gostava de contar histórias, mas nem por isso falava demais. foi tão discreto enquanto foi que não se sabe se sempre foi ou por mania recente tomou gosto em passar despercebido. usava sempre as mesmas roupas. tantas vezes usou sempre as mesmas roupas que era difícil saber o que era roupa e o que era Francisco. não sabia mesmo era ouvir as histórias dos outros. só ele sabia que, na verdade, não gostava de ouvir as histórias dos outros. outros estes que, ainda assim, confiavam à Francisco os raros dias vividos em suas vidas de dias passados, de recalques e conformismos, não importando a ordem que tomassem recalques e conformismos nas histórias de seus dias vividos. vidas de dias tão raros entre seus vários dias apenas passados. talvez fosse por conta do olhar de Francisco, sempre tão cheio de suas mesmas roupas de sempre. o sempre passa confiança, assegura a intenção. contam que foi por conta disso que Francisco sempre sentiu muita saudade de tudo que fosse passível de sentir saudade. jogou fora suas fotos por não gostar da saudade que tinha de sua inocência do passado, da inocência que todo passado sempre tem quando comparado com as coisas que estão sempre por passar e não passam. dizem que gostava mesmo era de contar histórias.
quando era mais jovem aprendeu tudo que precisava. o destino lhe afastou das pessoas que trazem consigo os segredos da vida e do tempo, e não tomando conta da dimensão que as coisas tem por de trás dos muros, entendeu o mundo inteiro e todas as partes desse seu mundo inteiro ainda jovem. as pessoas, sendo elas mundo e parte do mundo ao mesmo tempo, foram também ficando iguais para Francisco mais ou menos nessa mesma época. estes foram dias em que Francisco ainda era um jovem um pouco mais velho, e para as pessoas que conheceram as pessoas que conheciam a história de Francisco, foram nessas manhãs tardes e noites que sua vida transparente foi mais radiante.
contam que foi quase um conformado, quase um paciente. antes realmente gostava de ouvir as histórias dos outros e dos outros tantos que acontecem por aí afora nesse mundo. sentava e levantava e andava, e da forma que lhe parecesse melhor, ouvia tudo que poderia ser ouvido. depois que as pessoas e as coisas começaram a se mostrar iguais, e até hoje não se sabe ao certo quando foi que isso aconteceu, Francisco entendeu que apenas contando todas as histórias que conhecia poderia encontrar qual história era diferente das demais, qual história não era uma e todas as outras ao mesmo tempo; história que fosse, por fim, tão discreta e despercebida quanto Francisco, digno de passar em branco frente a um espelho que tudo sempre mostra.
percebeu a intenção das vozes com facilidade, e julgou desconhecer apenas as coisas que lhe travavam a garganta de borboletas: era uma espécie de presságio, uma coisa incrível como joaninha no braço que torna um dia comum em um raro dia comum de joaninha no braço. a voz se dissipava por conta das alvoroçadas asas entre a laringe e a epiglote de Francisco. quem testemunhava sua reação de descoberta em uma vida há tempo o bastante entendida, lembrava logo da criança da família que toda família tem, que vê sentido em tudo que parece sem sentido na vida criança de descobertas. contam que quem tudo isso via e ouvia passava a acreditar que Francisco, da mesma forma como contavam algumas pessoas desacreditadas por já terem visto o impossível gaguejar de borboletas, ficava quieto de repente; tão de repente que todas as coisas pareciam ter sempre estado no mesmo lugar de sempre, como se o lugar de sempre fosse o único lugar que pudessem ter estado por todo o tempo. por fim, Francisco sempre parecia longe demais para voltar a tempo de terminar a história, e de olhos serenos e rosto distante, não percebia a movimentação de chapéis postos e passos rumados de todos que ouviam os fatos de suas próprias vidas metamorfoseados na vida dos outros. assim, compreensivos de que o moço se calara por que assim precisava ser aquela história, iam embora em uma plenitude cruel e passageira. contam que o espanto vinha quatro noites e três tardes depois, onde a volta do entendimento pleno à realidade causava as mais estranhas reações nos que testemunhavam o que não podia ser verdade.
os cínicos de olhar explicavam, frente aos depoimentos atropelados dos loucos e santos, que esse gaguejar de Francisco era apenas o choro de homem
bom, decorrente da pedra, que entre todas as pedras que engolimos, é sempre a única que consegue entrar na fenda sincera das lágrimas, sempre por uma essa pedra de transbordar o copo cheio de nossas almas. Francisco, porém, nunca chorou. dizem que certa vez admitiu não lembrar de ter chorado. como não sabia qual o peso de uma lágrima, confundiam seus olhos curiosos frente à quem chorava, com olhos de caridade e compaixão, e sem querer, pela primeira vez, não percebeu que durante a vida foi para os outros tudo que na verdade não foi, assim como de fato acaba acontecendo com todas as outras pessoas. acreditam, porém, que não foi dali que percebeu a vida já vivida muito antes do pé ser posto pra fora de casa, de histórias dos outros resultantes de um simples apanhado da vida de outros
desconhecidos, unidos pela obrigação de serem a mesma pessoa, sempre tão diferentes uns dos outros, sempre tão iguais frente aos olhos de Francisco.
