essa é a história de um homem. apenas uma história da vida de um homem que sempre é a vida de tantos outros homens, de tantas sempre outras histórias. conto-a pelos meus olhos. ainda não sei se por ser também minha, ou por ser grande parte daquilo que agora percebo.
“éramos os donas da rua”, e a fala excitada, os olhos já voltados às memórias difusas e recém desanuviadas da neblina do tempo, iam me cruzando pernas e braços, automaticamente alinhando postura e atenção, exercendo sobre o curioso a força que a sinceridade impõe. contava que acreditava ter cerca de onze anos, numa segurança temporal que tornava a história possível apenas nesse espaço de infância. deixou claro que havia uma certa inocência. diferente da que encontra em seus sobrinhos, da que vê na criança de mão dada à mãe por essas ruas sem movimento que dormem o Água Verde. eram todos donos de seus passos.
imagino cerca de vinte meninos, cada um com o mapa do bairro impresso na sola dos pés descalços. cada árvore escalada era responsável direta por tornar cada um mais corajoso. talvez houvesse futebol, qualquer outra brincadeira exclusiva à inocentes. acredito que não importa. sei que ele não soube me dizer quanto tempo duraram esses dias de meninice pura, muito menos fez questão de entrar em maiores detalhes. soube apenas me dizer que, de repente, houve uma ruptura. tentou explicar que a sensação daquela ingenuidade era como ouvir durante toda vida uma eterna música baixa, reparada só de quando em vez. ‘’a gente não sabia de que jeito éramos’’, e à criança nunca coube entender essa simplicidade. e ficou quieto e só pode me dizer que de um jeito extraordinário, pra cada um dos cerca de vinte meninos, o volume do que era detalhe foi levado ao máximo de uma só vez, e a vida passou a ser alta demais pra cerca de vinte pares de olhos que ainda não conseguiam entender o que era aquele som alto. como que por uma sincronia impossível, todos já bebiam demais, usavam drogas demais. porém, ainda crianças, ainda resplandecentes de uma infantilidade única. só lhe haviam aumentado o volume, e o som alto de tudo que era cinza na vida só podia incomodar o que ouvidos de criança não foram feitos pra entender.
cada rua era disputada com os meninos de onze anos do bairro vizinho. “a inocência é que era incrível”, e sinto que a partir de hoje, qualquer meio fio decorado de meninos sentados vai me lembrar essa rapaziada, descobrindo sensações, plenos e sinceros em panos com cola, em olhos e punhos machucados. não importava a ordem, não importava nada que não uma vida no ritmo dessa música que de repente ficou tão alta. eram crianças de onze anos, sem ser necessária maior precisão, rindo de um jeito que só a infância ensina, não entendendo de um jeito que só a infância embeleza.
acredito que durante toda essa infância acabou sendo verão. as ruas ficavam mais alaranjadas nos fins de tarde. talvez só nessa hora o volume baixasse, e cada um dobrava suas esquinas, entrava em casa e virava filho pra toda mãe que ainda reclama da roupa suja, que sente a casa inundada de uma inocência que sempre escorrega das mãos de mãe de um jeito inevitável. eram mães e filhos, e as coisas pareciam realmente certas demais.
não tinham dinheiro algum. nas mercearias, a inocência de seus onze anos era colocada em dúvida. tinham bolsos revistados, passos empurrados por olhares vigilantes. de qualquer forma, juntavam todas suas moedas ganhas de pais cansados, trocos esquecidos em bermudas do pão de todo fim de tarde alaranjado. talvez um ou dois dos cerca de vinte meninos já recebessem salários escassos, oriundos das primeiras vezes em que perdiam o tempo da brincadeira ensacolando compras, usando uniformes que deixam as crianças sempre tão iguais, inevitavelmente com a mesma cara de outono. ‘’cada um ajudava com o que podia’’, e chegava sexta-feira e iam até o centro somando moedas, desamassando notas embolotadas. o catalisador do fim de semana dependia da soma. foram raras as sextas e sábados e domingos de cocaína, de ritmo infinito, de mãos e corpos inquietos à procura de qualquer que fosse a coisa, como se sentissem o fim de qualquer tempo puro, como se fossem uma árvore à mercê do outono que sempre chega. na maior parte das vezes o dinheiro era pouco. usavam da criatividade, e recombinando remédios em copos de vinho, voltavam pra casa sempre de dentes tingidos, de inocência sempre alvejada do volume alto da vida.
penso na naturalidade com que tudo acontecia, de como foram inconscientes os passos que saíram puros de uma infância de onze anos e rumaram tortos à uma vida desmistificada, que nos faz sentir cada vez mais áspera a nossa árvore de memórias, cada vez com um punhado menor de lembranças puras penduradas em nossos galhos assimétricos. percebi a inconsciência do tempo para esses meninos como se fosse o verão de suas vidas, numa existência engessada em quatro estações, sempre ordenada em vida, morte, gestação e nascimento, ficando à cabo do acaso a responsabilidade de ter situado vinte meninos em uma mesma infância de verão eterno.
