rosto acinzentado, talvez pelo reflexo cinza de seus cabelos e expressões de
silêncio. errado é aquele que tira a vastidão das cores ao rosto do comedido e
melancólico. errado sou eu, que julgo familiaridade em tudo que fulgura ao contrário
nesse entorno com jeito de silêncio e nada mais. nada mais sei que essa mania
de reduzir em quietude, e nisso não me dou conta ao assentir-lhe discreto,
dizer em brevidade de minhas intenções de visita que começam assim que passar
pela floricultura ao outro lado da rua.
o moço que me atende não combina com flores, e isso não sei
explicar. peço conselho sobre lírios ou rosas que tenham aroma ou espessura
invisível de pétalas que, ao meu ver, tanto podem agradá-la. diz de vasos sem
sentido e arranjos disformes que muito me entristecem como quem não tolera
sabiá em gaiola pequena. por fim dá a última cartada no aroma perfeito da rosa
coral. na minha cabeça cheia de barulhos
penso logo no time de Recife e fantasio uma flor capaz de concentrar em seu
tronco a paixão em grito uníssono de um Arruda repleto. rio e ele diz que logo
volta. atrás de mim habita um senhor de bengala na mão direita, vestido em
favores que talvez apenas pelo andar manso o tornam elegante. chega e comenta coisas
decifráveis apenas pela expressão dos olhos: uma boca sozinha de dentes e
repleta do vermelho vermelho de sua
língua e gengivas que se confundiam em tom homogêneo. sorriu e eu sorri, apertou
os olhos em reprovação e julguei entender as mazelas do mundo. saiu sem que
soubesse que nunca nada ou ninguém pode me ser tão claro do que suas expressões
repletas de certeza; saiu tão logo o são bernardo trancafiado começasse urros
infinitos que precediam a chegada de minha flor. penso agora se tais latidos de
eternidade não me trancaram alguma parte por lá, uma espera ao pé da escada perfeita
por ser apenas uma espera destinada. paguei achando desnecessário os ornamentos
de plásticos e ramos, e voltando ao porteiro sentia os urros infinitos da voz
do homem de bengala que me agradecia à nuca o troco recebido.
confesso os inúmeros corredores e a capacidade do tempo tornar
estranha toda e qualquer parte nossa. havia entrado aqui ainda criança na
mudança de minha bisavó, e poucos meses atrás na mudança da filha dela que é
mãe de meu pai. fiquei impressionado com a quantidade das fotografias dos condôminos
que habitaram em inconsciência toda minha vida. quem sabe de meus sonhos, das
vezes que cruzei estranhos por olhares e ruas e senti um pertencimento talvez
advindo de tais retratos. creio nunca ter me sentido tão em casa, às vontades
que impelem no rosto um sorriso de andar descompromissado, mochila jovem jogada
ao ombro direito que encara o sol na certeza da unidade. tirei o papel do bolso
da calça, a flor já desfeita de seus adendos desnecessários, e beirando o muro
esquerdo subi em bermuda e camisa por um calor efêmero de inverno nosso.
adianto que o quarto é dela, mas que a casa é coletiva: moram
ali pai (bisavô meu), mãe (bisavó minha) e outras infinidades de irmãos (tios
avós meus) que pouco conheço. talvez por isso tenha ficado, logo no começo, sem jeito ou maneira de
conversar abertamente, perguntar sobre a vida e dizer que aprendi apenas das
relações estreitas com o medo. acabei pedindo licença, mas a verdade é que o
excesso de familiaridade com tudo, o que talvez justifique a insatisfação
interna, já havia me descansado o corpo pelo pé da cama de minha vó e deixado
demais utensílios ordenados ali pela falta de intenção. falei das tatuagens,
dos cigarros, dos inúmeros motivos que lhe decepcionavam ideais de vida
apreendidos desde cedo. desde cedo, e talvez unicamente aí fomos companheiros
de tardes inseparáveis em que minhas fantasias desajustadas arranjavam meios
pela sua boa vontade. falei das incertezas e das coisas que aconteceram sem graça,
e olhando tua cabeceira ouvia a novena da quadra de cima louvando ao ritmo do
vento que trazia tudo em calmaria: um fim de meio de tarde que dourava seus
lençóis de pedra por gestos e verbos.
falei do pai, da mãe e de meu irmão que apruma a vida em
ventos merecidos. disse enfim do livro perdido, da inocência de minha mãe que
levou teu “círculo hermético” pra longe
do meu querer. era mais pela curiosidade da dedicatória, disse, pela minha
cabeça que naqueles dias já não ia muito boa e que hoje já não se lembra mais
de trazer à tona. a mãe vai linda, inquieta das vontades do próprio peito que a
tornam sempre mais dela. o pai descalça as botas na área de serviço e a gente
já não reclama do cheiro; parece agora ter tempo de viver pelas coisas que tem
vontade de viver, pelos sonhos que tem vontade de dividir comigo e com os copos
que dividimos juntos dos outros.
peguei meu celular e expliquei as dificuldades de conexão. justificava
a deselegância de largar meus olhos pela tela pensando sua estante que conheci pelos tempos da mudança. encontrei-a
um dia, ainda esperançoso de achar a dedicatória perdida por algum canto
qualquer da casa já inabitada. existiam ainda os móveis, o cheiro e o pó que
tanto talvez seja resquícios de sonhos e afins. achei Drummond e Sidarta, ambos em capas brancas que beiravam
os limites com o infinito. minha amiga que ficou com Hesse disse ter acordado
pela madrugada em que terminou o livro, e na beirada da janela que recorta a Avenida
Visconde de Guarapuava, uma luz forte iluminou todo seu quarto. disse que ainda
assim dormiu em paz, e nessa hora me lembrei de você, dona Gerda. quanto ao
Drummond, na noite anterior a menina havia me sussurrado a primeira frase de “A Mesa” num som quente que deixava a cidade toda em agasalhos e braços cruzados. mexia
no celular na intenção de achar a poesia, e como quando explicava quaisquer tecnologias para ela, pareceu assentir uma incompreensão mal disfarçada.
achei que seria mais justo se a visita trouxesse junto teu
livro e não um celular disfuncional, mas acabei só vendo beleza a partir do
recorte dos olhos da menina. Drummond ficou com ela como paga, e sei bem que entende essas coisas. li de voz
minha uma infinidade de versos que lembravam coisas tuas, teu lugar na ponta da
mesa de domingo satisfeita do Schumacher e vendo a ascensão de seu irmão:
sonhava em segredo que os dois corressem pela Ferrari, e a sensatez de meu pai
desmentia, e as análises técnicas de meu irmão diziam das desvantagens. essas
coisas existem numa impossibilidade de esquecimento, e sei que disso bem sabes.
“nos iludirmos junto da mesa vazia” naquela tarde não pode ser desfecho.
deixei a rosa coral onde julgava apontar seu nariz de
sorriso. possa agora talvez sentir as flores que inundam as ruas e corredores
do quarto novo que divide ao pé da novena. levantei depois de pegar minha coisas, e uma abelha me acompanhou até a saída para desaparecer antes que
eu pudesse pensar em qualquer coisa.
obrigado, menina.