para V. L, que tanto bem sabe de tanto.
conto-lhes a história do filho e do pai deste. ambos únicos,
sendo este o primogênito numa ninhada singular que ao progenitor acabou sendo
mais do que suficiente; uma relação de abundância avessa à alegria ou qualquer
outro sentimento positivo que se faça valer do excesso como fonte. adianto-lhes
ser essa a versão capturada por meus ouvidos despretensiosos, estando a fonte,
e quem sabe a verdade, escondida no desenlace de um labirinto afora já sem
solução a que chamamos de vida, composta sempre dos causos que são espectros em
catarse da unidade ali mencionada. o simples fato disso tudo ter sido rascunho
já me afasta dos ouvidos que tive àquela vez. conto-lhes então a história que
um dia foi de meus ouvidos e que de minhas mãos entreguei ao juizado responsável
por meus olhos. façam dela aquilo que bem entenderem.
ainda que mereça o filho prioridade pela sua grandeza e
entendimento amplo ainda precoce, haja visto também a infinidade de
possibilidades que tem toda criança frente ao adulto definido em silêncio, começo
pelo pai na tentativa de manter uma cronologia plena e sem devaneios. por
último, adianto também o decorrer ser parte de tempos em que a medicina já é
senhora de si, capaz e desmistificada do que agora chamamos em prepotência de
crendices e inocência. pela trama haveria de existir a já gasta e previsível
personagem da mãe doce que aquieta pela gestação e fenece tão logo lhe rebenta
a vida ao ventre. admitamos que o ordinário passa longe da tragédia, e sinto
pesar nisso tão pouco contribuir no relato. subtraio a figura materna nesse
desfecho verídico que em nada acrescenta ou diminui os outros fatos. por fim voltemos
então a mocidade do pai, aqui ainda confundível ao filho que mais à frente será
desenhado em vossos quadros imaginários que formam o lido.
comecemos.
em infância o pai não pensava em responsabilidades,
escusando-se dizer a limitação do vocabulário mancebo na transposição do léxico
à suas duras correspondências em vida. talvez por isso brincava, galgava os
anos escolares sem muita dificuldade graças à exigência mediana que nos molda
medianos. diz o poeta maldito para termos cuidados com tais tipos, mas isso não
vem ao caso. perto de deixar de ser criança engravatou-se ao banco, pedido de
seu tio que devia ser aceito pela possibilidade de vida estável e promissora
cedida como favor por um amigo de outra infância que agora pouco vem ao caso.
assim foi. fez amigos, conheceu moças e mulheres até que entendesse que moças e
mulheres são desenhos feitos pela capacidade de nossos olhos. o apartamento em
planta condizia com o futuro prometido pelo engravatado amigo de seu tio, e
tudo que lhes digo e me poupo de dizer é que caso um dia visitem esse
apartamento, que sim, é uma daquelas sequencias de janelas do centro da cidade aparentemente
inabitadas, procurem pela estante em mogno situada em baixo do grande espelho
da parede à esquerda: fotografias mudas darão fé ao meu depoimento, e os rostos
sem expressão hão de condizer aos vossos retratos próprios compostos em vossas
cabeças desconhecidas por mim e por si próprios.
não diminuo o valor materno na vida do filho, muito menos a feminilidade
santa da mulher que por vezes é calma aos soltos gestos do homem. a questão é
que tal casal tinha clara a singularidade de cada um, homem e mulher
responsáveis por suas necessidades que não necessariamente eram sanadas no
outro. talvez seja justo dizer que habitavam separadamente o mesmo espaço, e
lhes peço que não atribuam aqui o julgamento de infelicidade ou até de
infidelidade. tenham sido talvez melhor do que todos nós. ela, como dito, se
foi em normalidade, ao passo que a descrição do prefácio parece ser suficiente.
contrário daquilo que se imagina ao pai recém viúvo, pouca
coisa mudou. o sorriso foi de sempre um comedido natural que achava paz em
coisas próprias demais para que pudesse alguém saber. por vezes se lembrava de
sonhos em que a esposa encontrava no filho a fonte de uma sede sentida há tanto
e que logo passava. talvez no fundo tivesse achado cruel o desfecho, mas não se
sabe de alguém que confissão ou sussurro tivesse partilhado. acho justo poupar
o esforço que requer o caminho até o fim àquele que aqui procura ideais de
gêneros subentendidos, posições despercebidas ocupadas numa generalidade que
dispõe homens e mulheres em afastamento progressivo. também saliento que
nenhuma luta desmereça ou ache desnecessária, porém aqui tais disputas nunca
encontraram espaço, e deito fé que certo estranhamento se deva à falta de
moldes por enquadrar tal retrato. de qualquer maneira, acho justo dizer que
aquilo que lhe doía eram os sintomas da efemeridade.
conheceu certo Donato semanas depois do nascimento do filho.
sapateiro de mão cheia, que deixou como novo o pé direito do calçado rasgado precocemente.