quando o outono chegou, não importava tanto o frio. o vazio era dos janeiros e fevereiros quentes que já não pareciam tão iluminados, tão de tardes alaranjadas, de raios de sol encaracolados. era tudo como se o sol tivesse olhos castanhos que ofuscassem numa leveza de carinho, marcando na retina um sorriso que fazia sorrir. faltava alguma coisa. os meios fios cada vez mais vazios, onde os corajosos que subiam as árvores mais altas da rua faziam tanta falta. quando o verão acabou, quando a sensação de ter onze anos já não era tão clara, veio um outono de drogas pesadas, com roubos que não deram certo, com uma sede de coragem nunca antes vista. os quase vinte já não eram mais tantos assim, e a covardia ficou parecendo necessária demais pra seguir o caminho de árvores secas, num outono rígido demais dentro do peito de cada um dos que sobravam vivos e covardes, livres e parados. por uma última vez todos os quase vinte meninos andaram juntos pela rua principal, dobrando esquinas aleatoriamente, tendo consciência que tiveram onze anos por tempo demais, e que chegar em casa já não transbordaria o peito da mãe da inocência de outrora, em um tempo onde as coisas eram certas demais pra não serem eternas.
e alguns foram presos, e outros morreram, e outros ainda usaram drogas demais e nunca conseguiram trazer de volta o olhar pra coisa alguma. eram os mais corajosos da lista antes organizada na destreza de subir em árvores. e os outros só podiam esquecer disso tudo, aprender enfim à entender todo esse som alto, à levantar dos meio fios e deixar os onze anos pra trás.
“não sei como fui virar professor”. sinto que ele poderia ter sido qualquer coisa. ele tem olhos de quem pode ser qualquer coisa. pode ser aquele a ser sempre o último a sair do bar. pode precisar ouvir o barulho das portas de aço, sentir cadeiras e mesas vazias pra finalmente se sentir em casa, sentir que o dia realmente valeu a pena. de fato, faz isso quase todas as noites. eu bato as portas, levanto cadeiras, e de mãos cheirando à chaves entro pela porta dos fundos sem precisar sequer levantar os olhos. meus ouvidos sempre dilatados no fim da noite. sei que o canto dele está sendo dele, que os olhos podem, mais do que nunca, ser qualquer coisa que quiserem. é como se de seu copo e garrafa emanasse uma mágica qualquer.
nessa noite sentei-me a sua mesa na vontade de dizer que o dia foi puxado, que ser garçom deve ter sido mais fácil em alguma outra época. sentei-me na esperança de ouvir qualquer coisa que não um pedido por um copo, por um cardápio, uma foto eternizando o vazio que cada um leva em forma de sorriso amarelo, cada um com sua árvore presa em um outono de pra sempre. sentei-me. tinha ainda as pernas descruzadas, braços apoiados atrás da minha cabeça sempre calma demais. a história dele ainda não era a minha, não era nada daquilo do que percebo. era como se, até aquele último suspiro cansado que soltei, eu ainda tivesse onze anos em um verão eterno de minha infância.
foi um sábado. diga-se de passagem que foi sábado, e diferente dos outros dias, ele havia chego cedo no bar. salão de festas fica no fundo, e naquele sábado, diga-se de passagem que era tudo diferente demais. conversas poucas dos primeiros que chegam, e eu organizava mesas e alinhava cadeiras achando o volume alto demais. parecia que a cerveja lá dentro durava mais tempo. que as risadas eram mais duras. que quaisquer que fossem as coisas. por mais sequenciais que obrigatoriamente fossem. paravam em pontos finais. de repente. eram sorrisos chagados, rostos marcados de alguma coisa pesada, que marcavam também os olhos dele, que sempre puderam ser qualquer coisa, e que ali existiam apenas estáticos, mudos como se ser qualquer coisa não tivesse nunca ter sido opção. e foi só depois disso que o dia acabou, que eu me senti cansado demais e cheio de cheiro de chave na mão. acho que, até ali, eu ainda tinha olhos de quem tem onze anos em um verão eterno.