se aprender era contar histórias, contava e contava na esperança de se encontrar, despercebido e discreto como sempre foi na vida das outras pessoas, tão pessoas como ele e todos os marcelos, henriques, luizes, cristianos e fernandos, sempre tão a mesma pessoa. dizem que nessa época Francisco ainda não tinha a plena certeza que se tem da morte e da repetição de que todas as histórias são as mesmas histórias, e talvez por isso desfrutava a emoção das borboletas na garganta como se encontrasse arco íris nos céus das cidades de chuva e sol.
Francisco ignorava o fato de ser tudo que era por nunca ter quisto ser nada. conformou-se com a obrigação da existência e da efemeridade, e nunca culpou seus pais, os pais de seus pais, as doenças, os acasos, as cascas maduras das frutas verdes, as joaninhas desinteressadas, os carros, os sinais vermelhos, os sonhos quase esquecidos, as comidas estragadas, a chuva, o relento, o cansaço, o caco de vidro, o pé descalço, a barba, o fim sem aviso. tudo era por assim ser, e como novo usuário das regras, se acostumou desde quase sempre a ir conforme as coisas pedem. acreditam que isso aconteceu justo naqueles tempos de vida em que a juventude traça rasas linhas de saudade em tudo que se vê, tão suaves a ponto de não marcarem a próxima página, branca do alvo da alma, do grafite dos dias cimentados de passado, concretos que são na falta que nos fazem. pode ser que Francisco tenha sido jovem por mais tempo que o comumente se é.
contam que Francisco de verdade só houve um. os demais foram e serão franciscos por adjetivo. certo João foi um tipo de gente vítima da logística universal. acabou nascendo sem a atenção, característica inata do corpo humano controlada de dentro dos olhos por recém nascidos ainda não nascidos. sem rebentos oculares, paridos antes da hora por erro dos céus, João olhava sempre para a mesma direção. não importava pra qual lado lhe virassem a cabeça, sempre parecia procurar alguma coisa que não podia ser achada. não falava, não respondia. poucos sabiam como aparecia sentado em sua varanda e em que horas desaparecia na sua casa sem janelas. mesmo que os mais cínicos de outrora o achassem vazio, como de fato realmente era, a fé daqueles que acordam cedo todo o dia falava mais alto, tornando João, de ser vazio à persistente na incansável busca da atenção perdida de seus olhos. conta a história que quem conta essa história, exatamente nessa hora, olha para o nada e pensa nos olhos de João, lindos de tal jeito que ser joão passou a ser sinônimo da beleza que toda menina morena tem de cabelo preso no topo da cabeça.
certo dia um rapaz, daqueles que acredita que o tempo só passa para os outros, viu nos olhos de João com a cara dos olhos de Francisco - personagem conhecido na época por todo o centro da cidade como "aquele um de Deus que já não é mais jovem e ouve os aflitos sem voz". de curiosidade atenta e assustada frente ao olhar perdido de João, o rapaz, não se sabe se do susto ou da curiosidade que extrapola, sentenciou-o de risada temerosa e dedo em riste: "francisco!", da mesma forma que alguém chama outro alguém de qualquer coisa que lhe defina. o "francisco!", dito com o timbre de voz daqueles rapazes que tem todo o tempo do mundo pra não pensar na morte, realmente era de verdade. dizem que aquele rapaz viu, pela primeira vez, como João era francisco de olhos, sempre eternos e presentes, calmos e portuários. esse mesmo rapaz acabou nunca sabendo que João não o percebeu naquela hora e nem em hora nenhuma das outras horas de sua vida, assim como acabou nunca percebendo nada nem ninguém por conta dos seus olhos órfãos de recém nascidos não nascidos. a falta da atenção dos olhos de João o tornou um espectador da vida, sempre sentado em sua cadeira desde cedo até tarde, sendo sempre vazio para os cínicos e lindo para os de fé. foi daqui que perpetuou-se o erro de que João era Francisco de nascença ao invés de ser simples francisco de olhar. os que ouviram o rapaz sentenciar João de "francisco!" apenas de olhos, acabaram achando que João era Francisco de nome. as pessoas talvez também aceitassem a vida como um conjunto imutável de fatos imutáveis, e por conta disso, mesmo os que sabiam que João não era Francisco, acabaram aceitando a ordem das coisas e passaram a chamá-lo de Francisco de nome e não de olhos. João foi o único, contam até que por indenização divina pela falta de atenção no olhar, a ter os olhos mais joão que se teve notícia, e ser o único Francisco de nome mesmo que de fato não o fosse.