mal sabia que o pé direito de seu sapato era remessa final dos calçados que
Donato arrumaria em vida. contou-lhe a filha ou sobrinha do sapateiro que seu
pai ou tio arrumou-se na elegância permitida por sua simplicidade, e de violão
nas costas foi animar a festa de noivado de um jovem conhecido de bar. tombou à
terceira música sem dar muito trabalho. doeu-lhe perceber o caminho da foice
tão direcionado ao seu entorno, e calou como quem entende. da morte nunca mais
soube, e colhido foi anos mais tarde enquanto dormia um sono desavisado desses
de segundas à tarde. não convém, e falemos agora do filho.
desenvolveu cedo certa repulsa por dormir. sendo a
insatisfação traduzível apenas em palavras ou conceitos compostos destas, usou
de suas escassas e infantis ferramentas algébricas para dividir o dia em uma
trindade de oito horas. do pai recebia instruções da educação católica, ainda
que nunca tivesse visto ou sabido da presença do pai em alguma catedral ou
simples capela. talvez evitasse até praças de vultuosas arquidioceses. sinto. o
filho, às missas que ia sozinho aos sábados à tarde, renunciava o toque aos
próprios ombros como gesto de defesa contra as demais trindades que, ao seu
ver, possuíam sempre uma terça parte desnecessária. sobrou-lhe durante toda a
vida apenas o Pai e o Filho, testa e peito sem que nisso tivesse visto
referência ou transposição na relação com seu próprio pai. desbravou assim madrugadas
na companhia de Frederico, cachorro e único amigo capaz de habitar em
onipresença todas as fantasias e cômodos de sua casa e pensamentos que tanto
lhe eram morada. dentro do comportamento próprio dos cães mantinha feição de
companheirismo aos olhos abertos do filho de seu dono, fitando pelas suas
janelas cerradas e caninas as coisas que esse flutuar revela: o garoto por
vezes deitado, por vezes apoiado no beiral contando luzes acesas no prédio em
frente. não arrisco dizer das durações daquelas noites e muito menos do impacto à saúde tido nestes que desafiam o
metal do rosto pela oxidação das madrugadas afora. Frederico acabou fugindo
anos depois sem transparecer cansaço ou insatisfação aos tratos recebidos,
época em que nosso protagonista pouco se lembrava de tais guerras noturnas.
desconheceu, pelo esquecimento que acomete toda infância pequena, a razão das
bolsas por debaixo dos olhos, e assim de inconsciência relutava todas as noites
à hora da cama.
dentro de casa o silêncio era habitual. decifrava a presença
de seu pai pelas quietudes dadas em seu chegar manso: corrente sem trinco,
maleta no sofá e sapatos despostos logo abaixo da última cadeira da mesa de
seis. o que tirava os olhos daquilo feito pelo filho era a respiração liberta
tão logo o pai desenlaçava a gravata, jeito e maneira tão sutis que talvez a
nós tal som nunca passasse de nada que não placidez. assim foram. ao filho são
guardadas vagas lembranças de diálogos com o pai, todas em sextas feiras
espaçadas dentre meses confundíveis; este em sua poltrona que nada lhe
combinava, aquele à reta esquerda do quadrado imaginário formado pela poltrona,
sofá, janela e escrivaninha. ao garimpado das memórias, o mais novo julgava-se
sempre atento aos comentários feitos pelo outro à respeito de temas variados numa
probabilidade exata: esposa, mãe, mulher e demais infinitas personalidades
consideradas pelo marido, homem e pai àquela que lembrava sem dor. deixemos tal
retrato como fim de capítulo desta curta história. de mais detalhes acabei não
sabendo, mas em meu hábito de aglutinar e entender tudo logo pelas primeiras
aparências – estas em altas contas no meu perceber chapado de causos rasos –,
entendamos sem dar margem à curiosidade que esta época foi assim e apenas
assim. passemos por fim à vida adulta do filho.
os mais desavisados dirão que não pode qualquer filho sair
avesso à qualquer pai, ponderando inclusive laços biológicos, morais ou
afetivos como inferiores no imprimir do um ao outro através do inevitável fardo
da convivência. dou-lhes corda, e com ela façam também aquilo que calha à cada
gosto.
em tal momento o filho já é adulto, mantendo fugidios
pequenos traços de mocidade à poucos dos gestos e todos de seus olhares. tal
qual o pai, embarcou numa vida de escritório tão logo terminou seus estudos. a
intenção de tal prumada, e agora não sei bem se fantasio ou se faz parte do
relato apreendido, é impossível precisar. nunca ponderou desbravar o mundo até
certa idade, e fica descartada aqui a intenção de arrecadar fundos pelas
engrenagens estabelecidas à fim de delas escapar. quanto à independência
sonhada faço também pouco caso: saiu cedo de casa, depois que uma caminhada rotineira
pelos arredores de seu trabalho mostrou-lhe um pequeno apartamento de valor
enxugado por igual. as poucas coisas de sua cômoda e guarda roupa levaram, ele
e seu pai, numa única viagem que poupou grande parte do bagageiro do carro
pequeno. parecia invisível por entre o trânsito, tal sua cor desbotada em tons
que beiravam o inaudível do motor que nada roncava. não se sabe onde
originou-se o silêncio que tanto lhe habitavam apartamento e conversas e atos,
mas era claro que envolvia quaisquer que fossem suas extensões e caminhos. o
pai não subiu, e a única parte sua que frequentou o novo apartamento do filho
foi a voz: ligações pontuais às oito da manhã nos dias do próprio aniversário e
do de seu filho. este não sabia de datas, e raras foram às vezes em que lhe chamou
atenção o nascimento dos outros. não se perguntava muito talvez pela falta de
curiosidade, talvez pelo excesso dela em de nada saber. nenhum conceito de
desapego ou de compreensão do vazio das tradições: apenas silêncio.