e me contou, deixou as impressões de todo seu tempo. fez tudo sem me olhar, de copo na mão, de gestos estáticos. minhas pernas e braços já haviam sido cruzados pelo tom sincero. jogou os olhos nos meus, e eu tinha vontade de falar que eu ficava ali dentro à noite toda, e que meus tímpanos ficavam meio que abertos demais por um certo tempo. queria que ele falasse um pouco mais baixo, que esperasse eu me levantar e baixar um pouco esse volume que até agora tem me incomodado tanto, tanto. ‘’eu sou um cara bom’’, e realmente ele é um cara bom, e todas as pessoas que não estão mais no bar deveriam estar ali, compartilhando o volume extraordinário que as lembranças ganhavam na voz dele. e lhe sobra perceber e me contar que todo mundo que eu vi hoje, que me marcou os tímpanos naquela sensação pontual de chaga, de uma covardia compreendida, era quem sobrou dos cerca de vinte meninos que escondiam meios fios enquanto sentados e sorridentes. ‘’hoje foi um desses encontros de depois de muito tempo’’, e ele me diz de novo que se acha um cara bom, e que nunca entendeu por que diabos sempre teve tanta raiva dentro de si, por que não conseguia só entender que as coisas eram daquele jeito, que a revolta não sabia levar pra lugar nenhum. ‘’e tinha muita gente ali que tinha acabado de sair da cadeia, que cata lata pra poder continuar’’, e eu pensando que o outono doía mais por um dia já ter sido verão, e estar vivo não é motivo de tanto orgulho assim, já que nunca havia visto um salão de tantos olhares baixos, nunca havia visto um peito meu tão de verdade. e “a gente fazia muita merda”, ele me dizia, ”e hoje eu passei a tarde com toda essa galera que cresceu comigo, com toda essa galera que conseguiu ficar viva, por que a gente usava droga demais, e todo mundo que sobrou ali dentro sabe que é covarde, que pode ter acabado de sair da cadeia, como de fato aconteceu com dois ou três, mas que é covarde. quem escalava aquelas nossas árvores mais difíceis, quem sempre dividia a liderança da lista de coragem, esses sim já morreram, já não trazem atenção no olhar”. hoje eu senti que todo mundo ali sentia um pouco de vergonha de estar ali, que evitava comentar de quem tinha morrido por que não queria se ver como covarde, nessa vida que estar vivo não é mérito pra ninguém. “e sabe?, eu entendi uma coisa hoje”, e se eu que conseguir entender aquilo tudo era o cruzava mais meus braços, apertava mais minhas pernas. “eu sou um cara bom, e eu percebi que eu tenho uma coisa muito ruim aqui dentro, que acha o sistema uma bosta, que acredita que tá tudo errado, que o mundo tá errado. hoje eu entendi. é por causa deles, sabe? eu carrego aqui dentro todos esses caras que não tão mais com a gente, que me ensinaram a viver, que não foram covardes. hoje eu entendi” e ele chorou, e eu sorri de um riso que veio numa contração involuntária do meu rosto, e a gente se olhou, explorado e explorado, olho no olho, minha mão no ombro dele, e era carta demais em cima da mesa, era a vida dele não conseguindo mais não ser parte da minha, e a gente ficou mais puro, mais criança, mesmo tento desvendado essa magia toda que a gente vai colocando nos nossos dias cinzas.
e minhas pernas formigaram, e meus braços, pela primeira vez, despencaram do meu colo até o topo de minha cabeça que já não parecia ser assim desse jeito tão leve demais. a verdade é que tudo sempre esteve aqui. dá pra reconhecer as sensações. é como eu criança ganhando livros desde cedo, passando os olhos cedo demais pelas realidades que só conseguia sentir, ouvir num volume alto que não me dizia muita coisa. o meu herói acordava sempre de pijama cinza, escovava os dentes sem cor na pia que refletia o céu nublado pela única janela do apartamento. e eu não entendia que os livros de crônicas eram histórias separadas, e eu só podia acreditar sem entender que acordar num apartamento cinza era uma tarefa difícil, coisa de homem de coragem. toda criança quer ser seu herói.
e eu fui eternamente acordando e escovando os dentes e tomando café, de maneira inocente, de maneira infantil. meu cinza de criança sendo cimentado. eu em uma infância de onze anos em um verão que sempre foi cinza em minha árvore nunca antes percebida. até que o outono toma conta de toda a cabeça, seja a cabeça o solo onde todo homem tem sua árvore de lembranças plantadas. o frio na barriga agora faz sentido, longe de ser uma legião de borboletas que tão bem imitam anjos, longe de ser qualquer coisa que não uma árvore em um outono que parece ter começado justo na hora que meus braços despencaram até minha cabeça.
um dia, vem o estalo. não é a questão de ser o que um dia moldamos, essa continuidade organizada, caminho guiado por passos que desbravam corredores de ônibus logo pela manhã na busca de bancos livres, de assentos com vista preferencial para os pontos que cada dia vão ficando mais pra trás. é, de fato, se ver sendo o que nunca tínhamos percebido ser, e que de fato fomos, e que de fato agora explica todo esse conjunto de fatos que cruzou meus braços e pernas, que colidiu os olhos daquele que ainda agora pode ser qualquer coisa, com meus olhos que agora entendem o caminho de meus pés, entendem meu herói de crônicas cinzas.
levantei. lembrei de baixar os braços pra pegar a chave do carro, colocar a camisa. fazia frio. a porta dos fundos precisa ser aberta sempre com as duas mãos. empurra, gira a maçaneta. frio. o portão é de ferro e ferrugem, e deixa minha mão com cheiro de chave. meu último cigarro sempre tem cheiro de chave e fumaça. entro no carro. dou a partida e arranco. arranco de mim toda ideia de verão, toda ideia de ter onze anos. naquela noite, que de passagem acabou sendo sábado, olhei pra minha árvore com os olhos de um homem que me ensinou a ter olhos de quem pode ser qualquer coisa.
naquele sábado começou meu outono.
sábado, 25 de maio de 2013
Assinar:
Postagens (Atom)