João passou assim todos os seus dias, sem ninguém nunca ter tido certeza se de fato percebia alguma coisa. contam que os mais diversos bichos, e até algumas crianças imunes da maldade do tempo, gostavam de chegar perto de João, sentado sempre em sua cadeira eterna que lhe confortou a vida. passou seus dias de ombros tomados de pássaros e pernas ancoradas de cachorros, sempre tão dóceis e completos à volta do olhar vazio de João. contam que sempre foi assim, e o espanto pelo fantástico foi tomado pela aceitação de que as coisas são assim.
Francisco, o de verdade, nunca teve nada. foi, mas no máximo imagina-se tudo que talvez tenha sido. provavelmente todos os Franciscos que foi na vida não eram nem de perto agradáveis para seus desejos de homem humano. porém, aceitava o ritmo e seguia. dizem os mais velhos que o pai de Francisco não gostava de cerveja gelada. nunca se soube se chegava em casa no fim da tarde ou no começo da noite, carregando na alma o cansaço do dia e o peso do cheiro do óleo, da graxa, do suor e da certeza do amanhã sempre igual. trazia consigo suas cervejas e as tomava em frente à casa, sentado no torto banco de madeira feito por ele e por Francisco na época em que os dias da semana ainda eram diferentes uns dos outros, e que Francisco ainda era tão cedo que demoraria a tornar-se um jovem. aqueles mesmos cínicos de vida que viam o vazio em João, diriam que o pai de Francisco simplesmente gostava de cerveja quente. acontece que o próprio Francisco, no fim da época em que ouvia histórias por ainda desconhecer algumas, acabou ouvindo de alguém a história do pai de alguém que bebia cerveja quente não por prazer, mas por já ter esquecido de viver há muitos anos atrás. dizem que foi nessa hora que, mais do que perceber o destino de seu pai e de todos os pais de todos os filhos, Francisco se viu preso por entre tantos caminhos diferentes que, de forma ou outra, acabam sendo o mesmo caminho para o mesmo pai triste de cerveja quente que todo filho tem e será. nesse dia, contam que Francisco ouviu, se levantou, e andando entendeu que o vazio de todo pai apenas tarda.
por fim, Francisco passou. ainda tinha um resquício de juventude no jeito de fazer as coisas que sempre fez. tudo aconteceu de maneira discreta. quando aqueles que ouviram as histórias dos que ouviam as histórias de Francisco ficaram sabendo, Francisco já havia quase sido esquecido. as histórias que contava pra aprender o pouco que ainda precisava aprender acabaram se misturando com todas as outras histórias que ele acabou por não conhecer. contam que nunca chegou a saber que não havia mais nada que não soubesse ou conhecesse ou entendesse da sempre diferente e mesma repetição, e por isso presumem que tenha sido o homem mais completo de que se tem vestígios em lembranças.
certo dia encontraram Francisco sentado em uma cadeira, muitos anos depois de sua ida ter sido esquecida. tinha um olhar lindo, e não era possível saber se buscava ou deixava sair alguma coisa por aquelas janelas de casa sem janelas. os que passavam por ele olhavam com a vista turva do esquecimento. "ele não parece com alguém?", perguntavam alguns homens que um dia foram jovens com tempo demais pra pensar na morte. contam que, certo dia, uma senhora parou ao seu lado, e percebendo Francisco por entre pássaros, cachorros e crianças inocentes do tempo, juntou algumas histórias na cabeça e contou sua vida ao homem de olhar perdido. chorou, não pelas dúvidas e certezas do fim, mas pela passividade daqueles olhos lindos que tão bem pareciam ouvir àqueles aflitos sem voz.
dos que ainda lembram dos que sabiam da história de Francisco, alguns realmente acreditam que ele gostava de contar histórias, e os olhos que tinha, lindos como menina morena de cabelo preso no topo da cabeça, não poderiam nunca negar. os outros, que ficaram sabendo do fim discreto de Francisco pelo seu pai de cervejas quentes, não acreditam que seja possível ser o Francisco sentando na varanda de uma casa sem janelas, tomado de animais e com um olhar que parece eternamente buscar. por fim, acabou-se acreditando que, independente quem fosse ou quantas vezes fosse, Francisco, o de verdade, gostava mesmo era de ouvir histórias
Cem Anos de Solidão - Gabriel García Márquez
sábado, 15 de dezembro de 2012
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