até onde sei, trabalhou por vinte e três anos no mesmo setor
do escritório. recebia promoções em espaços curtos de tempo, mas nunca deu-se
ao trabalho de olhar o contracheque. moldou a vida ao primeiro salário integral
do cargo que exigia camisa e sapato, dispensando à gosto do funcionário o uso
de gravata. pelos aumentos desapercebidos nos ordenados não desenvolveu o hábito
de pesquisar preços ou adequar lazeres à conta bancária. fazia compras na
mercearia de esquina à lotérica em que pagava as contas todo dia quatro: poucos
papéis e o talão das prestações do apartamento que havia comprado por exigência
do proprietário. não eram muitas as palavras que trocava com o casal esbranquiçado
dono da mercearia. pela concorrência dos mercados maiores acabavam ficando, de
maneira até frequente, sem estoque para grande parte das mercadorias. existiam receosos
quando chegava o quarto dia do mês e as prateleiras de alimentos não tinha o
que oferecer. ainda assim entrava o rapaz, pegava o pouco ainda por vender e
saia deixando a quantia da compra por inteiro. na primeira vez tentaram
explicar, falou-se inclusive do senhor ter se exaltado e sentido certa tontura,
mas o rosto num azul de céu recém desperto do moço se comportava inconsciente
numa feição de sorriso que estancava qualquer pretensão de discordância. ainda
depois de fecharem a mercearia, poucos anos após definida a aposentadoria e já conformados
com o manso fim cúmplice tido pelos afortunados, levantavam as portas tão logo
amanhecia o quarto dia do mês. na véspera iam ao mercado comprar os itens
desejados pelo rapaz, lista que traziam incrivelmente clara às ideias já um
tanto crianças e levadas. amavam-no como filho, e disso nunca soube.
adianto que do filho já não sei mais. a última parte da
história que ouvi dizia de um fim de expediente de segunda-feira em que a
encarregada pelos telefonemas urgentes o chamou à sala da gerência. disseram
que o síndico do prédio de seu pai acabara de ligar e a empregada ou o
carregador de compras do mercado haviam-no encontrado na poltrona da sala ou no
sofá; a ligação era ruim e só adiantava que as medidas já haviam sido tomadas. aconselharam-no
um advogado de confiança da empresa que havia cuidado de outros casos similares
e deram-no uma semana de folga. ouviu tudo estranhando o choro da funcionária
moça, e na impossibilidade de ver o próprio rosto, ou até mesmo na ausência de
saber a aparência do próprio olhar, desconheceu que as olheiras de sob seus
olhos lhe tornavam triste e sentido e inconsolável; um carrossel de aparências
comuns que diz tanto numa verdade que só murmura silêncio e ausência em
qualquer que seja o semblante.
em dois dias estava tudo resolvido. o tal advogado de
confiança colheu algumas assinaturas e transferiu bens e saldos bancários em
tempo recorde condizente aos ordenados astronômicos. do apartamento cuidou o
síndico de alugar à um casal de bem, amigos de parentes distantes que se
mudavam recém para a cidade grande. ainda sanaram com a venda do carro algumas
dividas e despesas burocráticas, e na tarde do segundo dia seu pai fora enterrado
ao lado da mãe da esposa na presença de seis pessoas, levando-se em conta dois
funcionários da funerária que não tiraram o boné em momento nenhum: morenos num
uniforme verde que trazia escrito pelo peito e pelas costas o suor que cada
enterro requer. na ausência de lágrimas, a necessidade do choro requerida em
todo adeus foi sanada aos olhos divinos.
talvez digam os mais céticos que o caminho do filho tenha
sido igual ao do pai, com exceção deste nunca ter em sua cria o título
repetido. na verdade disso não se sabe, mas assumo que esperar o contrário
seria ser esperançoso ao fato irremediável. assumo fé verdadeira naquilo que
ouvi, e por quais motivos não entendo bem aqui transcrevê-los. admito certa
curiosidade de conhecer a mercearia, sondar sentado em algum banco desses
nossos espalhados pelo centro e bem saber qual silêncio combina mais com os
retratos de minha imaginação. talvez tenha sido o melhor que pode a única
imagem que soube ter, uma consciência prematura presenciada apenas por
Frederico de que não havia muito por ser feito. quem sabe. de meus retratos o
vejo pintado numa sala sem espelhos, ausente do silêncio que tudo entorna por
dentro de suas olheiras não sabidas.